9 de outubro de 2019

A Herdade.


   João é um latifundiário alentejano que prefere não tomar posição em questões políticas. O regime, na sua fase final, força-o a manifestar apoio público à campanha de África. Corria o ano de 1973. Os negócios iam de vento em popa e a sua herdade era importante para os negócios do país. A João eram permitidas alguns atrevimentos, toleradas pelo sogro, um general íntimo do então Ministro do Interior e do próprio Presidente do Conselho, Marcello Caetano. João era suserano nas suas terras.

  A herdade, durante mais de quarenta anos, foi palco de infidelidades, desafectos e mudanças políticas. Não sinto que esta longa tenha sido um panfleto de esquerda. Pelo contrário, mostra-nos as arbitrariedades de um comunismo reivindicativo que se instala no poder e que desrespeita o direito de propriedade, propondo a revolta dos trabalhadores e estimulando a tomada das terras "por quem as cultiva" e a reforma agrária. Mostra-nos, ainda, a decadência das altas individualidades do regime, forçadas a esconder-se e a exilar-se. E João, inflexível, recusou-se a ceder, procurando manter a herdade, que era sua e dos seus filhos, como fez questão de vincar. Só que os tempos não eram os mesmos, e os seus valiosos hectares definham à medida em que a própria família o abandona, sujeita que esteve a anos de ausência da presença. João estimava mais os cavalos do que a legítima mulher e os filhos, e do que principalmente o primogénito, que considerava fraco e omisso. A última cena é bem demonstrativa de um homem que fica só, e que procura refúgio no mesmo lugar que o albergou em criança durante um momento de forte tensão psicológica.




   Este filme, numa análise sociológica, ocupa-se da realidade de pessoas a quem o 25 de Abril nada trouxe de bom. Faz-nos um itinerário pelo país do Estado Novo e pelo país da democracia, da ditadura de um regime autoritário à de um capitalismo predatório. Trouxe-lhes a revolta do pessoal, a liberdade sexual e nos costumes - o divórcio -, com fortes implicações a nível familiar. À medida em que os anos passam, as personagens envelhecem, naturalmente, e as roupas e os cenários perdem o glamour. A decadência dos espaços vai-os dominando.
   Tem, depois, aquele lado mais queirosiano, com uma abordagem ao incesto - eu diria o lado novelesco da longa -, que todavia não retira mérito à excelente obra de Tiago Guedes. E nem a Igreja foi esquecida. O padre assiste com receio à chegada dos comunistas ao poder. Naquele meio, os ideais comunistas misturavam-se com a fé. Por paradoxal que pareça, era o que existia. Escondiam brochuras políticas comunistas e baptizavam os filhos na igreja.

  De todas as cenas, eu destacaria aquela em que João e Leonor regressam a casa vindos de uma festa, deparando-se com os tanques que se dirigem a Lisboa, na madrugada de 25 de Abril de 1974, ao som de "Grândola, Vila Morena", enquanto as luzes dos veículos incidem nos seus rostos e os deixam confusos.

   A Herdade é um filme feito de imagens do seu tempo, do som do vento suão que atravessa os diálogos a meio e que dá nome ao cavalo preferido de João. João que, no fundo, foi um homem do seu tempo, o fruto de uma rígida educação, a mesma que quis imprimir no filho. E também aí Portugal mudou de 1973 a 1991, não só na relação entre cidadão e instituições, como naquela que se estabelece entre pais e filhos, maridos e mulheres, trabalhadores e empregadores. João, malgrado os esforços, perdeu a luta contra o progresso.

    Do melhor cinema que Portugal tem a oferecer. Um marco da produção nacional mais recente e que merece figurar entre um dos nossos melhores filmes de sempre.

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