28 de fevereiro de 2016

O cartaz da discórdia.


      Dois mil e alguns anos sobre o seu nascimento, Jesus Cristo continua a provocar as mais díspares reacções em crentes e em não-crentes. A última polémica surgiu com a divulgação, nas redes sociais, de um cartaz alusivo, ou comemorativo, de um partido político pela promulgação do regime que estatui a adopção por casais compostos por membros do mesmo sexo. Conhecendo nós o poder que a internet tem, rapidamente se propagou pela web todo o tipo de apreciações, umas mais religiosas, outras cujo foco incidiu na liberdade de expressão e no humor. O Bloco de Esquerda não calou, a Igreja Católica não consentiu.

      O cartaz, como tive a oportunidade de dizer, é provocatório. Poderia ainda compreendê-lo num contexto reivindicativo. Não estamos perante um desses casos. O Presidente da República promulgou a lei após esta ter sido confirmada na Assembleia da República. A adopção por casais compostos por membros do mesmo sexo é já uma realidade jurídica no nosso ordenamento. Ainda que tivesse sido essa a motivação, há quem obste à adopção por casais compostos por membros do mesmo sexo alegando outros motivos que não os religiosos. O Estado Português e a Igreja Católica, felizmente, não se confundem como noutros tempos. A Igreja não aceita o instituto, o Estado aceita-o. Não podemos forçar uma instituição a aceitar o que queremos. A Igreja não contempla no direito canónico o casamento entre pessoas do mesmo sexo. É um direito seu, como é um direito seu não aceitar a adopção em semelhantes moldes.

          Jesus, independentemente de qual religião, é uma figura religiosa, central no Cristianismo. Utilizar a imagem e o nome de Jesus num cartaz que versa sobre uma matéria fracturante suscitaria sempre controvérsia. Houve quem se sentisse ofendido. Temos de respeitar a sensibilidade alheia. Eu, que não sigo qualquer religião, não gostei que se tivesse associado Jesus à política e à produção legislativa. O que Jesus representa merece o respeito de todos. E o respeito não se confunde com a adoração.


       Teologicamente, e para quem tem fé, excluindo aqui a verdade histórica, que é sempre difícil de apurar faltando-nos escritos que não sejam vincadamente religiosos, podemos ainda arguir uma imprecisão e incorrecção do cartaz, que não é inédito - o BE apenas fez uso de uma frase que já existia. Jesus não teve dois pais. José não foi pai de Jesus. À luz do nosso actual entendimento, José terá sido um tutor. Um padrasto. Jesus, para os católicos e para outras congregações cristãs, foi concebido miraculosamente. Para os católicos, pela graça do Espírito Santo, uma das pessoas da Trindade, a força activa de Deus, que desceu sobre Maria, fecundando-a. A virgindade de Maria, aliás, antes e após o parto, é um dogma da Igreja. José, sendo um homem bom, alertado em sonhos pelo nascimento do Filho de Deus que Maria daria à luz, criou o Menino, embalou-O e educou-O. Jesus respeitava-o, e Maria, em algumas passagens, como em Lucas 2: 48, refere-se a José como pai de Jesus. O que estaria ao alcance de Maria dizer a um menino de doze anos, que ainda não havia sido baptizado, senão que José era seu pai? Se entendermos que pai também é o que cria, numa interpretação extensiva do conceito de pai, José seria pai. Mas Jesus teve sempre um pai. O Pai. Não teve dois pais. Desviando-me um pouco da verdade teológica, na verdade biológica, todos temos um pai e uma mãe. Não dois pais ou duas mães. Uma criança adoptada por um casal do mesmo sexo, sim, terá dois pais ou duas mães, em virtude das circunstâncias e de a linguagem humana ser pobre para distinguir conceitos. Não é tudo igual. Essas crianças, no limite, terão uma mãe, caso sejam acolhidas por dois homens, ou um potencial pai, porque foram geradas, certamente, por um espermatozóide, que não é pai, sim, mas que advém de um ser humano do sexo masculino, caso sejam educadas por duas mulheres.
           Entendendo que José foi o pai de Jesus e que Jesus resulta de uma relação sexual, é filho de José e não filho de Deus. No limite, terá sempre um e só um pai.

         Noutras religiões abraâmicas, como o Islamismo e o Judaísmo, a compreensão de quem foi Jesus é substancialmente oposta. Para o Islão, Jesus foi concebido miraculosamente, não participando, contudo, da divindade. Foi um profeta, como Maomé e como tantos outros aceites pelo Cristianismo, mas era um homem, sem natureza divina. No Judaísmo, com excepção de algumas correntes minoritárias, Jesus é entendido como um apóstata. Se considerarmos o Cristianismo e o Islamismo, veremos que boa parte da população da Terra aceita Jesus e os seus ensinamentos, o que O reveste de um simbolismo ímpar na história da humanidade.

        O cartaz foi uma infeliz ideia. Uma afronta desnecessária num partido que vai crescendo de acto eleitoral em acto eleitoral. Eu julgava que as responsabilidades acompanhavam a representatividade majorada na Assembleia da República. Foi um equívoco da minha parte. O Bloco mantém a mesma postura infantil que lhe conhecemos. O que é lamentável. Tem de deixar de lado o comportamento de imberbe garoto rebelde. Este tumulto foi a primeira manifestação do fim da condescendência com as atitudes levianas do partido. E os seus dirigentes reconheceram o erro. Esperemos que tudo fique por aqui.

26 de fevereiro de 2016

Dois em um.


      Nos últimos dias, a imprensa tem dado um destaque permanente à tragédia de Caxias. A morte de duas crianças encheu páginas de jornais e blocos noticiosos pela televisão. Será um desafio para psiquiatras, juristas e criminólogos investigar, cada qual na sua especialidade, o que terá levado uma mulher, pela calada da noite, a afogar as suas filhas no rio Tejo. Pelo que vamos conhecendo através dos media, pai e mãe terão, mutuamente, alertado as autoridades pelo comportamento do outro. Há uma falha do Estado. Sabendo-se que as crianças viveriam num ambiente disfuncional, marcado pela violência física e verbal, os organismos estatais viam-se obrigados a agir, inquirindo, procurando inteirar-se do bem-estar das meninas. Somos, uma vez mais, culpados enquanto sociedade. Não vivemos isolados, em ilhas de egoísmo. Se o Direito não nos impõe o encargo de zelar uns pelos outros, a moralidade ensina-nos a estar atentos a quem nos rodeia e às suas necessidades.

   Para o Ministério Público, a mãe agiu com especial censurabilidade ou perversidade, ou seja, preenchendo, o seu comportamento, a cláusula de agravamento constante no número 1 do artigo 132.º do Código Penal. Está indiciada por dois crimes de homicídio qualificado. Ainda assim, a sua actuação encontraria sempre previsão num dos exemplos-padrão do número 2 do referido artigo: a autora é, simultaneamente, progenitora das crianças. Há, no meu entendimento, uma violação claríssima do dever ético-social fundado na qualidade pessoal e na relação especial entre a autora e as vítimas. Verifica-se um acentuado desvalor da atitude.
        A investigação ainda agora começou. Veremos a que conclusões ela chega.


       Soubemos, também, que o Primeiro-Ministro britânico anunciou a realização de uma consulta popular referendária à permanência do Reino Unido na União Europeia. Após negociações com Bruxelas, Cameron trouxe para Londres uma mala cheia de excepções à política de integração europeia, o que não é uma novidade tratando-se do Reino Unido, Estado-membro desde a sua adesão, em 1973, que manteve, muito embora, um tradicional eurocepticismo. Vejamos: não integra a Zona Euro; quer manter-se à parte da livre circulação de pessoas, bens e mercadorias; rejeitou o Pacto Orçamental da UE; reclamou o designado "travão" à possibilidade de novos imigrantes beneficiarem de apoios sociais britânicos, além de garantir que o dinheiro dos contribuintes britânicos, numa lógica individualista, não servirá para resgatar qualquer Estado-membros da UE. Exigiu, destarte, um estatuto diferenciado. E conseguiu-o. Temendo repercussões, legítimas, a bem ver (a saída de um Estado como o Reino Unido abalaria a União Europeia), o Conselho Europeu cedeu. Em troca, Cameron comprometeu-se em fazer campanha pelo "Sim" à continuidade na UE; outros dirigentes britânicos deram a entender, contudo, que tudo farão para que o "Não" saia vitorioso no próximo dia 23 de Junho. A derradeira decisão estará nas mãos dos eleitores ingleses.

        A minha posição relativamente à União Europeia é sobejamente conhecida: defendo uma plataforma de entendimento e de união, sim, em moldes que não impliquem, o que já há muito se verifica, uma perda substancial de soberania. Rejeito, portanto, a união política. E ela tem estado, implicitamente, nos sucessivos tratados que vêm regulando a UE. O maior passo, falhado, diga-se, deu-se em 2004, com a malfadada Constituição Europeia. Os temores e receios do Reino Unido são justificados. Sendo o país que é, com a história que tem, de intervencionismo de primeira linha no quadro das relações internacionais, naturalmente que Londres não quer que políticas que lhe digam respeito sejam decididas em Bruxelas ou Berlim.

        David Cameron revelou ser um sábio e audaz estratega, obtendo para o seu país um acordo vantajoso. Quanto a mim, acredito que os britânicos se pronunciem pela continuidade. A UE sofre já da síndrome da "dissolução anunciada". Um pânico generalizado. Basta pressioná-la, que tudo fará para a evitar.
         A sua sorte jogar-se-á nos próximos meses.

         São estes dois dos assuntos que marcam a actualidade, e que achei pertinente tratar.

21 de fevereiro de 2016

Seems like it was yesterday.


    Este mês perfaz uma década desde que os pais se separaram. Quando o constato, quase que não quero acreditar. Está tudo tão incrivelmente presente. As expressões faciais, as decisões irreflectidas, as posturas alteradas. A minha aparente alienação, como um ferido em combate que deixa de sentir a dor, por momentos, dado o estado de excitação.

    O processo de separação dos pais foi brusco. Como que num rompante, puseram termo a duas décadas de vida em comum. Vinte anos de dias agradáveis, alguns de inquietude, como em todas as famílias. Não há lares perfeitos. E se havia situação que considerava sólida, essa era a relação dos pais. Sobressaía tanto carinho entre ambos. Mais do que estima. Companheirismo.

    Tento, num juízo de prognose póstuma, perceber que motivos se revelaram idóneos. Encontro uma sucessão deles. Todos que não julguei, e nem podia, adolescente que era, suficientes para produzir este resultado: o pai não está bem, a mãe tão-pouco. Sinto-os tão iguais, porque o são, de facto, e por isso sempre se deram bem. Nunca ouvi um grito entre eles, uma palavra grosseira, uma atitude precipitada.

   Ainda subsiste o desânimo, a revolta, a inconformação. O sentimento dominante será, contudo, o desalento. Um vazio existencial. Perdi as minhas referências, a estrutura que me mantinha erguido. De lá para cá, não mais tenho feito do que procurar sobreviver, reconstruir-me, que muitos cacos ficaram da pessoa que era, não demasiado eufórica, que nunca fui, sempre nas brumas da minha melancolia, mas idealista, sonhadora, que jamais duvidava de um amanhã promissor. O amanhã transmutou-se no ontem. E só no ontem eu me encontro sentido.
       
   Levarei esta carga emocional comigo. Não sou pessoa de ultrapassar com eficiência as maleitas. Assemelha-se a uma doença crónica, cujo remédio apaziguador ainda procuro.
       Assim o consiga, atempadamente, que tenho o tempo em meu desfavor.

16 de fevereiro de 2016

A Eutanásia.


    A eutanásia, como questão fracturante que é, voltou à ordem do dia após a apresentação de um manifesto favorável à sua prática. Recordo-me de o tema eutanásia surgir a propósito de outros assuntos que tratei no blogue, nomeadamente o suicídio e a interrupção voluntária da gravidez. Adiei, de modo consciente, a possibilidade de discorrer sobre a eutanásia. Não considerei oportuno, na época. De momento, contudo, tendo em apreço a evidência de um partido com assento parlamento, o PAN, contemplar no seu programa eleitoral a eutanásia e de um outro partido, o Bloco de Esquerda, assumir a apresentação de um projecto de lei, as condições são favoráveis a que eu possa, também, dizer o que penso quanto a esta matéria.

      A minha perspectiva será a de um cidadão que se julga responsável. E a de um jurista, claro está. Não sou médico. Tive um familiar próximo que faleceu em circunstâncias que poderiam, a priori, suscitar uma intervenção no sentido da eutanásia, ou da boa morte, no seu significado original. Nunca isso se colocou. A defesa da sua vida, da sua qualidade de vida, da qualidade possível, porém no respeito pela sua dignidade, foi o que sempre nos mobilizou.

     O ordenamento português, através da Constituição, é taxativo no valor que confere à vida humana. No artigo 24.º, número 1, o legislador foi claro ao considerar a vida humana como «inviolável». E se é discutível o momento em que já estamos perante vida humana, o que nos remeteria para a interrupção da gravidez e para a celeuma em torno do reconhecimento a dar à realidade que é a vida humana intra-uterina, quanto ao fim da vida parece não haver dúvidas: a vida termina quando as funções biológicas cessam ou quando estamos perante um quadro de morte cerebral, em que o organismo apenas se mantém por intermédio de suportes artificiais que prolongam as funções vitais necessárias à vida orgânica.

      Para o direito penal, do qual me ocuparei mais, a ingerência de terceiros na esfera jurídica de um cidadão, na forma tentada ou consumada, contra a sua vida, é uma tentativa de homicídio ou um homicídio. Nesse sentido, estando nós perante um pedido sério e consciente da vítima para que um terceiro ponha termo à sua vida, e decidindo-se o autor pela prática do facto, o mesmo configura um homicídio a pedido, constante no artigo 134.º do Código Penal, que é um tipo legal de homicídio que está sujeito a circunstâncias de privilegiamento. Há, desde logo, uma redução no conteúdo da ilicitude resultante da formulação do pedido pela vítima, e também uma diminuição do conteúdo da culpa pelo facto de o agente se determinar pelo pedido. O consentimento, ainda assim, não possui um carácter justificante.
        De igual modo, o artigo 133.º do Código Penal, que dispõe sobre o homicídio privilegiado, poderá ser invocado quando estamos perante a designada eutanásia activa, à semelhança do homicídio a pedido. Uma das emoções ou motivações privilegiantes deste tipo legal é precisamente a «compaixão», no caso pelo sofrimento da vítima. Vai depender de cada caso concreto de eutanásia activa o seu enquadramento como homicídio privilegiado, homicídio a pedido ou até mesmo homicídio simples. O estado emotivo reduziria assim, tratando-se do homicídio privilegiado, significativamente a culpa do agente.
        Na fronteira estão os casos de incitamento ou ajuda ao suicídio (135.º do Código Penal), em que o suicídio assistido pode encontrar cabimento. Neste tipo legal, a conduta do agente tem de constituir, por via do auxílio, um contributo determinante para a auto-colocação em perigo. É um crime de aptidão. A interferência de um terceiro no suicídio produz uma relação intersubjectiva desvaliosa, uma vez que promove a auto-colocação em perigo. Importante é, para haver auxílio ao suicídio, que o último e decisivo acto de execução da morte esteja no domínio da vítima, caso contrário teríamos um homicídio. O facto só é punível de houver, efectivamente, tentativa de/ou suicídio. A vítima quer suicidar-se e para tal é auxiliada. O acto está fora da estrutura do ilícito típico; em nada está relacionada com a conduta típica do agente. Os comportamentos típicos foram realizados, mas o legislador considera que, sem suicídio ou tentativa, o auxílio (ou o incitamento) não tem dignidade penal.

    Quanto à eutanásia passiva, esta só constitui homicídio por omissão quando é realizada sem o consentimento, ou o pedido, da vítima, o que exclui contundentemente a hipótese de se aplicar ao homicídio a pedido. Mas pode, efectivamente, corresponder a homicídio privilegiado por omissão o caso do médico que, movido por compaixão pelo doente em coma prolongado, e em que as funções vitais são mantidas por um aparelho de suporte de vida, abstém-se de lhe ministrar os medicamentos necessários à manutenção da vida.
       Na eutanásia passiva, podemos ainda enquadrá-la no tipo legal de exposição ou abandono, com previsão no artigo 138.º do Código Penal. O abandono representa um crime específico, sendo autor quem estiver sujeito a especiais deveres de assistência - quem tiver posição de garante (como o médico mantém, por via contratual) - no dever de evitar a lesão para a vida ou a integridade física. O abandono é um crime de resultado, um resultado, aqui, de perigo: de perigo para a vida.
         Importa ainda esclarecer que a eutanásia não se confunde com o auxílio médico que é prestado sobre doentes terminais e que consiste na ministração de fármacos (analgésicos, anestésicos, etc.) que visam a atenuação da dor e do sofrimento, assegurando uma morte digna. Na eutanásia, pelo contrário, o médico participa no processo causal; nestes casos que relatei, o médico apenas acompanha um processo, no interesse do doente, que se iniciou naturalmente.
         No homicídio a pedido por omissão, o caso altera-se na substância. O doente, pedindo de forma séria e reiterada, quer que um médico ou um familiar não intervenham quando decidir pôr termo à vida. Eu discordo de alguma da doutrina penal. Um médico está vinculado à protecção da vida. O juramento a que está sujeito, o juramento de Hipócrates, e o seu código deontológico obrigam-no a tudo fazer, que esteja ao seu alcance, por forma a impedir que o doente se suicide. Eu diria que se mantém a posição de garante do médico. O médico continua vinculado à defesa da vida. O meu entendimento, que já expus anteriormente, por ocasião de outros temas que abordei, vai ao encontro da norma constitucional que enunciei acima: a vida humana é um bem inviolável, inclusive pelo seu titular. O suicídio é um acto contrário à ordem jurídica, na medida em que é um processo, ainda que desencadeado pelo titular do bem jurídico, que resultará na violação da vida. A vida humana não perde dignidade quando o seu titular dela dispõe. Da norma constitucional não retiramos qualquer preceito que possa justificar que a vida humana perde protecção jurídica, caindo no "espaço livre de Direito", pelo facto de o suicida resolver atentar contra a sua vida. Isso permitiria uma dupla valoração da vida humana. No que respeita à posição de garante, eu considero que há uma relação juridicamente constituída entre o doente e o médico. Se é verdade que vivemos numa sociedade que valoriza os princípios da liberdade e da responsabilidade, temos de atender às circunstâncias do caso concreto e não podemos menosprezar o sentimento de alguém que se vê no limite, movido por um sofrimento que considera intolerável, e que por isso não tem o discernimento para decidir responsavelmente pelo que pretende para si.

         Alguma doutrina, pelo contrário, defende que se o médico continuasse vinculado a um dever especial de agir para evitar a morte do doente, na prática ele poderia impor um tratamento ou uma intervenção não desejados, o que implicaria uma conduta típica prevista no artigo 156.º do Código Penal (intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários), ou seja, uma contradição prático-normativa. Não creio que haja qualquer contradição prático-normativa, uma vez que agir para evitar um suicídio, para mais estando nós perante um médico, que à partida cumpre um dever ético-profissional de zelar pela vida, é substancialmente diferente de coagir um doente à aceitação de determinado tratamento. São realidades distintas, embora possam comungar de um objectivo comum, a defesa da vida, e não equiparáveis. Na primeira situação descrita, estamos diante de uma acção que visa impedir (conteúdo negativo) a consumação de um acto suicida; na segunda, coagiríamos física ou moralmente alguém a um determinado procedimento médico (conteúdo positivo), envolvendo a última acção, até pelo seu teor, uma especial censurabilidade ao invadir perniciosamente a esfera de liberdade do cidadão, não sabendo nós, de antemão, as consequências reais, e não possíveis, da conduta. Eu diria, em linguagem um pouco mais coloquial, que não é censurável, nem socialmente, a atitude do médico que visa impedir um suicídio, sujeita a exigências de necessidade, adequação e proporcionalidade; já não será assim se coagir alguém a aceitar um tratamento. O Direito não pode ser indiferente ao seu substrato e aos entendimentos sociais, afinal, o que o justifica são precisamente as pessoas e a necessidade de regular os seus comportamentos. No seguimento do meu entendimento, o artigo 154.º, número 3, alínea b), primeira parte, exclui a punibilidade do facto de alguém constranger, por coacção, uma pessoa a não se suicidar, o que demonstra, uma vez mais, a contrariedade do suicídio face à ordem jurídica e a não censurabilidade de um sujeito que intervenha por forma a evitar que outrem se suicide.


       Abstraindo-me do Direito, como cidadão não poderia discordar mais da eutanásia. A bem ver, o testamento vital, que é já uma realidade no nosso ordenamento e que permite que possamos escolher quais tratamentos queremos, ou não, quando não tivermos consciência sequer da nossa existência, evita que se prolongue indefinidamente um estado vegetativo ou de sofrimento físico que de nada valeria, esperando-se nada mais do que a morte. Não tenho experiência clínica, tão-pouco de voluntariado, sabendo, ainda assim, que os cuidados paliativos, que não estão disponíveis apenas para os casos terminais mas que a eles estão directamente associados, conseguem proporcionar aos doentes uma condição digna, sem dor. Somos, enquanto seres racionais, propensos à vida. Ninguém quer morrer, verdadeiramente. O instinto de sobrevivência encontra-se entre todos os animais. Não queremos sofrer. Se conseguirmos que alguém, muito embora pouco reste de si, se sinta estimado, querido, certamente que lhe faremos despontar o apego à vida que se havia perdido. Levar a morte aos doentes não é solução compatível com a dignidade humana. Devemos ser capazes de contornar a inevitabilidade que é a morte, sem ceder-lhe antes que ela se manifeste.
          Não há um direito à morte. Há, sim, um direito à vida, um direito que se estende até ao suspiro final. A vida de um doente terminal não vale menos do que a de um indivíduo saudável; será merecedora até, no limite, dada a sua condição muito particular, de especial protecção por parte do Estado e dos demais organismos e entidades.

          Num exercício de direito comparado, se verificarmos a experiência de alguns dos países, poucos, que contemplam a eutanásia, constatamos que está longe de ser pacífica. Nos Países Baixos e na Bélgica, há casos comprovados de pessoas que foram eutanasiadas por problemas psiquiátricos, num claro descontrolo do instituto que pretende ser a eutanásia. A eutanásia afigura-se, assim, um caminho demasiado perigoso. A eliminação massiva de doentes, aliás, é prática que não queda esquecida pela Europa, e que nos remonta a um período ainda recente de barbárie e de terror.

           Para não mais me alongar, termino afirmando que o debate está em cima da mesa. Não gostaria de assistir a uma solução precipitada do legislador. Considero que a questão tem demasiadas nuances, e é dotada de complexidade tal que exige estudos aprofundados, participando médicos, enfermeiros, auxiliares de saúde, doentes, membros da sociedade civil, juristas, etc. Todos devemos ser chamados, que uma decisão individual desta natureza tem repercussões em toda a colectividade.

11 de fevereiro de 2016

A Guerra dos Trinta Anos.


   No Sacro Império Romano-Germânico, apesar da paz religiosa de 1555, subsistiam alguns conflitos religiosos. As vitórias militares da Contra-Reforma no Baixo Reno e na Baviera recrudesceram os temores do partido protestante; consequentemente, em 1608, alguns Estados reformistas congregaram-se na União Protestante, que, no ano seguinte, em 1609, se opôs à Liga Católica, sob o comando da Baviera, ambas aliadas a potências estrangeiras que lhes davam cobertura.

     A Guerra dos Trinta Anos despoletou devido ao clima de tensão entre  a nobreza protestante da Boémia e os Habsburgos, mais concretamente a eleição do arquiduque Fernando como rei da Boémia, carecendo do beneplácito  das ordens sociais desta entidade política; destruição de igrejas protestantes e generalizado menosprezo pelos direitos da nobreza local protestante. Todavia, em 1618 surgiu o pretexto para o início da guerra: a Defenestração de Praga, que afectou os conselheiros imperiais, seguida da escolha do príncipe eleitor, Frederico V do Palatinato, como rei da Boémia, originando repercussões em boa parte do império e do Reino da Dinamarca. Os exércitos católicos iam triunfando, sob o comando de João Taerclaes, o conde de Tilly, e posteriormente de Albert de Wallenstein, conde de Friedland, enquanto os opositores aos Habsburgos permaneciam à margem. A Espanha, por seu lado, reiniciou a ofensiva contra as Províncias Unidas.

      Em 1629, o protestantismo alemão foi todo ele subjugado, vendo-se a Dinamarca coagida a assinar a paz. Os intentos de Fernando II, imperador de 1619 a 1637, e do seu chefe militar, Wallenstein, rumavam, aparentemente, a bom porto. Nesse ano, o imperador submeteu os protestantes e fez exigir, através do Édito de Restituição, a devolução dos bens eclesiásticos confiscados a partir de 1552. A pressão que exerceu sobre os príncipes aumentou, e em tudo este cenário fazia lembrar o de Carlos V, no seguimento da sua vitória sobre a Liga de Esmalcalda. Porém, Fernando II viu-se obrigado a reconhecer que os príncipes alemães e as potências rivais não estavam dispostos a consentir tão impavidamente à hegemonia da Casa de Habsburgo. Os príncipes católicos, liderados por Maximiliano da Baviera, exortaram, pela força, à destituição de Wallenstein; e, em 1630, o rei Gustavo Adolfo da Suécia, com o suporte financeiro da França, desembarcou na Pomerânia. A campanha dos príncipes alemães suscitara-lhe o interesse, contudo os seus objectivos de soberania política, mormente na zona do mar Báltico, ameaçada por Wallenstein, em 1629, eram-lhe caros.

   A jornada vitoriosa da Suécia, através da Alemanha até à Baviera e às fronteiras dos domínios hereditários dos Habsburgo, foi entusiasticamente apoiada pela França, uma vez que o líder carismático da política francesa, o Cardeal Richelieu, antecipava, na situação, a oportunidade de romper por definitivo com a preeminência dos Habsburgos. Para o dignitário da Igreja Católica, o vínculo de uma religião comum por si só não bastava para lograr na união política; a razão de Estado tinha de se impor. Na sequência da morte de Gustavo Adolfo na Batalha de Lutzen, em 1632, e do assassinato de Wallenstein, dois anos depois, os protestantes assinaram a paz com o imperador. Ainda assim, a guerra prosseguiu por forma a estabelecer um equilíbrio e uma hegemonia em solo europeu. A França viu-se impelida a intervir, auxiliando a Suécia, após o seu desaire em Nördlingen. O Sacro Império tornou-se, assim, o maior campo de batalha da Europa, jogando-se o destino do continente pelos países em litígio.


      A Paz de Vestefália selou, por assim dizer, o conflito, triunfando a França e a Suécia. O Sacro Império saiu derrotado. A França distendeu o seu território desde a fronteira leste até ao Reno. Conseguiu incorporar, definitivamente, os bispados de Metz, Toul e Verdun e pequenas áreas da Alsácia, à custa do Império e de alguns domínios dos Habsburgo. A Suécia anexou a foz dos mais relevantes rios alemães, consolidando a sua posição na Pomerânia ocidental - a zona do Báltico. A Suiça e as Províncias Unidas desvincularam-se do Sacro Império, seguindo o seu caminho como entidades políticas, na lógica de equilíbrio que a paz de Vestefália trouxe à Europa. Por sua vez, alguns príncipes alemães, como, por exemplo, o de Brandeburgo e o da Baviera, alargaram os seus domínios, fazendo perder, assim, a solidez e a unidade do Império, pelo reforço dos regionalismos locais. Todos estes Estados alcançaram a plena soberania, podendo firmar alianças com potências estrangeiras. À partida, estava vedada a possibilidade de se estabelecer qualquer aliança que fosse contra o imperador ou os seus interesses; no entanto, a imposição foi ignorada pelos príncipes.

       O território austríaco não se ressentiu sobremodo da guerra, mas o enfraquecimento do Império teve como consequência a diminuição do poder do imperador, facto agravado pelas potências que saíram vitoriosas, França e Suécia, os garantes da Paz, que ganharam a possibilidade de ingerir nos assuntos internos do Império.

         No campo confessional, as cláusulas da paz religiosa de Augsburgo, de 1555, abrangeram também os calvinistas do Sacro Império. Foram reconhecidos os mesmos direitos a todos os cultos e, a partir de 1624, dever-se-ia tornar normativa a inserção de cada confissão num determinado espaço geográfico.

       A Guerra dos Trinta Anos atingiu, para a época, perdas significativas em homens e bens. Não obstante, o conflito, que resultou na Paz de Vestefália, traria, para o quadro das relações internacionais, o conceito de Estado-Nação.

6 de fevereiro de 2016

Grandpa.


     Há precisamente um ano, o meu avô paterno faleceu após padecer de uma enfermidade degenerativa que o foi progressivamente incapacitando. Eu, bem como todos os seus familiares próximos, pude acompanhar a sua deterioração física e psíquica. Até que, qual golpe do destino, infortúnio ou manifesta estupidez da minha parte, perdemos o contacto nos dois últimos anos que antecederam a sua morte.

      Foi, como há um ano referi, um dos dias mais complicados que vivi. A primeira perda efectiva, sentida. Embora nunca tivéssemos sido afectivamente próximos, havia uma presença minha assídua na sua casa. Não era a visita diária, mas rara era a semana em que não passava por lá, cumprimentando-os, inteirando-me do seu estado de saúde.

   Divergências várias propiciaram a que a avó paterna, e o avô, em certa medida, nunca tenha conseguido ultrapassar as barreiras iniciais que se interpõem pela não censurável desconfiança que pode surgir quando duas pessoas contactam pela primeira vez. A avó não gostava da mãe, e a mãe não gostava da avó. Tinham uma relação dissimulada, tão prejudicial para o bem-estar da família. Por inerência, não fui o neto dilecto. A sombra da mãe perseguia-me na minha relação com os avós. Sei que eles não se conseguiram desvincular da má impressão inicial, talvez por a mãe ser uma mulher divorciada, por não corresponder exactamente ao que entendiam como a esposa ideal.

      Com a separação, naturalmente que os velhos ressentimentos se agravaram. A avó acolheu o pai, num primeiro momento, assegurando-o de que estava certa quando se opôs à sua escolha pela mãe. Tudo se reflectiu na minha convivência com os avós. Ouvi críticas, insinuações acerca da mãe. É difícil manter o papel de filho, que defende intransigentemente a sua mãe, e o de neto. Vi-me obrigado a escolher, e a escolha incidiu, como não poderia deixar de ser, na minha mãe.


   Julguei que a avó não sobreviveria. É uma senhora psiquicamente instável desde nova, com um historial vincado de depressão profunda. Carece de ajuda. Os seus quase noventa anos, porém na posse de todas as faculdades mentais, e uma anorexia nervosa não ajudam a que consiga a tranquilidade tão merecida. Não é a típica avó idosa, mulher de uma vida de trabalho. Mas a idade impõe respeito. E a sua condição exige cuidados redobrados. O pai, percebendo que o seu dever seria o de acompanhar a mãe, pediu transferência do Porto, onde residia há largos anos, para Lisboa. Aproximámo-nos, consequentemente, e eu da avó. O neto preterido, com uma mudança de residência da minha prima, passou ao neto que lhe faz companhia, que pega na sua mão, que a beija. Esquecemos as diferenças.

     Não estamos tanto tempos juntos quanto gostaria. Preciso de alguma sanidade mental. Conviver de perto com a avó, por muito tempo, não é benéfico. O pai, seu filho, está ciente disso.
       Confessa-me que queria vender a casa, sair. Cada canto lhe traz o avô. Foram sessenta e muitos anos de casamento. Setenta anos de comunhão. Se for bem sucedido nos meus ambiciosos planos, não porei de lado a hipótese de convidar a avó para morar comigo. Não sei quantos anos de vida lhe restam, e seria, certamente, uma boa forma de conformar um amor que nunca viu a luz do dia.

1 de fevereiro de 2016

O direito ao adeus.


   Perguntaram-me, há tempos, o que me levava a não acreditar no amor.  Desde logo, o primeiro embate: «Como assim não acreditas no amor?» Senti-me a derrubar um edifício de fundações sólidas. Não quis ser alarmista, nem trazer a desilusão nas minhas palavras. A vida é tão curta. Para quê confrontar as incertezas com as evidências? Antes passá-la na ignorância, que mais tranquiliza e menos apoquenta.

    O amor é eterno. Não se compadece de fases, de períodos. Ou é, ou não é. Não muda de semblante, como nós. Não acorda risonho ou assombrado, mal disposto ou animado. Refuta as necessidades. Faz-se sentir permanentemente. A contrario, o que difere, ao mínimo, não pode ser amor.

    Na medida em que é sublime e infinito, não cessa. Se há a menor hipótese de findar, não é - nunca foi - amor. Foi um bem-querer, um acarinhar, um suprir carências. Um mero gostar. Designam de amor o que é paixão, o que é tesão.

     O amor  é unilateral. Prescinde de correspondência. O amor pode ser uma via de sentido único, muito embora não o seja, forçosamente. O amor é cego e surdo. É sentimento robusto. Gosta de mimos, mas sobrevive à sua falta.

    O amor não se despede com um adeus inundado de razões, através de derradeiros telefonemas ou mensagens escritas. Diz-nos até já, com um beijo, um abraço. O amor deseja a presença, conseguindo subsistir na saudade.

       Tudo isso existe. Tudo isto é amor. Respondendo, acredito, sim, no amor. No amor.