30 de novembro de 2019

The Big Fish (2003).


   Não sou lá grande fã do Tim Burton. Vi alguns dos seus filmes, como os clássicos Eduardo Mãos de Tesoura e Batman, e a diferença face a este Grande Peixe é a seguinte: se nos outros há uma solidão em que se recortam as suas personagens, neste revela-se-nos um Burton que observa desde fora, mas que, inapelavelmente, está dentro da narrativa.

  É um drama familiar, com passagens que julguei, à saída da sala, apelarem demasiado à lágrima fácil da solteirona de quarenta anos. De qualquer forma, o argumento foi engendrado de um modo completamente original. A realidade a fantasia não se dissociam. Às tantas, cremos que a fantasia não o é assim tanto, para concluirmos que até nas maiores das loucuras há um pouco de razão.




   O final é particularmente interessante. A cena em que Ed Bloom (Albert Finney) é devolvido às águas tem algo de panteísta, de conciliador com a Natureza, de pacificador. É um filme francamente optimista. Vejamos: aquele homem enfrenta a morte com uma coragem incrível, mantendo-se confiante de que a sua forma de se impor perante a vida, incompreendida pelo filho, o ajudará agora no momento mais difícil, e esta personagem animada, exagerada, contrasta com a do filho, depressiva, abatida, quase taciturna. 

   Há ainda, dentro da história, um mote de reconciliação: Will, que mantinha com o pai uma relação distante, desconfiada, conflituosa em certa medida (estiveram três anos sem se falar), e que o julgava um mentiroso doentio, compulsivo, aceita-o na hora da morte, compreende-o, ajudando-o inclusive no momento da partida, contando-lhe uma história tão fantasiada como as que ouvira durante toda a sua infância.

   Um último destaque ao brilhantismo de Burton na sequência de pequenas histórias em flashback dentro da história principal. Aquelas que se desenrolam no circo e as suas atracções exóticas e aberrantes, a bruxa cujo olho desvenda a morte, o vilarejo idílico, o número musical no Vietname (que ainda continuar a povoar o imaginário norte-americano como uma ferida que não cicatriza nunca) e a cena na banheira, naquele banho de imersão intimista e sussurrado. Tudo digno de um pequeno génio na sua arte.

25 de novembro de 2019

The Dresser (1983).


   Shakespeare e as mil caras



   Escolhi esta foto, que infelizmente tem as letrinhas a incomodar, não ao acaso; fi-lo porque deixa patente o móbil de Peter Yates, o realizador, com esta narrativa construída em torno das estrondosas interpretações destes dois grandes nomes da sétima arte: Albert Finney, falecido este ano, e este filme insere-se num ciclo evocativo da sua obra, e Tom Courtenay. Mais do que a decadência física e mental de um velho actor que se arrasta pelos palcos por vocação e uma mistura de sentido de obrigação e responsabilidade para com o seu público, sobressai, sobretudo, aquela relação entre vedeta e camareiro, de mútua dependência, com momentos de tensão, de esgotamento, de impaciência e de amor, não um amor homossexual, mas, e de forma unilateral, por Norman, um amor um tanto ou quanto homoerotizado, vendo em Sir a figura que, à sua forma, idolatrava.

   Yates foi quase um artesão: esculpiu aquelas personagens, permitindo a Finney e a Courtenay que pudessem mostrar toda a sua arte e talento nas mil e uma faces que um actor pode ter, do choro, à ira, à ternura, em emoções teatralizadas que extravasam quase os limites da acção humana. Praticamente não nos damos conta das outras personagens, tal a demolidora presença do velho actor shakesperiano e do seu camareiro.




    É um filme muito físico. Finney vocifera, estrebucha, arrasta-se pelos palcos e corredores. Vê-lo cansa-nos os olhos e perturba-nos os ouvidos. O actor berra, berra muito. O que se quis foi fazer daquela personagem, que cambaleia sempre entre a ficção e a realidade, um apanhado de todas as criações do dramaturgo inglês: Macbeth, Rei Lear, Othello e por aí.
   Não admira que tenha havido alguma inépcia e até prostração de Yates perante um argumento tão arrebatador e exigente para aqueles dois actores. Tudo o mais soçobra ante aquelas interpretações, e os maneirismos de representação põem mais em evidência os actores do que as personagens. É um duelo a dois.

    Finalmente, este filme é uma escola de boa representação. Daqueles manuais em imagem e som que qualquer aspirante a actor deve ver.

22 de novembro de 2019

O não-jantar de Natal - Lisboa 2019.


   Em anos anteriores por estes dias já tinha falado do costumeiro jantar de Natal que organizo para amigos e leitores do blogue. Este ano, à falta de vontade junta-se a constatação de que não faria sentido manter uma tradição quando já não há espírito de comunidade na blogosfera em que me insiro. Não há blogues. As pessoas não escrevem. E as que escrevem fazem-no essencialmente para si. Eu incluído. Não que em 2017 e em 2018 a blogosfera estivesse nos seus melhores dias, que não estava, mas sobre ela ainda não se havia abatido o estigma da morte incontornável. Daí que não faça sentido procurar organizar um evento que, à partida, sairia falhado. E dá trabalho. Há que divulgar, fazer telefonemas, marcações. Comprometer-me. Não quero. 

   Acresce ainda outro factor, porventura igualmente determinante, que é o da morte recente do Miguel Botelho. Pessoalmente, não me sinto confortável a organizar um jantar, um evento que se quer festivo, animado, pairando sobre mim e os convivas, ou seguramente sobre mim, o falecimento de uma das maiores referências da minha blogosfera. Não há nada a comemorar, antes pelo contrário. Há a lamentar. A partida do Miguel teve um impacto enorme em mim. Raro é o dia em que não penso nele. Não me perguntem o porquê.

   Enfim, este Natal blogosférico será menos colorido. Se alguém, que não eu, quiser organizar um lanche, um café, algo discreto, sem aparatos e euforias, não direi que não. Mais do que isso, por tudo o que disse e mais alguma coisa de que me tenha esquecido ou propositadamente omitido, não. É este o ponto de situação.

21 de novembro de 2019

Murder on the Orient Express (Um Crime no Expresso do Oriente).


   Segunda-feira foi dia de clássico. Um Crime no Expresso do Oriente (1974) será, seguramente, um dos filmes que já foram exibidos vezes sem conta na televisão. Eu, em jeito de curiosidade, só me recordava da sua derradeira cena, paradigmática e memorável, e tão-pouco a relacionava a este título.

  Sendo um clássico da cinematografia, como não li o romance policial de Agatha Christie que lhe serve de inspiração, não poderei fazer um paralelismo entre a obra escrita e a sua adaptação. Ouvi uns rumores de que não lhe é fiel; algo, todavia, é certo: quarenta e cinco anos depois, continuamos a aguardar, expectantes, a solução do misterioso assassinato pelo não menos famoso detective Poirot, uma das mais célebres criações de Christie, aqui interpretado por Albert Finney, que lhe imprimiu um ar em certa medida descontraído, desajeitado e bonacheirão.

  Incontornáveis são também os desempenhos individuais de Ingrid Bergman, que aliás levou o Óscar de Melhor Actriz Secundária, de Anthony Perkins e de Wendy Hiller. Infelizmente, quase todo o elenco já faleceu. Do tempo em que havia bons actores. Sentia-se toda uma escola de representação nas prestações de cada um. Mais do que pensando no reconhecimento futuro, importava fazer, e de preferência bem feito. Um apreciador de beleza feminina não deixará de se render aos encantos de Laura Bacall e de Jacqueline Bisset.




   Há um toque a paródia que aligeira o argumento policial (Bianchi, que após cada interrogatório julga estar-se perante o autor do crime). Não sei em que medida a opção do realizador, Sidney Lumet, terá retirado algum do suspense. Em rigor, embora seja um clássico e queiramos saber quem está por detrás daquele homicídio, nunca parece ser esse o mote principal. Mais do que a narrativa, que se torna apelativa pelo mistério que a adensa, o leque de grandes actores é a grande mais-valia desta história. São uma verdadeira constelação, e aquele final foi como que encomendado à medida para que todos pudessem brilhar, e nem poderia ser de outra forma.

15 de novembro de 2019

O Império Contra-Ataca.


    No sábado, coincidindo casualmente com o trigésimo aniversário sobre a queda do muro da vergonha na Europa, o Muro de Berlim, estive presente na conferência da Nova Portugalidade, O Império Contra-Ataca, na Casa de Goa, perto do Palácio das Necessidades. Já lhes falei anteriormente da Nova Portugalidade, uma associação de defesa da nossa História e do nosso legado pelo mundo, com a qual colaboro periodicamente com alguns escritos. A Nova Portugalidade, doravante NP, tem por hábito organizar conferências, e esta foi a maior por eles já alguma vez organizada. Contou com a presença de um painel verdadeiramente de luxo, pessoas de craveira intelectual e carreira académica intocáveis. Posso-lhes dizer que o programa dava conta do início das actividades pelas 11h30, e começaram bastante depois, tal a afluência. Éramos cerca de cem pessoas. As acreditações pareciam não ter fim.




   A NP decidiu-se pela realização desta conferência num momento oportuno. Soubemos, há semanas, que o governo se prepara para introduzir uma nova disciplina de História no Ensino Secundário, com conteúdos programáticos que contêm uma nítida linha militante e ideológica. Não será difícil imaginar que a alteração à grelha de disciplinas se pautará por políticas revisionistas, que tudo quanto pretendem é retratar-nos como pífios exploradores e genocidas, branqueando o papel que desempenhámos nos Descobrimentos, diminuindo o sentimento de amor e apego à pátria nas nossas crianças e jovens e, por conseguinte, influenciando decisivamente as novas gerações. Acresce a tudo isto aquele epifenómeno da esquerda mais populista no discurso odioso e que agora se faz representar no parlamento.

   Encarando-o como uma investida contra Portugal e o orgulho nacional, a NP decidiu não ficar indiferente. Era tempo de uma resposta pronta e eficaz, que só peca por tardia. Indo ao passado, os oradores não se detiveram demasiado nele, não, que os tempos não estão para isso. Importou-lhes, sobretudo, definir uma visão de futuro e propor soluções. A História deve estar ao serviço do conhecimento, com rigor científico, com precisão, com metodologia, e não ser alvo de manipulações que flutuam ao sabor das mudanças governativas, da dança de cadeiras nos gabinetes ministeriais.


Um painel de luxo



    A queda do Muro de Berlim acarretou a queda da dicotomia EUA / URSS, a mudança de uma era de tensão permanente entre o Ocidente e o Oriente, entre o capitalismo e o socialismo e respectivas áreas de influência. Portugal entrara há três anos na CEE, actual UE, que agora corre o risco de se desagregar. Confirmando-se a saída do Reino Unido, não será difícil supor que outros lhe seguirão os passos. E Portugal? Teremos uma saída de emergência caso o sonho europeu se transforme num terrível pesadelo? Na conferência da NP, falou-se da Portugalidade, esse conceito um tanto ou quanto místico que une os países de expressão e cultura portuguesas. Luísa Timóteo, a presidente da associação cultural Coração em Malaca, aludindo a uma realidade semelhante que eu conheci recentemente no antigo Sião, introduziu-nos entre a comunidade de descendentes de portugueses naquele antigo entreposto comercial, pessoas que mantêm viva a herança portuguesa através do folclore, dos apelidos de família, da gastronomia. Um património de afectos que não preservamos. Em jeito de curiosidade, a senhora Timóteo já escreveu cartas ao Presidente dos afectos, que nem a uma respondeu. É a este património que a Nova Portugalidade dá valor. São estas pessoas, que se sentem portuguesas, não porque um cartão de cidadão o diga, nesse conceito jurídico-administrativo de cidadania importado directamente de França, mas porque o sentem. Porque há uma nacionalidade portuguesa, secular, ancestral, fundada no apego a Portugal e à cultura portuguesa. Será a cidadania mais forte. Tenho a certeza de que o padre António Colimão, nascido em Damão, na antiga Índia Portuguesa, que teve uma intervenção imediatamente antes da senhora Timóteo, concordaria comigo.


Where's Wally? Estou por ali. Find me.


  Além da riqueza das intervenções (deixo-lhes o painel com o programa, e encontrarão cada intervenção gravada na página de Facebook da Notícias Viriato) e da oportunidade da conferência, gostaria ainda de sublinhar o espírito de comunhão, de dever e a dedicação com que aquele grupo da NP se entregou à concretização prática d' O Império Contra-Ataca, que só foi possível com muito labor, muita ida e vinda, sempre com o propósito de que todos se sentissem parte daquilo que ali estava a ocorrer, da primeira à última fila, da primeira à última mesa, durante o almoço.

   Exortava a que todos os que sentem apego à pátria apoiassem a NP, uma associação que está ainda a dar os primeiros passos rumo ao reconhecimento e que conta apenas com a boa vontade dos seus membros, que, com sacrifício pessoal e profissional, se entregam inteiramente aos eventos que realizam e se sujeitam aos mais vis ataques de facções cujo único desígnio é o de destruir Portugal. Esse apoio pode passar apenas pelo acompanhamento e divulgação do projecto da NP, disponível no seu sítio oficial da internet (http://novaportugalidade.pt/) e nas suas páginas das redes sociais: incutir o respeito pela nossa História, repondo a verdade, combatendo o uso indigno da Universidade ao serviço do desensino, contra o conhecimento, a ciência e o esclarecimento honesto dos cidadãos e estimular à edificação da Portugalidade, a união fraterna, igualitária, transnacional, pluricontinental e multiétnica dos povos de expressão e matriz portuguesas.

10 de novembro de 2019

O galego e o português são a mesma língua?


   Na terça-feira, dia 5, participei de uma palestra na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Universidade Nova de Lisboa. Em rigor, tratou-se da apresentação de um novo livro do linguista português Marco Neves, O galego e o português são a mesma língua?, um excelente pretexto para juntar um grupo simpático a discutir a situação sócio-linguística actual da Galiza, que como se sabe é delicada. Moderada por Gabriel André (se é que se pode falar de moderação), galego, contou com as intervenções de Carlos Calhão, também galego, conhecido nos circuitos reintegracionistas, além do autor do livro.

  Eu, à semelhança dos restantes presentes, pude intervir, e fi-lo sobretudo porque não consigo dissociar a questão linguística da política. Pedi licença e introduzi esse elemento, dando uma achega acerca daquele que me parece ser o caminho único possível à Galiza para escapar à aniquilação total da sua cultura e língua: a independência e a emancipação em relação a Madrid.

   Engoli em seco quando Calhão referiu, a determinado momento, que em pequeno comentava à irmã: "Vamos a hablar bien". Na sua cidade, o galego era falado pela totalidade da população. No presente momento, já não o é nas camadas mais jovens. Recentemente, o governo autonómico promoveu a substituição do galego pelo castelhano num desenho-animado dirigido às crianças de mais tenra idade. Qual o objectivo? Parece claro: gradualmente, homogeneizar linguisticamente a Galiza, assimilando-a através de um dos poucos instrumentos que a distinguem de Leão, Castela e das demais regiões da Espanha castelhana: o galego. Remetendo o idioma autóctone a um papel secundário, associando-o à velhice, à exclusão, à ruralidade, incute nos jovens a vergonha pelo seu falar. Não surpreende, no processo, que Calhão tenha crescido com esse preconceito.

   Achei por bem apontar culpas ainda à Xunta da Galicia e à Real Academia Galega, que acabam por compactuar com o governo central: a primeira, com medidas que visam a substituição progressiva do galego; a segunda, procurando aproximar o mais possível o galego da ortografia castelhana e afastando-o, simultaneamente, do português, idioma que deveria ser a verdadeira referência para qualquer norma oficial do galego.


Foto da palestra / apresentação. Sou o rapaz do meio, na primeira fila

   Na Galiza, como Calhão relatou, anos após a transición e já no quadro constitucional actual, escritores foram perseguidos, porque o reintegracionismo, e dentro dele o lusismo, é perigoso. Despertar uma consciência nacional na Galiza já seria terrível para o Estado espanhol; ancorá-la em Portugal, pior ainda.
   A perseguição a quem fala galego não terminou com o fim do franquismo, regime no qual usar qualquer das línguas minoritárias espanholas equivalia a ser preso, torturado, condenado sem garantias de um julgamento justo e equitativo. Livros eram queimados. Um verdadeiro Index, meras décadas atrás. A realidade mudou apenas na aparência e nos métodos. O preconceito e a perseguição continuam lá, porém, assumindo "vestes mais decentes". Calhão, nos inúmeros processos judiciais em que foi parte, teve de pedir vezes sem conta para que o intimassem em galego, que a prática judicial na Galiza é de o fazer em castelhano.

  A realidade galega é-nos próxima geograficamente e distante socialmente. Por lá, há quem lute para poder estudar no seu idioma materno, para poder educar os seus filhos no seu idioma materno, para poder receber informação no seu idioma materno ou aceder a serviços no seu idioma materno. Escrevi "idioma materno" quatro vezes. Não o fiz por acaso. A luta dos galegos pode ser política, mas muitas vezes é-o apenas no domínio do idioma. Estaria tentado a dizer que muitos tão-pouco se importariam de permanecer no Estado espanhol se houvesse garantias reais de protecção do galego, de estímulo ao seu uso pela população. Acontece que o idioma, que é uma arma dos galegos contra o Estado central, também tem sido uma arma de Madrid contra os povos de Espanha. Através do castelhano, procedeu-se a uma política linguicida, uniformizadora.

   Esta luta galega não nos deve ser indiferente. Nós, portugueses, aprendemos a reagir contra Espanha e a negar tudo o que venha de lá. Compreensivelmente. A nossa identidade nacional foi contruída por oposição àquela realidade política. Entretanto, não nos podemos esquecer de que num recanto do que hoje é parte do Estado espanhol nasceu a língua portuguesa, na antiga Gallaecia, que englobava o norte. Virar costas à Galiza será o mesmo que cometer matricídio.

   Felizmente, para nosso bem, tímidos passos vão sendo dados no sentido de uma cada vez maior aproximação entre galegos e portugueses. Da mesma forma que o preconceito e a perseguição não terminaram, apenas se refinaram, também hoje dispomos de meios humanos e tecnológicos que nos permitem trocar ideias e informações. Que nos permitem o que ali se fez naquela sala: conversar, questionar, estimular. Permitir que todos formem uma opinião fundamentada sobre o reintegracionismo, apoiando-o ou rejeitando-o. Galegos e portugueses, nos seus dialectos, com os seus sotaques. Num mesmo idioma. Com um mesmo propósito.

8 de novembro de 2019

A Rainy Day in New York.


   As perguntas que se impõem são as seguintes: como é que um filme ambientado numa Nova Iorque chuvosa e romântica pode desapontar? Como é que uma suite luxuosa com vista sobre Central Park, uma bebida num piano-bar ou um passeio de charrete nos podem aborrecer? Woody Allen foi matreiro, pois jogou com os nossos sentimentos mais primários: a necessidade de amar e ser amados, e soube fazê-lo bem, com um argumento que eu diria, vá, leve, que deixa que os actores possam brilhar sem os esmagar com preocupações excessivas. É uma narrativa pensada para extrair os olhares, as poses, os sorrisos, os estados d'alma. Um filme que se detém nas personagens, em detrimento da densidade do argumento, e personagens todas elas muito jovens, acompanhando as idades dos actores. Entretanto, Allen explora os problemas de afirmação num mundo hermético e elitista como o é aquele da família de Gatsby, com um toque de paixão e erotismo na introdução de uma figura mundana (e profana…): a prostituta, que transpira sensualidade.





  A par da fotografia e dos pormenores da iluminação, que o tornam quase nostálgico e antigo, sofisticado, e complementam o tom romântico, quanto às interpretações tenho alguns reparos a fazer: Timothée Chalamet é um promissor actor da sua geração, mas eu, no seu lugar, tenderia a fugir dos papéis de menino de classe alta, meio dandy, uma vez que é um registo no qual ele vem reincidindo, e isso pode amolgar a sua versatilidade. Vemo-lo como Henrique V no novo filme da Netflix, The King, o que é bom. Elle Fanning sobrepôs "adequadamente" à sua beleza cândida e infantil aquela máscara de loira despistada e até espalhafatosa. Selena Gomez pareceu-me artificial e pouco à vontade.

   Acima de tudo, e sabendo que este filme não agradará a quem espera muito mais de Woody Allen, o realizador quis tão-somente ambientar outro dos seus filmes na amada Nova Iorque, escolhendo desta vez os amores inconsequentes e irreflectidos daquela idade em que já não se é adolescente e nem bem adulto. A cidade que nunca dorme e as comédias românticas não são uma novidade em si. Claro está que não é uma obra-prima, mas é um filme engraçado, que se vê bem sobretudo acompanhado e, se possível, com a cabeça recostada num ombro.

7 de novembro de 2019

Cem anos de Sophia (1919-2004)



Pudesse eu não ter laços 
nem limites

Ó vida de mil faces 
transbordantes

Para poder responder 
aos teus convites

Suspensos na surpresa 
dos instantes.



in Poesia (1944)


   Por tudo aquilo que o seu labor poético trouxe a Portugal, particularmente na nossa história recente, política e literária, Sophia é um dos poucos nomes inigualáveis e incontornáveis. O mar, sempre presente na sua poesia, simbolizava a liberdade, a sua e a dos portugueses; a liberdade em que acreditava e pela qual se bateu sempre.

5 de novembro de 2019

Não sei se não será uma bênção para todos nós.


  Joacine Katar Moreira protagonizou, com outros actores da vida política, uma mudança na casa da nossa democracia. O parlamento tem mais partidos, mais sensibilidades, e tem pela primeira vez uma deputada portadora de uma deficiência que a tornou conhecida. Joacine sofre de uma perturbação da fluência, vulgo gaguez, numa forma particularmente grave que a prejudica sobremodo na expressão oral, na capacidade de se comunicar e fazer entender. Eu pude ouvir a sua primeira intervenção no parlamento, e aquele momento foi doloroso de se assistir.

   Se a deputada se vale do seu problema para se fazer eleger,  não sei. Não tivemos parlamentares que fizeram campanha com a família? Nos EUA, é comuníssimo que os políticos e o eleitorado se valham de características pessoais, profissionais, familiares na vida pública e política. Se foi a estratégia de Joacine, os meus parabéns. Conseguiu-o. O que mais me incomoda nesta senhora nada tem a ver com a sua gaguez, a sua alegada vitimização, os proveitos que tira dela ou, eventualmente, como vem sendo acusada, de exagerar, ou seja, de representar, de tornar o seu "problema de expressão" pior do que ele é. O que me incomoda é o seu discurso perigoso, extremista, manipulador. Historiadora de formação, Joacine sabe bem que a História não tem uma única face. Tem várias. Sabe bem que o que nos deve importar é o rigor científico. E sabe também que não devemos ser juízes de um passado que não vivemos. 

  Joacine, que tanto clama contra a campanha de ódio dirigida a si, é ela própria um agente de propagação de ódio ao querer criar uma cisão na sociedade portuguesa entre aqueles que ela considera os bons, os seus, as tais minorias, e os maus, os homens brancos, masculinos, que ela atira para um mesmo saco. Quem não está com ela, é contra ela. Não, eu não quero que Joacine ponha o seu lugar à disposição. Eu sei que quando não quero ler uma notícia, não a leio. Quando não quero ouvir alguém na televisão, mudo de canal. Quando não quero ser confrontado com determinado conteúdo nas redes sociais, bloqueio. 

  Joacine é mais do que uma deputada. É a porta-voz de uma ideologia e um programa político claro: diabolizar os portugueses, Portugal, a nossa história, o nosso passado. Vai fazer questão de nos lembrar permanentemente de quem fomos, do que fizemos, procurando talvez que nos penitenciemos. Será quase uma inquisidora, de instrumento de tortura nas mãos, neste caso as redes sociais, sempre disposta a acusar e atacar. Os problemas dos portugueses e do país não lhe importam. Importam-lhe, qual segregacionista, os problemas das minorias que protege e às quais dá cobertura. Nesse sentido, não sei se a sua gaguez não será uma bênção para todos nós.

3 de novembro de 2019

The Death and Life of John F. Donovan.


  No Halloween, decidi ir ver The Death and Life of John F. Dorovan, um melodrama insosso. No meu entendimento, a mais-valia deste filme está nos nomes femininos que o acompanham, o mesmo que dizer Natalie Portman, Susan Sarandon e Kathy Bates, porque a narrativa é desinspirada, mesmo recorrendo à nossa tendência para nos deixarmos encantar pelas peripécias de uma doce e carismática criança vítima de bullying, que aspira a ser actor e que se começa a corresponder com um promissor talento da representação, porém, envolto na depressão e no consumo de drogas. O meio em que se movimentava pode ser duro com quem vive de ser galã, e não raras vezes o armário é tão apertado que começa a sufocar quem nele se refugia. Foi o que aconteceu com o ficcionado John F. Dorovan.

  A banda-sonora também me pareceu bastante despropositada e incoerente, porque não é contemporânea à narrativa, que se passa em 2006. Rolling in the Deep é de 2010/11 e Bitter Sweet Symphony, dos The Verve, é de 1997.




  Faltou consistência e expressividade a Kit Harington. Veracidade, talvez. Aquela personagem, o tal John F. Dorovan, parece desprovida de vontade própria. É que tão-pouco é credível em qualquer uma das suas acções. Do mal o menos, além das interpretações femininas, particularmente de Bates, que protagoniza uma cena que redime esta longa do fiasco total, quando explica os motivos do seu afastamento de Dorovan enquanto agente, o pequeno Jacob Tremblay conseguiu ser mais autêntico e credível do que o actor principal. Vou procurar nem comentar o desempenho de Chris Zylka, de outra forma serei tudo menos simpático.

    Com um toque nitidamente autobiográgico, Xavier Dolan falhou em toda a linha.