28 de outubro de 2020

Miguel, um ano depois.

 

  O Miguel morreu perfaz um ano este mês. Na altura, publiquei aqui tudo o que me passava pela cabeça naquele momento. A incredulidade, disparatada até, uma vez que o Miguel estava gravemente doente havia muito tempo, deu lugar a um vazio enorme. O Miguel e eu já não éramos amigos como o fomos anos atrás, como na ocasião tive oportunidade de dizer, mas a sua partida foi quase como um confronto com a minha própria finitude. Afinal, não somos muito mais do que aquilo.

  Somos todos iguais em dignidade e direitos, contudo, há pessoas que fazem cá mais falta do que outras. O Miguel, julgo eu, era uma dessas pessoas. Era um homem atencioso, erudito, letrado. Morreu alguém das letras, da cultura, e é sempre de lamentar quando tal sucede.

  Nem eu e provavelmente nem o Miguel poderíamos imaginar que a sua morte me marcaria como marcou, e a verdade é que marcou. Um ano decorrido, evoco de novo o Miguel, a sua lembrança em mim, e sinto novamente o mesmo vazio, a mesma incredulidade. É realmente verdade que ele já cá não está?

   Querendo-o, poderão ler o seu blogue aqui.

26 de outubro de 2020

Bilbao.

   

   Finalmente, após marcações e desmarcações, o M. conseguiu a sua tão almejada (e merecida) semana de férias. Desde logo pensámos em Estocolmo, na Suécia, um plano que saiu gorado dadas as circunstâncias em que nos encontramos. Sair de Espanha poder-se-ia revelar perigoso, e tememos que fechassem o espaço aéreo e mais não-sei-o-quê; eu, por mim, teria ido, mas a situação profissional do M., de enormíssima responsabilidade, não lhe permitia dar-se ao luxo de ficar retido na Escandinávia.

   Decidimo-nos, então, por Bilbao (Bilbau em português), a capital de Euskal Herria, o mesmo que se dizer do País Basco. Indecisos entre esta cidade, Santander e San Sebastián, considerámos que melhor seria começar pela capital, que além do mais dispõe de um museu de reputação internacional, o Guggenheim de Bilbao. Assim foi.


A Ponte Zubizuri e a Ria de Bilbao

  Bilbao é uma cidade que tem muitíssimo para ver. Tivemos 5 dias e todos eles foram preenchidos. Chegámos na segunda-feira pelas 1h30 e, no dia seguinte, percorremos a cidade, o seu núcleo antigo, o Casco Viejo, com aquelas ruas tradicionais que nos fazem lembrar, em certa medida, Lisboa. Por lá, não deixem de entrar na Catedral de Santiago. Antes disso, e uma vez que o nosso hotel ficava defronte à ria de Bilbao, caminhámos pelas suas margens, apreciando as pontes que as unem. Fomos também ao Miradouro de Artxanda, com as melhores vistas sobre a cidade. Para lá chegar, apanha-se um funicular de percurso íngreme. No mesmo dia, visitámos a deslumbrante Basílica de Nuestra Señora de Begoña, de acesso difícil, ao alto de uma extensa escadaria, a Via Crucis, e o Museo Vasco.


A Basílica de Nuestra Señora de Begoña

   A terça-feira, reservámo-la para Portugalete e Getxo, duas localidades a norte de Bilbao, acessíveis por metro, e que são de visitar. Por lá, além do Museu da Indústria (Bilbao é uma região altamente industrializada, como de resto todo o País Basco), fizemos a travessia pela Ponte de Vizcaya, que une as duas localidades. A ponte é Património Mundial da Unesco. Em Getxo, visitámos o Moinho de Aixerrota e o respectivo miradouro, a Paróquia da Santíssima Trindade e todo o percurso do Paseo Muelle de las Arenas. Antes, em Portugalete, passámos pela Basílica de Santa Maria, pelo Ayuntamiento e pela Torre Salazar. Em Getxo, percorremos as ruas tradicionais, redutos do velho nacionalismo basco, a julgar pela quantidade de bandeiras da região e de símbolos independentistas que verificámos nas paredes das tradicionais casas bascas.


A Ponte Vizcaya

    Na quarta-feira, fomos conhecer a zona mais moderna da cidade, onde estão situados inúmeros museus. Desde logo, uma passagem pelo Parque Doña Casilda é obrigatória. Encontrámo-lo em remodelações, todavia, mantém grande parte das fontes de água activas. É conhecido também como o jardim dos patos. A meio, relativamente, está situado o Museo de Bellas Artes, que nos ocupou o resto do dia. À noite, como de costume, fomos comer os famosos pinchos espanhóis no Mercado de la Ribera. Não deixem também de visitar o edifício do Teatro Arriaga. Ao final da tarde, fomos até ao Azkuna Zentroa, um edifício cujos pilares, 43, têm todos eles formas e cores distintas. Curioso.


Vistas sobre a Torre Iberdrola desde o Parque Doña Casilda

    Acerca do museu de belas artes, reservem uma tarde inteira. Tem tanto para ver... Eu, como apreciador que sou de arte, gosto de me deter ante cada obra; apreciá-la, ler os informes, com serenidade. Consequentemente, levo tempo. Há quem prefira passear-se pelos museus como o faz numa avenida. São opções respeitáveis, claro, mas que não me servem.


O Outono em Bilbao

    Na recta final da nossa estadia em Bilbao, fomos ao Guggenheim, claro está, o grande ex-libris da cidade, que visitei desconfiado, por não gostar de arte moderna, regra geral, mas expectante, por se tratar do meu primeiro grande museu de reputação internacional. Adorei-o. Mil vezes adorei-o. Põe a um canto, passo a expressão, qualquer museu de arte moderna português. Quando lá forem, não se esqueçam de descarregar a aplicação à entrada, que lhes permite efectuar a visita recorrendo à ajuda de um áudio-guia indispensável à compreensão da história e estética do edifício e das obras de arte que alberga. Reservem igualmente uma tarde para ver tudo com a calma e a exigência que o museu merece.


O plátano morto e o Guggenheim atrás 

      Na sexta-feira, antes do regresso passámos pelo Museo Marítimo e despedimo-nos da cidade com uma última ronda.

    Gastronomicamente, degustei o bacalao al pil pil, basco, que deixou muito a desejar, o txipipulo encebollado, de que gostei, e a costilla de euskal txerri com duxelle de champiñones de Paris, estes últimos no galardoado (com estrela Michelin) e prestigiado restaurante Los Fueros. De sobremesa, é imperdoável sair-se do País Basco sem provar a deliciosa pantxineta.


Um pecado de calorias!

     Como tanto eu como o M. gostamos de arte, adquirimos alguns volumes: Picasso, Frida Kahlo, Lee Krasner, um livro de entrevistas de Andy Warhol e uma obra que nada tem que ver com arte, mas que comprámos igualmente no museu de belas artes, sobre Filipe II de Espanha (I de Portugal).

   Bilbao vale a pena conhecer. A cidade é bonita, e o Guggenheim é um daqueles museus que convêm visitar.


Todas as fotos foram captadas por mim. Uso sob permissão. 

16 de outubro de 2020

Adoptar um animal.

 

   Pus-me a reflectir acerca da decisão de se adoptar um animal, seja ele qual for. Aproximamo-nos a passos largos do Natal e, nesta altura, aumenta o número de animais resgatados dos canis. Pelo contrário, nas férias de Verão aumentam os abandonos. Como se as vidas dos animais dependessem das vontades sazonais das pessoas.

   Não devemos adoptar um animal porque o achamos bonito ou fofinho. Isso não implica que não o possamos achar bonito e fofinho. Explico. O principal motivo que nos deve levar a adoptar um animal deve ser a vontade de lhe dar uma família, um lar, cuidados de saúde, uma alimentação adequada, carinho e atenção. E devemos ponderar muitíssimo bem a nossa decisão.

   Os animais não nos dão apenas alegrias; dão trabalho, largam pêlo, fazem xixi e cocó onde não devem, têm de ir à rua pelo menos duas vezes ao dia, arranham móveis, sofás, cortinados, partem objectos, roem alcatifas... Um animal de estimação não é um brinquedo que desligamos quando nos cansamos. Daí regressar ao que referi acima: principal mote, salvar uma vida das ruas, dos canis. Se não estivermos absolutamente conscientes e convictos da decisão, melhor será adiá-la.

    Acredito francamente que há cinco tipos de pessoas relativamente aos animais: as que gostam deles e os querem adoptar/comprar; as que não gostam deles; as que gostam, mas não os querem ter; as que os veneram; as que os maltratam. E faria uma distinção entre o maltratador puro, que se compraz em fazer mal a um animal, e aquela pessoa que perde a paciência, sobretudo porque não ponderou bem todos aqueles inconvenientes. São estes últimos, em grande medida, que acabam por os deixar à sua sorte.

  Os animais são animais. São desprovidos de razão, ao menos daquilo que entendemos por razão. Movem-se pelo instinto de sobrevivência. Não devem ser tratados como pessoas, não devem ser humanizados. Tal levar-nos-ia a um tópico sobre a crise de valores, o individualismo, o isolamento social, entre outros fenómenos, que não convém aqui abordar. Os animais domésticos de companhia são isso mesmo: animais que nos acompanham, que estão connosco, humanidade, há milhares de anos, e que nos são úteis, seja porque pastoreiam o nosso gado, seja porque guardam a nossa casa, seja porque nos tornam a vida mais alegre e preenchida de afectos. Tendo nós um ascendente em razão da inteligência, da autodeterminação, da consciência, da moral, devemos cuidá-los e protegê-los, sabendo, porém, que são animais, que não os devemos substituir às pessoas e ao contacto com pessoas.

   Eu adoptei. Não sou nenhum herói, não sou uma excelente pessoa como vulgarmente se lê dirigido a quem adoptou. Adoptei porque quis ajudar um animal a ter uma melhor existência. Quando assim é, não olhamos à raça, às doenças, aos defeitos físicos. Importei-me com o tamanho porque moro num apartamento. Tão-só. Meio ano depois, foi a melhor decisão que tomei. O Diesel tornou a minha vida mais preenchida e fez-me ter mais responsabilidade. Mudou-me algumas rotina, sim, o que até agradeço. 

    Posto isto, e você, adoptou, quer adoptar, não quer adoptar?

6 de outubro de 2020

Memórias de Adriano.

 

   Ontem à noite, terminei um livro que me fora dado há dez anos pela minha professora de língua portuguesa do secundário: Memórias de Adriano. Ofertar um livro a alguém que está prestes a entrar no ensino superior, para mais em Direito, é o mesmo que assumir que esse livro ficará numa prateleira à espera de um momento oportuno. O bom dos livros é que nunca passam de moda. Foi o que aconteceu com este clássico da literatura mundial da escritora belga Marguerite Yourcenar.

   Memórias de Adriano consiste num desafio extraordinário de Yourcenar, procurando recuperar uma autobiografia perdida no tempo do imperador romano Adriano. É uma biografia ficcionada, não sabendo nós até que ponto Adriano nela se reveria caso a pudesse ler.

  Adriano, aqui, relata-nos a sua vida na primeira pessoa. É o narrador. Não há diálogos. É a retrospectiva de um homem que se aproxima do final e que faz um balanço sobretudo dos quase vinte anos que reinou em Roma, desde o início conturbado, com uma adopção polémica e a eliminação de dissidentes políticos, criando-se-lhe dissabores insanáveis com o Senado. Melhor dizendo, pouco em Roma. Adriano foi o imperador que mais tempo despendeu viajando e instalando-se pelas várias províncias do Império. Interessou-se mais por assegurar o que os romanos haviam conseguido do que em expandir as fronteiras, ao contrário do seu antecessor e pai adoptivo, Trajano. Foi o imperador das artes e do mundo helénico. Nascido na Hispânia, venerava como nenhum outro a Grécia e a sua cultura. Tentou o mais possível recuperar o prestígio de Atenas, tornando-a a capital cultural do Império. Era um homem letrado, poeta. Na sua personalidade, oscilava entre uma capacidade de fazer o bem, de pôr cobro a medidas e velhas leis que lhe pareciam injustas, como, em assomos de raiva, de vazar o olho a um secretário. Vejo-o como liberto de preconceitos. Já sabemos que os romanos aceitavam quaisquer religiões que não pusessem em perigo a sua autoridade (tal aconteceu com o judaísmo, nomeadamente), mas Trajano procurou mesmo conhecer mais acerca da seita que então alastrava no Império, o cristianismo. Desdenhou-a, claro. Um espírito romano não teria como perceber as motivações de um deus dos fracos e dos escravos.

   Yourcenar dedica grande parte da obra a relatar a aventura amorosa de Adriano com o efebo Antínoo, uma relação de pederastia tão comum na Antiguidade. A morte de Antínoo, o imberbe catamita, arrastou o imperador àquilo a que nós hoje designaríamos por depressão, provavelmente. Adriano consagrou-o aos deuses, estabeleceu o seu culto e mandou-lhe construir uma cidade, Antinoópolis. 



   

   Memórias de Adriano é de leitura indispensável em quem quer ter conhecimento do melhor que se escreveu lá fora, e é um dos melhores romances do século XX. Yourcenar recheou-o de inúmeras referências políticas, literárias e filosóficas da Antiguidade. Nesse sentido, é também uma belíssima fonte de informação sobre aquela época. Devo dizer que comecei a leitura desconfiado, mas determinado, e terminei-a com um sentimento de empatia pela figura de Adriano.