30 de novembro de 2012

Retrocessos.


   Acreditava, até há bem pouco tempo, de que as conquistas civilizacionais eram isso mesmo: vitórias adquiridas após séculos (em grande parte dos casos) de dor e de luta. O Homem segue e avança. Negar dados irrefutáveis nunca deu bons resultados. 
   
   Se nos remetermos há trezentos anos, em Belém, provavelmente daríamos com um típico auto-de-fé, rodeado da nobreza e do povo, quais cúmplices de terrível espectáculo. O que movia as massas, na época, refinou-se. Em todo o caso, houve mudanças significativas, desde os regimes políticos à própria consciencialização dos direitos mais elementares de todo e qualquer ser humano.

   Posto isto, foi com espanto que li - e ouvi - de que se pretende introduzir uma espécie de taxa ou propina no ensino obrigatório, mormente no ensino secundário. Não sendo mera especulação jornalística, tantas e tantas vezes alimentada pelo Godzilla sensacionalista, trata-se de um perigo iminente e de uma situação particularmente grave. Sob um olhar jurídico da minha parte - totalmente despretensioso - eu diria que além de injusto e até mesmo imoral, está-se perante um caso, a comprovar-se, de clara inconstitucionalidade. O artigo 73º nº 1 da Constituição enuncia claramente de que todos têm direito à educação, sendo que neste caso releva especialmente o artigo 74º nº 2 al. a), de onde se infere o preceito de que, e transcrevo, «na realização da política de ensino incumbe ao Estado: garantir o ensino básico universal, obrigatório e gratuito»; na al. e) fala-se mesmo de estabelecer a gratuitidade de todos os graus do ensino.

   A menos que a Constituição seja submetida a uma revisão - o que se assemelha improvável no momento - qualquer diploma aprovado pela Assembleia da República estaria ferido de inconstitucionalidade.

   Lamento que as propostas tenham chegado a este ponto. Não haverá futuro auspicioso algum para um país que relegue a sua educação, destruindo-a, afastando cada vez mais os cidadãos do ensino já de si debilitado por décadas de regime conservador e autoritário. 

   Nas palavras de Oliveira Salazar, "um povo culto é ingovernável".
   Que se tirem as devidas ilações.

26 de novembro de 2012

Contrastes.


   Recordo-me, em criança, de aguardar pelo início da quadra festiva. Se houvesse ano sem luzes, cor, brilho e espírito natalício, preparava-se um fim antecipado. No fundo, o ano civil corria em direcção a Dezembro e nele encontrava a sua razão de existir.

  A minha infância prolongou-se no tempo. Quando, à partida, deveria ser mais responsável e consciente do inerente processo de crescimento, continuava a negligenciar que era esperado, da minha parte, um comportamento comedido. Isso revelava-se, também, aquando da interminável lista de presentes que apresentava aos pais. Por hábito, nunca recebi presentes da mãe e do pai. Preferiam levar-me às grandes superfícies comerciais para que comprasse o que me aprouvesse.
   Esqueciam-se, porém, de que o valor da abnegação tem demasiada importância, para mais em idades tão moldáveis, onde o seu ensino deve ser ministrado com todo o cuidado.

 
   Os anos passaram e a magia foi se perdendo. Não foi absorvida pelo carácter real do que deveria ser uma comemoração do bem, também ele bastante deturpado na quadra em si, mas pela fugacidade dos sentimentos humanos, voláteis como as horas, hipócritas como as duas faces de uma moeda suja que circula de mão em mão.
 
   E as solenidades começam e terminam.
   A dor passa no atalho à rua da festa principal.

20 de novembro de 2012

I need... me.


   Distante. É desta forma que me tenho sentido nos últimos dias. Na realidade, a extrema exigência que deposito no que faço, o que me traz alguma ansiedade, deu lugar a uma serenidade inabalável. Mais do que nunca, sinto-me tranquilo. Esse estado de leveza espiritual advém do reconhecimento de que o que faço é mais do que o que a maioria faz. Não que me conforte, todavia, alivia.

   Pela primeira vez, de forma séria, tive uma crise vocacional. Não que ela nunca tenha surgido em pensamentos, mesmo que tímidos, contudo jamais o fora assim. Dei por mim a ponderar acerca do que quererei fazer quando a licenciatura terminar e não me revejo nos cargos típicos ou, pelo menos, expectáveis. No inverso, observo exemplos raros, verdadeiros, de pessoas que reverteram o sentido do óbvio e ousaram fazer aquilo que gostam e de onde retiram um verdadeiro prazer. Torna-se inspirador, sobretudo nestes momentos em que o mínimo feixe de luz é um bálsamo que renova a alma.

   A entrada numa livraria despoletou esta consciência do certo e do errado, até agora uma nuvem acinzentada que pairava, mas que não conseguia encobrir o Sol. O momento em que reparas, ao abrir um livro, que aquele amontoado de palavras te pertence inexoravelmente. O momento em que sofres ao deixá-lo na prateleira, preterindo-o por outro que exige de ti a atenção e o dever. Nesse compasso de tempo, vês profissões e imaginas-te à secretária, de chocolate quente na mão, investigando e pesquisando, acrescentando algo de novo ao que se sabia, inovando incessantemente. O gosto é o fio condutor do que te faz mover pela procura.

   No dia seguinte, estou em paz. Encontrei o ponto de equilíbrio. Chamá-lo-ei de princípio da certeza. Não está totalmente preenchido, no entanto, arriscaria a dizer que vejo o caminho.

15 de novembro de 2012

Eles como nós.


   Na época das matrículas, nada combinei. Fi-la sozinho, em casa, através da internet, e não programei horas, minutos e segundos com ninguém. De resultado, fiquei numa turma sem nenhum rosto conhecido. Necessitava de mudar algo. Era urgente para o meu equilíbrio.

   Em consequência disso, aproximei-me de uma colega. Sentámo-nos juntos algumas vezes e isso tornou-se uma rotina. Também o facto de ser cabo-verdiana de ascendência e eu filho de um moçambicano ajudou a que tivéssemos algo mais do que a licenciatura em comum. 
   Um terceiro elemento, um colega, rapaz, que já conhecia desde o primeiro ano, efectivamente, e de vista há bastante tempo porque mora perto de mim, começou, também ele, a sentar-se ao nosso lado nas aulas teóricas. Desde cedo, apercebi-me do seu interesse pela minha nova amiga. Aos poucos, houve uma receptividade da parte dela, e não tardou em corresponder às claras evidências do seu afecto. Em breve começariam a namorar.

  Parecia-me algo sólido. Ele, sossegado e estudioso, inteligente. Ela, compartilhando das mesmas características, embora seja mais solícita e extrovertida. Combinavam, a meu ver.

   Na sexta-feira passada, no final das aulas, ele saiu e deixou-a para trás. Estranhei e comentei subtilmente o ocorrido, deixando, como é evidente, uma margem natural à necessária privacidade deles. Não obtive nada de esclarecedor. Há dois dias, encontrei-a perturbada quando cheguei à faculdade. Deduzi o motivo. Pediu-me que não comentasse com ninguém por vergonha. Sentia-se humilhada, rebaixada na sua humanidade, inferiorizada. Contou-me, então, que o rapaz dissera aos pais que a namorava. A mãe, sabendo que era mulata, deixou de falar com o filho, chantageando-o. Argumentou que jamais admitiria ter netos mulatos e que ela o desviaria do caminho (nem sequer a conheceu). Tudo o que quisesse dizer ao filho fazia-o através do pai, que em casa, e enquanto o namoro durou, servia de mensageiro.
   A pressão foi demasiado forte - para mais sendo dependente emocionalmente da mãe. Atreveu-se em contar-lhe os verdadeiros motivos do fim da relação, não a poupando ao vexame.


   Quando mo disse, de início não quis acreditar. Parecia-me uma história romanceada de algures dos anos sessenta do século passado. Mais tarde, vendo a veracidade nos seus olhos sinceros, fui tomado de uma aversão súbita. Um misto de cólera e asco.
   Ela, talvez por estar demasiadamente ligada a ele, tendeu em desculpá-lo. Como fazê-lo, tratando-se de um estudante universitário, esclarecido - na nossa licenciatura - onde tanto lidamos com direitos, deveres, liberdades e garantias? Não fora seu dever ensinar à mãe o certo e o justo? Não falarei em sentimentos porque esses, claramente, não existiam da sua parte.

   Acreditei nas suas dificuldades em erguer-se de tão abrupta queda. Quando nos retiram a condição humana, perdemos os valores nos quais fomos educados e julgáramos ter como adquiridos. Começou a reconstruir-se de novo. Em construir a mulher que é. Agora, despida de medos maiores.

12 de novembro de 2012

Acordar na Rua do Mundo



madrugada. passos soltos de gente que saiu
com destino certo e sem destino aos tombos.
no meu quarto cai o som depois
a luz. ninguém sabe o que vai
por esse mundo. que dia é hoje?
soa o sino sólido as horas. os pombos
alisam as penas. no meu quarto cai o pó.

um cano rebentou junto ao passeio.
um pombo morto foi na enxurrada
junto com as folhas de um jornal já lido.
impera o declive
um cano foi-se abaixo
portas duplas fecham
no ovo do sono a nossa gema.

sirenes e buzinas. ainda ninguém via satélite
sabe ao certo o que aconteceu. estragou-se o alarme
da joalharia. os lençóis na corda
abanam os prédios. pombos debicam
o azul dos azulejos. assoma à janela
quem acordou. o alarme não pára o sangue
desavém-se. não veio via satélite a querida imagem o vídeo
não gravou
e duma varanda o pingo cai
de um vaso salpicando o fato do bancário.



Luiza Neto Jorge, in Poesia, Assírio & Alvim

9 de novembro de 2012

Dia D - esgaste.


   Tenho passado os últimos dias envolto em livros doutrinários sobre mil e uma coisas. Por vezes, a complexidade das matérias torna-as tão diferentes entre si que me leva a crer que estudo para bem mais do que uma licenciatura. E, se em dois mil e dez encarava tudo como um enorme e estimulante desafio, semelhante a uma máquina, a qual estava sob a minha direcção e comando, tornei-me aos poucos um escravo do próprio engenho que construí, encontrando engraçados paralelismos com as palavras do meu instrutor de condução na época em que estava a aprender a dirigir.

" És tu que mandas no carro e não o carro que manda em ti. "

   Isso levou-me a dominá-lo.

   Hoje foi dia de teste. Um teste horrível que levou uma interminável hora. As minhas mãos revezavam-se por entre diplomas avulsos e demais códigos. Tremi sem ter frio, suei sem ter calor. Sofri por sentir que não estava minimamente preparado, pese embora soubesse que não conseguiria dar mais de mim. Num momento, lembrei-me da mãe e dos avós, tentando ganhar algum ânimo (ou inspiração) que teimou em não surgir. Na fila imediatamente abaixo da minha estava o rapaz italiano, de dicionário português - inglês ao lado. Senti-me um privilegiado, mas, por outro lado, estudar noutro país é tão enriquecedor... se ele for inteligente, não levará esta etapa muito a sério. O mote será a diversão.

   Só quis entregar e sair. Sair para onde ninguém me visse. Sair, afinal, para os recantos mais escondidos daqueles jardins, onde me perco no manto dos meus pensamentos. 

   É bom não ouvir vozes, a menos que seja a nossa a cantarolar baixinho. Não dizem que quem canta seus males espanta? 
   É bom não ver vivalma. 
   É bom ter o nada como companhia. No meu caso, a excepção sempre foi a regra.
   
   Não me importo.

5 de novembro de 2012

D. Isabel de Portugal.


   Aquela a quem chamaram "a mulher mais bela de seu tempo", D. Isabel, nasceu em 1503, filha do rei D. Manuel I e da rainha D. Maria, por sua vez filha dos Reis Católicos, Fernando e Isabel.
   D. Isabel passou uma infância feliz na companhia dos pais e dos vários irmãos, uma prol numerosa com que o casal régio foi abençoado. No novo Paço da Ribeira, destruído séculos depois no célebre terramoto de Lisboa, D. Isabel tornar-se-ia progressivamente numa jovem bonita e instruída, aprendendo latim, a doutrina cristã e os clássicos que surgiam nestes tempos de Renascimento. Além de bela, D. Isabel era cultíssima, possuindo uma vasta e completa biblioteca, composta por obras de cariz espiritual, destinadas à oração e ao enriquecimento pessoal, bem como obras mais mundanas que eram do gosto da infanta, nomeadamente sobre cavalaria.
   A primeira experiência amarga da sua vida viria a 7 de Março de 1517, com a morte da sua mãe no parto do infante D. António, seu irmão. Um terrível prenúncio...

   D. Maria deixou no seu testamento, e numa clara mensagem a D. Manuel I, a vontade de que D. Isabel casasse, sim, mas com reis ou filhos legítimos de reis, numa clara alusão ao filho bastardo do falecido D. João II, primo do monarca, que não era, de todo, da preferência da falecida rainha. Com a morte de D. Maria, D. Manuel I dotou a sua filha predilecta de Casa própria, de forma a que esta assumisse algumas funções governativas. Além disso, encetou o seu casamento com Carlos I, rei de Castela e Aragão, que viria a tornar-se o grandioso Carlos V, Imperador do Sacro Império Romano-Germânico... A morte de D. Manuel I, a 13 de Dezembro de 1521, não inviabilizaria o projecto: D. João III, irmão de D. Isabel e novo rei de Portugal, prosseguiria com os desejos de seu pai.

   Por fim, a 15 de Outubro de 1525, D. Isabel casaria com Carlos V através de um acordo matrimonial. Recorde-se de que os cônjuges eram primos. A mãe de D. Isabel e a mãe da Carlos V eram ambas filhas dos Reis Católicos.
   Há pormenores que não queria deixar de salientar: desde sempre se vaticinou um destino imperial, digamos, para a pequena infanta portuguesa. A isto se referiu o cronista Damião de Góis e Gil Vicente, na obra Tragicomédia da Exortação da Guerra, em 1514, quando a princesa tinha apenas onze anos. Ambos destinaram-na, quase profeticamente, aos braços do maior senhor da Cristandade.
   Obtida a dispensa papal devido à consanguinidade entre os primos e depois da infanta ter aceite os termos do contrato, a sua numerosa comitiva acompanhou-a até Espanha. D. Isabel tinha então 22 anos e uma enorme ânsia de viver, rodeada de amas e servidores dedicados. Saliente-se que no primeiro encontro com o Imperador, D. Isabel, belíssima, envergou um vestido branco que encantou todos quantos estavam presentes no momento. Ao vê-la, consta-se que Carlos V ficou imediatamente agradado com a magnificência da presença da sua esposa. Os noivos encontravam-se em Sevilha, no Palácio de Alcázar, depois da viagem de D. Isabel que durou mais de um mês.

   Efectivado o casamento, o casal viveria dias muito felizes, deslocando-se de Sevilha para Granada, no Palácio de Alhambra, onde a temperatura era mais agradável, devido ao calor. Carlos V e D. Isabel passavam o tempo a sorrir e acredita-se que a estima e o amor entre os dois brotou desde o primeiro momento.
   O primeiro fruto destes momentos de carinho, em Granada, viria em 1527, com o nascimento do infante Filipe (futuro Filipe II de Espanha, I de Portugal...). Para a eterna posterioridade ficou esta engraçada premissa: como se sabe, D. Isabel foi criada por sua mãe, sendo esta filha dos austeros Reis Católicos. No momento do parto, ordenou que lhe colocassem um lenço no rosto para que não fosse visível o seu semblante de dor e cerrou a boca para que dela não se ouvisse um único gemido. Interpelada pela parteira que a aconselhou a que gritasse no momento de dar à luz, D. Isabel terá respondido, em português: " Não me faleis tal, minha comadre, que eu morrerei mas não gritarei! ". Carlos V terá ficado eufórico, numa época em que o nascimento de um varão era tudo, sobretudo sobrevivendo à elevadíssima taxa de mortalidade durante os partos, da progenitora e dos recém-nascidos.
   Um ano depois, em 1528, nasceria a segunda filha do casal imperial, D. Maria, nascimento ao qual Carlos V não pôde assistir por estar em Aragão a preparar-se para a coroação pelo Papa. D. Isabel habituar-se-ia a a viver os momentos de dor e alegria dos nascimentos dos seus filhos.




   D. Isabel, contudo, não foi educada apenas para ser mãe e esposa. Herdando o sangue de sua avó materna, Isabel, A Católica, D. Isabel era uma mulher decidida, honrando a educação dada nesse sentido por D. Manuel e sua mãe, D. Maria. A regência assumiria com a partida de Carlos V para Itália, de 1527 a 1529. Toda a documentação da época refere que D. Isabel era uma profunda conhecedora dos problemas dos reinos peninsulares, defendendo intransigentemente o poder régio e a suprema autoridade do monarca, sobrepondo o bem comum aos interesses particulares. A nível externo, a sua sensata actuação foi decisiva na defesa do litoral da Península e do norte de África das investidas da pirataria.

   Enquanto mãe, viveria a primeira dor da morte de um filho em 1530, quando o infante Fernando faleceu após o nascimento. O afastamento do casal régio devido aos assuntos de Estado não diminuiu o carinho entre ambos. Nos poucos momentos em que estavam juntos, Carlos V presenteava a sua esposa com mais um rebento no seu ventre. Contudo, a mortalidade infantil ceifaria muitas dessas vidas. Ainda assim, em 1537 nasceria a infanta D. Joana, de saúde forte. Seria a última filha que D. Isabel veria crescer.
   Até à sua precoce morte, o destino ditaria o sofrimento. Em 1538, após um parto que a deixou muito debilitada, teve outro filho varão. O seu nascimento seria imensamente celebrado, uma vez que a saúde do herdeiro, Filipe, agora com onze anos, revelava-se muito frágil. Porém, mais frágil ainda nasceria este bebé, que morreu poucos dias depois. Tristeza ante tristeza, teve D. Isabel conhecimento também da morte de sua irmã, D. Beatriz. A imperatriz, então, ordena a celebração de honras fúnebres em Madrid e Barcelona.
   Decerto as ausências constantes de Carlos V amargurariam D. Isabel, que amava ternamente o seu esposo. Reconciliado com o rei de França, Francisco I, com quem mantinha uma velha inimizade, Carlos V regressa para os braços da sua Imperatriz, engravidando-a de novo, derradeiramente.

   O casal deslocou-se para Toledo, onde, em 1539, D. Isabel é tomada por fortes febres que a consumiam. Os médicos previram o pior. No dia 21 de Abril nasce um menino morto. Já fragilizada pelas febres, segue-se uma enorme hemorragia. As febres cessaram no dia 29 de Abril. Prevendo a morte, a Imperatriz confessou-se e recebeu a extrema-unção. Morreria a 1 de Maio de 1539, com a mesma idade e nas mesmas circunstâncias trágicas que vitimaram a sua mãe.

   Perante tão grande tragédia, a valentia e a coragem de cavaleiro de Carlos V soçobraram diante do corpo da sua falecida esposa, que não conseguiu ver. O corpo percorreu um cortejo fúnebre acompanhado de perto pelo Imperador e pelo pequeno Filipe, de doze anos. D. Isabel repousaria na cidade onde foi mais feliz, Granada.
   Conta-se que chegado o cortejo ao local final, a urna foi aberta para verificação da identidade do corpo. O elevado estado de putrefacção do mesmo provocou a agonia dos presentes e o pasmo: a mulher mais bonita do seu tempo estava irreconhecível. Um nobre ficou de tal forma perturbado que, após a morte da sua esposa, recolheu-se para sempre na Companhia de Jesus, pelo trauma da visão e por não conseguir servir mais a outro senhor.

   D. Isabel marcaria a história da Europa do século XVI. A memória colectiva perpetuá-la-ia. Jamais renegou as suas origens lusas. Educara o seu filho Filipe, em especial, na língua portuguesa, rodeando-o de aias e amas da sua terra natal. Esses detalhes estimulariam o seu amor pela terra da sua mãe, reino que tanto quis... e conseguiu.

1 de novembro de 2012

November night.


   Os dias passados a aguardar a coragem para subir ao telhado chegaram, por fim. Remeti-a para um momento ulterior à passagem do próprio medo. Afinal, não ousaria desafiar a lei da gravidade se não me estendesses a mão. Convém referir que tinha frio e estava nervoso. Sabes, fosse Verão e a minha mão não conseguiria apoiar-se na tua.
   As escadas do velho sótão rangiam às pancadas graves dos nossos pés no soalho de madeira envelhecido. A falta de suspense e a monotonia típica da minha vida levaram-me a acreditar que era protagonista de um filme de acção de baixo orçamento. Devo dizer que a cortina branca, de linho, (ou seria azul?) impelia-me a uma apreensão súbita, apesar de saber que, a teu lado, tudo seria factível.

   Não será necessário referir que o mais importante no momento, para mim, era experimentar algo de novo. A avó costumava avisar a mãe de que urgia deixar-me viver mais. Viver, entenda-se, no sentido de ousar ir além da cerca de madeira intransponível que me ergueram. Como nunca me ensinaram a pular um muro, raso que fosse, constrangia-me a ficar inerte.
   Fomos pelas divisões contraluz. Tornaria tudo mais emocionante. Agora, parando, poderia sentir o meu batimento cardíaco.

   Nunca fiz nada com vista aos resultados. O luar, na pele, bastar-me-ia. Mas, graças a ti, deixei o temor na esteira dos meus fantasmas.