30 de novembro de 2011

Blue headphones.


Consegui alcançar-te à saída do metro. Caminhavas na calçada húmida e brilhante do orvalho que caíra pela manhã. Acho graça à forma como andas, com as mãos nos bolsos e o olhar centrado no horizonte. Pensei duas vezes se haveria de te tocar com a mão. Antes de baixares o som dos headphones, consegui aperceber-me de que se tratava de metal. Passaste-me os auscultadores enquanto nos dirigíamos para a faculdade e ligaste a música. Senti uma vontade de conhecer mais dos teus gostos musicais, acabando por tecer um comentário que confesso agora não corresponder totalmente ao que sinto. Será que por ser uma parte do teu mundo consegue ter influência em mim? É que gostei. Gostei sem ter gostado. Gostei porque te pertence em parte.

O cabelo ficou no ar. Os headphones azuis, metalizados na parte do ouvido, comprimem o teu cabelo e conferem-lhe um jeito especial. Depois, ao retirá-los, o gesto tão característico teu de o ajeitares subtilmente.
Abordados à entrada por uma rapariga horrorosa. Arrogo-me o direito de sentir ciúmes. Sem legitimidade, sei-o melhor do que ninguém, mas só há algo pior do que uma mulher fácil; um homem desesperado. Não dissimulei o incómodo, o desconforto, a quase vontade de afastá-la só com o olhar. Um medo de te perder para uma vadia qualquer. Uma insegurança que persiste.

Slipknot, AC/DC... sim... e mais o quê? A esta altura, o sumo já estava esquecido em cima da mesa. Sorrias pelo facto de eu não encontrar qualquer interesse nas músicas de que gostas. Conseguiria ficar durante a tarde inteira, no bar, a ouvir metal e eletrónica. O desdenhar era quase implícito, fazia parte do momento.
Seguimos para a sala e o teu passo sempre alinhado com o meu. Hoje como ontem. E, falando em sinais, foi o primeiro que me revelou o que queria saber. Nunca me deixaste para trás. Nem para falar com os teus amigos.
Aprendi a valorizar pormenores impercetíveis pela maioria. Há mil formas de se gostar de alguém e as manifestações desses sentimentos são consequentemente diferentes. A importância material somos nós que a damos. Prefiro-te assim.


27 de novembro de 2011

Destruíram um pouco da minha infância.




O mano jogava isto com amigos, em casa, quando eu era criança... Que imagem imaculada eu tinha do Mario e daquelas tartaruguinhas dos jogos dele, já depois quando jogava Game Boy, Nintendo 64, Nintendo GameCube... Enfim, destruíram um pedaço da minha infância, ahahah.

25 de novembro de 2011

... Me deixa de quatro no ato ...





"Lança menino, lança todo esse perfume
Desbaratina
Não dá p'ra ficar imune
Ao teu amor,
Que tem cheiro de coisa maluca...

Vem cá meu bem,
Me descola um carinho,
Eu sou neném,
Só sossego com beijinho,
Vê se me dá o prazer
De ter prazer comigo...

Me aqueça!,
Me vira de ponta cabeça,
Me faz de gato e sapato
E me deixa de quatro no ato,
Me enche de amor, de amor
Oh!... "



Rita Lee (Lança Perfume)


24 de novembro de 2011

Strike.


Falar dos trabalhadores, em Portugal, quase sempre pressupõe um duplo entendimento: ou se é favorável aos seus direitos, ou se é contra, no fundo, a entidade patronal, aqueles malvados capitalistas sanguessugas do suor e do sangue dos seus humildes servos. Todavia, nem sempre é assim. A mim, é-me completamente indiferente o facto de haver greves ou não. Estou solidário com os problemas do país, no entanto, quando afirmo de que não me faz qualquer diferença, refiro-me a que esta greve geral não terá um impacto real na minha vida. O mesmo não poderão dizer alguns colegas e milhares de pessoas que diariamente utilizam vários transportes públicos, nomeadamente o metropolitano e que, por isso, faltarão aos seus locais de trabalho, aulas ou, na melhor das hipóteses, chegarão atrasados. Indiretamente, também acabo por ser prejudicado, uma vez que amanhã grande parte dos alunos faltarão, logo, não teremos aulas que neste momento seriam da maior importância. Sim, eu gosto de não ter aulas, mas sinto o peso da responsabilidade que esta greve terá nos meus estudos. Alguns professores irão, evidentemente, dar as suas aulas; mas uma boa parte dos alunos não terá transporte e ficará fortemente penalizado não assistir às aulas que serão lecionadas.

Dirão: "A greve é um direito dos trabalhadores!" Com certeza, artigo 57º / 1 da Constituição da República Portuguesa. Contudo, terão ideia do que o Estado deixará de arrecadar com a paralisação de amanhã? Os milhões e milhões de euros que serão perdidos? Numa altura crítica e gravíssima, em que o país atravessa a sua pior crise desde o 25 de Abril, em que temos um empréstimo descomunal com o Triunvirato, vulgo troika, dão-se ao luxo de parar o país por vinte e quatro horas. Depois, lá será uma trecha do empréstimo do Triunvirato que pagará a patetice de amanhã! E o patronato, por que motivo não terá o mesmo direito de fazer greve e fechar as fábricas? Artigo 57º / 4 da C.R.P. Resquícios do programa do MFA que ainda continua, trinta e sete anos depois, na Lei Fundamental... Em vários países da Europa desenvolvida (de que Portugal não faz parte, aliás, como diria um arquiteto amigo da mãe, "Portugal é um país desenvolvido do norte de África..."), a greve do patronato é permitida e até há umas considerações europeias favoráveis ao designado lock-out.

Quando se pedem sacrifícios, param um país por capricho. Ficarão sentados a beber cafés e vinho, fumar e, naturalmente, apreciar as pernas gostosas das colegas funcionárias... Com sorte, o decote estará suficientemente generoso para desvendar os formosos vales onde se perderiam de deleite...

Como diriam os romanos - e bem - "os povos da Hispânia não se sabem governar."
Tinham razão.


21 de novembro de 2011

Decline.


As luzes de Natal brilham sobre os corpos em movimento, esbatidas num todo pela iluminação geral. 
Vão e vêm com sacos de compras; alguns sem nada nas mãos. Nos corredores da ampla superfície comercial, vidas agitam-se indiferentemente à passagem do tempo ou à contenção esperada. Queimam-se os últimos cartuchos de uma época com menos brilho e fulgor.
Sigo lado a lado com a prima. Jurei que não iria comprar nada de que não necessitasse. Não cumpri. Olhando para o estojo, de manhã enquanto estudava, vi que a caneta verde brilhante não escrevia mais, bem como o azul claro. As cores, nos cadernos, dão vida a matérias densas e elaboradas, suavizando o que de si carece de algo mais pessoal. Sempre gostei de escrever com cores discretas, contudo coloridas o suficiente. Não sinto o estigma que o peso da responsabilidade e da postura assim o exigem. A quantidade e a diversidade dos materiais expostos alicia a mente dos mais consumistas. Comprei duas canetas.

Caminhando por entre as lojas, a vontade de entrar e comprar tornou-se mais real. A música ambiente, leve, não era o suficiente para conter algum incómodo e desconforto que sentia. Entrei em bem mais do que uma loja e experimentei peças e peças de roupa. Comprar sem precisar, não é de todo bonito, mas consola. Há quem coma para esquecer; depois, há quem utilize outros artifícios bem menos calóricos...

Terminei o dia com mais sacos do que aqueles que pretendia e com mais roupa do que precisava. Precisaria de alguma, realmente? O peso nas mãos tornou-se insustentável, mesmo compartilhando com a prima a quantidade de sacos que me pertenciam. Estando sem o casaco vestido, conseguia sentir um calor no corpo, tomando-me de uma vontade inexplicável de chegar a casa, arrumar toda a tralha fútil, relaxar com um banho tépido e dormir.

Já em casa, olhei para tudo o que acabara de comprar e apercebi-me do quão vagos podem ser os nossos anseios e até mesmo os desejos. Afinal, um pouco de nada sobrepõe-se ao nada já existente e nem todos os nadas conseguirão fazer um muito. Espera... Talvez o consigam fazer, mas essas construções não são sólidas e quando perderem o que as sustem, o estrondo poderá ser audível a longa distância.


17 de novembro de 2011

Castanhas.

"Olh'á castanha, quentinhas e boas!"


A frase soou-me a um velho cliché batido vezes sem conta ao longo do dia. Gosto da proximidade e gosto, sobretudo, de sentir que algo foi dito para mim. O vendedor, de gorro azul na cabeça, esfregava as mãos uma contra a outra de modo a aquecer-se e a suprir a falta de um casaco quente. O carrinho das castanhas fumegava e até o negócio do velho fruto outonal não escapou à crise. Indiferentemente aos apelos do pobre vendedor, pessoas passavam apressadas em direção ao metro e à paragem dos autocarros.

Há algum tempo que não ficava na biblioteca depois das aulas. Hipocrisia e desonestidade intelectual se não dissesse que faltei à última aula. Enfastiado por tamanha presunção de um assistente balofo, decidi dar a preferência ao seu mestre e, na falta deste, não frequentar as suas aulas de substituição. Tédio por tédio, nada como uma hora na biblioteca da faculdade.
À medida em que arrumava os apetrechos na mala, o R. passou por mim e disse-me um "Olá", quase interpelando-me fugazmente, mas intimidando-me por não querer demonstrar qualquer solicitude da minha parte. Ficaria o estojo na bancada inferior não fosse o seu aviso.

Os meus planos seriam os de estudar sozinho, no sossego inquieto da biblioteca. Os livros, arrumados escrupulosamente segundo temas e autores, desafiam a paciência mais inequívoca. De soslaio, estudantes olham-nos desconfiadamente, talvez perturbados pelos nossos cochichos, numa altura em que me rendi consciente à sua presença. Sorrateiramente, ambos nos sentámos numa mesa entre duas grandes estantes metálicas de livros cujas lombadas azuis iguais em toda a extensão da prateleira denunciam uma coleção ou coletânea.
O modo despreocupado em como lançou a mochila para cima da mesa levou-me a pensar que o barulho indiciara algo partido, mas o que poderia ter na mochila que fosse quebrável? Reparei nos seus braços, agora desnudos sob as mangas da camisola dobradas pelo cotovelo. Os pequenos pêlos castanhos, quase incolores, surgiam por entre as veias dos seus braços, culminando nas mãos mais viris. Vi, pela primeira vez com atenção, as suas mãos. Os dedos, esguios mas fortes, revelam a uma robustez mal dissimulada por entre a sua voz terna e suave. Um misto de paz e guerra sem glória.
Não nos detivemos muito tempo na biblioteca moderna. Fora-lhe um pretexto assim como para mim uma tarde que terminou em sobressalto.

"Quero um cone, se faz favor!"

Contrariando as leis mais básicas da boa comercialização de produtos alimentares (talvez até ilegal) tive, finalmente, o meu cone de castanhas embrulhadas numa qualquer folha das Páginas Amarelas.
Ficámos a comer as nossas castanhas à entrada do metro. As luzes alaranjadas dos postes elétricos, cor de fogo, iluminavam-lhe o rosto. O cabelo, revolto, agitava-se à mínima corrente de ar. 
Denunciei o óbvio: não sei descascar castanhas assadas. Soltámos pequenas risadas nervosas e tímidas, mais pela conjuntura que nos rodeava do que propriamente pela minha falta de jeito.
A sua ideia do passeio depois das aulas fora boa. Aprendi a descascar castanhas e descobri que ficar de noite, na rua, a comer castanhas sem pensar em mais nada pode ser surpreendente.


14 de novembro de 2011

Storm.


Em casa restava eu e a bivó. Todos os outros teriam saído não há muito tempo. O largo corredor do piso superior da casa dos avós tivera desde sempre um efeito nefasto em mim. As amplas janelas, uma das quais coberta por uma cortina alva semi-transparente, agitava-se sob uma corrente de ar que entrava do vidro mal fechado. O Simba tremia nas minhas mãos e conseguia ouvir o som dos meus passos que mais pareciam vindos de alguém que caminhava atrás. O espelho, à época colocado na parede direita, refletia um quadro surrealista de um velho pesaroso, adquirido algures nos meados dos anos 40 pelo bivô, então falecido.

O monopólio, abandonado no chão do quarto, tinha provocado risadas no Hugo, um rapaz surdo-mudo que ficava com a avó enquanto os pais saíam. Embora mais velho do que eu em uns largos anos, apreciava a minha companhia assim como eu apreciava a sua. E, a incapacidade auditiva tornava-o mais infantil, porventura até mais do que eu, apesar dos meus cinco anos. As notas esvoaçavam por cima do tabuleiro e alguns hóteis vermelhos e casas verdes jaziam derrubados, por mim, quando me ergui desastrosamente. Estivera a jogar com o primo e olhava para eles com a mesma admiração que hoje as primas olham para mim.

O relâmpago iluminara o corredor e todas as divisões cujas portas estavam abertas. A escuridão, momentaneamente interrompida devido ao clarão, parecia ansiosa enquanto aguardava pelo trovão. Visualizo-me por fora e vejo as imagens com a nitidez atual após tantos anos volvidos sobre aquela noite.
Escutei a voz da bivó chamando-me do piso de baixo. No momento, aterrorizado, estava encostado à parede, apertando o leão de peluche, sem qualquer reação de temor ou coragem. O menino extrovertido e até excessivamente eufórico dera lugar a uma criança perdida na própria casa que concebera como sua. Ver a bivó foi como o colo da mãe que tardava em chegar. Viena... Áustria..., nada disso fizera sentido no momento. Apenas a inexplicabilidade da sua ausência me parecia digna de uma boa crise de choro.

Segurei-me aos seus braços, envelhecidos, e senti-me protegido. Descemos a escadaria. Abandonados na casa grande, por todos. Soube - senti - que também ela tinha medo da tempestade. Contudo, juntos, tudo parecia mais fácil. Afinal, tratava-se de uma criança pequena e de uma idosa, sozinhos. Ensinou-me a rezar na mesma noite. Rezámos juntos até ao fim da tormenta.

Recordo-me de si a cada clarão, a cada som vindo do céu. A sua presença não mais é física, mas só morre em nós quem nada nos deixou.


11 de novembro de 2011

Em breve...



... muito breve.

10 de novembro de 2011

Cold.


Era noite. À saída, no centro, uma bancada literária atrai-me ao seu encontro. A luz branca das grandes lâmpadas brilhantes do teto sobressai o ar envelhecido e empoeirado de vários livros. Dois dos quais sobre Moçambique, terra natal do pai e futuro presente de aniversário / Natal. Comprei-os sem olhar ao preço e senti que tivera sido uma boa compra, afinal, remontam ao período colonial e têm ilustrações únicas e raras. De colecionador.

A chuva ameaçara o percurso até ao metro. As escadas, molhadas, provocaram uma queda e uma ambulância estacionada iluminava a rua com as suas intermitentes luzes azuis. Desci com cuidado e deparei-me com um moço da AMI que me propôs tornar-me um associado da organização.

"Tu, se quiseres, desces a avenida e vais ver o Tejo e há muitas pessoas que não têm sequer um copo d'água para beber."

É um facto que mexeu comigo. Fez-me pensar no caráter injusto das sociedades e em como tantos problemas são maximizados na nossa concepção exclusiva de que somos os fiéis depositários de todos os males do mundo. Olhar para além da nossa realidade pessoal é fundamental.
Passou uma avioneta e o rapaz parou e olhou para o céu. Deteve-se de novo no nosso diálogo, mais semelhante a um monólogo, e voltou de novo o olhar para a avioneta à sua segunda passagem. Algo nos seus olhos denunciou um paralelismo entre aquele pormenor e a sua vida. Quase que abstraindo-nos do barulho ao nosso redor e da azáfama do final de um dia de trabalho e de aulas para muitos que circulavam, disse-me que era pobre, que tinha deixado de estudar e que o pai abandonara a sua mãe quando era pequeno. Trabalhava justamente como piloto.

As confrontações com realidades distintas não serão despropositadas de sentido, nem casuais. Há um choque, frio, que nos faz crescer. Há quase uma transposição entre a vida comum, diária, e os pequenos momentos que nos levam a um patamar superior.
Senti-me frágil e senti alguém frágil à minha frente. Talvez essa mistura de fragilidades, dores, machucados nos traga algum conforto mútuo.
O que parece pouco, mais das vezes é demasiado.


6 de novembro de 2011

I was twisted in the web of my desire for you.


À medida que o tempo arrefece, uma espécie de inquietude toma-me de assalto. Talvez recordações de infância ou saudades de quando a seguir ao outono viria o inverno e depois, de novo, a primavera.
Hoje, na rua, expirei o ar quente dos pulmões de forma a ver se o mesmo fazia o pequeno fumo pelo contacto com o ar frio exterior. Abotoei o casaco e coloquei as mãos nos bolsos enquanto caminhava. Ao caminhar, o ar frio embatia contra o meu rosto, ressequindo-me os lábios e afastando-me a franja do cabelo dos olhos. Em casa, ficaram os livros do teste de quarta e os apontamentos desfiados sob a luz âmbar do candeeiro da secretária da mãe.

Um rapaz amigo do Pedro está no passeio lateral a passear o cão. Separou-se da mulher e voltou à casa dos pais. Pretendentes não lhe faltam, mas a sua melhor companhia tem sido o grande canídeo branco. Vê-me e acena-me com a mão. O cão puxa-o impetuosamente para a frente e por pouco não se solta. Continuo a andar.
Uma gota de água cai sobre a minha cabeça vinda de uma varanda. Uma simples gota de água é o suficiente para afastar os meus pensamentos. Quando estamos impenetráveis, nunca o é assim tanto que não possa acabar.

Chego à cafetaria e peço o meu chá mais meia torrada com pouca manteiga. Antes, vou ao banheiro para dar um jeito no cabelo. Passo a mão na franja e gosto do efeito moldado que adquire sobre a testa. Os olhos ardem por ter estudado durante toda a manhã. Abro a torneira e ouço o som da água a correr. Molho o rosto e é como se voltasse à realidade de uma tarde interminável.

Queria desamarrar-me de mim próprio. Poder ver de novo o mundo de uma outra maneira, sem as concepções já conhecidas. Voltar atrás e redesenhar o futuro.
Senti frio, mas observei que o casaco continuava vestido e, porventura, abotoado. A mão, gélida, apertava com força a xícara quente do chá. A efusão de ervas verdes foi um doce aroma ao meu olfato apurado.
À saída, olhei para trás e vi a rua terminar numas luzes distantes. Senti a falta de um rumo definitivo.
O frio manteve-se em mim, mas agora com motivos sólidos: despi o casaco e rasguei o vento noturno enquanto me dirigia para casa.

4 de novembro de 2011

A little misty on that warm november night.


Passei a noite em claro. O teste de quarta fez-me pensar que nem tudo é tão claro quanto parece. Sabes, é como quando um castelo de certezas se desmorona perante um indício de erro. Fiquei surpreso quando vi tanta determinação e confiança quando esperava que fraquejasses mais uma vez. Estranha sensação a de querer ser incomodado. Sentia o nervoso miudinho de ver uma escrita tão impetuosa e certeira. Afinal, estávamos com uma evolução nítida.

Ligaram as luzes do anfiteatro. Anoitecera. Olhei e vi as rugas de expressão do teu rosto e aquele tique tão engraçado de leres e releres a pergunta vezes sem conta. Será mesmo assim; o que isto quererá dizer? - pensas, concentrado. Descortino os teus pensamentos, mas a expressão facial é tão reveladora que nem precisaria de algo mais para afirmar que não entendeste tudo do princípio ao fim. Paras e desenhas algo no canto inferior esquerdo da folha. A visão periférica acabara de me dizer que olhaste para mim, mas eu antecipei-me e desviei certeiramente o olhar.

Que hábito de considerar as minhas respostas sempre incompletas. Quando falta algo, retomo a ideia anterior acrescentando o que considero estar em falta. Não que queira dar substância, afinal, "isto não é um restaurante em que a lagosta é ao peso". O professor chega a ser cómico de tão mau.

- Tens folhas de teste a mais?

Tenho.

- Podes me dar uma?

Não gostas de sussurrar, outra característica que não partilhamos, mas a densidade do teu teste dá a ideia de uma noite inspirada. Agora, olhando pelas altas janelas que se erguem sobre a madeira envelhecida da parede, pequenos feixes de luz são visíveis na rua. Uma luz alaranjada, cor de fogo, que rompe a espessa negritude.

Vejo pessoas correrem apressadas, outras terminando rapidamente de escrever à medida que trocam ideias desconexas. E o som, abafado, soa-me na cabeça a uma velha fita de cassete ouvida vezes sem conta.

A 2. ficou por concluir. Desço e entrego.
Espera... Tens algo a dizer.

- Correu-te bem?

Fazia frio lá dentro. As portas, abertas, agitavam o ar no interior do auditório, levitando e afastando gradualmente um enunciado esquecido em cima da bancada. Passam por trás de mim com um ligeiro empurrão.

Saí sem ver a exposição à entrada. Não comprei o livro que queria, nem a peça de artesanato tradicional para a avó. Só eu e a rua à minha frente. Passei por debaixo das luzes alaranjadas que via do interior e que iluminavam a calçada molhada. Deixei a vontade lá dentro e trouxe a certeza de que a noite iria ser longa.