Hoje foi o último dia de aulas. Confesso que estava à espera deste dia há algum tempo. A faculdade é tão cansativa, principalmente para mim, que estudo mais do que deveria. Estudo uma média de quatro horas por dia, das 14 às 18, cinco dias por semana. Aos sábados, estudo duas horas da parte da tarde; aos domingos, não estudo nada. É o meu dia de descanso. Mas não pensem que durante as horas de estudo estou concentrado a cem por cento. Não, faço paragens, ouço música, lancho às 17 (o meu eterno chá...), etc.
Os professores lançaram as notas. Fiquei satisfeito com os meus resultados. Ainda tenho os exames, por isso, terei de me aplicar mais.
Num dos intervalos, a meio da manhã, fui até ao jardim da faculdade ter com o R. Como vos disse, pensei em convidá-lo para vir comigo às compras na segunda-feira. Hesitei um pouco, pensando que talvez não fosse de bom tom, mas a atenção dele para comigo, ultimamente, permitiu que tomasse esta decisão. Quando cheguei ao jardim, ele estava sentado num banco a fumar um cigarro. A pose dele dava uma boa fotografia. Estava sentado de pernas abertas, apoiando o braço esquerdo na perna enquanto o direito manuseava o cigarro. Estava ligeiramente inclinado sobre si. À medida que inspirava o cigarro, franzia os olhos numa expressão bastante masculina. Sentei-me ao seu lado em silêncio. Fazia muito frio.
-"Parabéns pelas notas." - disse-me, continuando a olhar em frente.
-"Obrigado. Parabéns também pelas tuas, apesar de saber que não conseguiste a Direito Civil." - agradeci-lhe, tentando confortá-lo pelo facto de ter tido negativa no teste.
-"Tinhas razão. És melhor do que eu. Lembras-te, no anfiteatro, no outro dia?" - perguntou-me, num tom triste.
-"Não coloques as coisas nesses termos. Estou triste por ti como se de mim se tratasse. Eu gosto de ti, por isso, sinto as tuas perdas como se fossem minhas." - tentei confortá-lo ainda mais.
-"Sinto-me derrotado."
Atirou o cigarro para o chão, pisando-o de seguida. Expirou o último fumo que tinha nos pulmões.
-"Não fiques assim. Eu estarei aqui sempre para te ajudar. Podemos estudar juntos, se quiseres. Ainda tens o exame e a oral. Nada está perdido. Apenas terás de te esforçar mais um pouco..." - tentei dar-lhe força e ânimo.
-"Mais ainda?"
-"Um pouco mais. Valerá a pena, vais ver." - disse-lhe, continuando - "Segunda vou fazer as minhas tradicionais compras de Natal; pensei que talvez pudesses vir comigo... Aceitas o convite?" - sorri.
Olhou para mim e sorriu.
-"Estás a falar a sério?" - perguntou-me.
-"Claro. Achas ridículo da minha parte?" - respondi com outra pergunta.
-"Não, não é isso, mas não vejo que interesse eu posso ter para ir contigo..."
-"O interesse normal de um colega... Mas, bom, esquece..." - rematei.
-"Não, não, não leves a mal. Não é nada contigo. É que somos tão diferentes... Não sei que interesse eu possa ter..."
-"Deixas que seja eu a julgar isso?" - sorri, apesar de querer parecer «sério»...
Devolveu-me o sorriso.
-"'Tá bem, 'tá bem" - disse, continuando a sorrir - "E vamos a que horas?"
-"Bom, eu sou muito chato nas compras. Costumo ficar toda a tarde até à noite. Do género, das duas da tarde às dez da noite." - respondi.
-"Agora digo eu: estás a brincar? Isso é um exagero, desculpa lá." - disse, rindo, num tom brincalhão, nada sério.
-"Pronto, eu modero um pouco este ano." - prometi.
-"Não, ficas as horas que quiseres. Eu também tenho de comprar umas prendas para a família. Vou aproveitar e compro também. Parece mal seres só tu a comprar."
-"Não se diz «prenda», é feio; o certo é «presente»." - disse-lhe, brincando, mas não deixando de dizer a verdade.
-"Desculpe, menino, não volto a fazê-lo." - gargalhou.
-"Goza, goza!" - sorri.
-"É melhor irmos andando. É que já entrámos!" - exclamou.
Saímos do jardim e fomos a correr pela faculdade como duas crianças que correm ao sabor do vento. A ânsia e a vontade de sabermos a nota a mais uma cadeira era muita. Porém, enquanto corria, sentia-me mais leve e feliz. Senti-me quase o seu namorado, ou a sua «namorada». Sinto-me mais uma rapariga ao seu lado do que um rapaz. A masculinidade dele consome-me enquanto homem quase por completo. Apesar disso, gosto desta nova sensação. Gosto do papel que desempenho quando estou perto dele. Gosto de saber que ele é a força, eu a delicadeza; ele o trato banal, eu a educação; ele o imprevisto, eu a previsibilidade; ele o comum, eu o incomum; ele a timidez, eu a falta dela. Conseguimos recriar as expectativas que um tem em relação ao outro. Eu quero que ele seja o que é; eu quero ser o que sou.
Olhei pela janela da sala de aula. Os colegas falavam, a professora ouvia.
Eu sentia o frio que trespassava por entre o vidro húmido.
Voei por entre as árvores que observava. Corri ao seu redor.
Voltei à sala quando a professora chamou pelo meu nome.
PS: Tentei recriar as palavras do nosso diálogo da forma mais fidedigna possível. Como devem calcular, é impossível escrever com exactidão cada palavra que dissemos. No entanto, eu tenho uma excelente memória. O discurso foi esse, com mais ou menos alterações. :)