29 de abril de 2020

April 29.


   Dois meses e vários dias fora de Portugal. O primeiro aniversário no estrangeiro. Habitam em mim sentimentos mistos, de alegria e tristeza, nostalgia e saudade, não do país ou do seu povo, senão da minha mãe. 

    Ela sabe que eu estou bem e eu também sei que ela se encontra bem. Entretanto, não deixa de ser a primeira vez que passo este dia longe dela. Gostava de lhe poder dar um beijo, de a abraçar. Na impossibilidade de o fazer, telefonamo-nos várias vezes, como de resto fazemos diariamente, hoje talvez com mais frequência.




  Tenho a casa decorada, tenho doces, tenho presentes, tenho o Diesel (que também está de parabéns hoje - no veterinário, foi este o dia que escolhi para figurar como o seu dia de nascimento) e quem mora comigo, mas falta-me a minha mãe. Falta-me sempre aquele pedacinho para que me sinta feliz. Há sempre algo a atormentar-me. Uma raiva por saber que a minha mãe está com aquele homem, e estará, a menos que ele se evapore. Com esta epidemia, desejei a sua morte. Desejei-a tanto, e nem sequer me consigo envergonhar disso. Por outro lado, dou por mim a pensar que a sua vinda para cá acarretaria trazer todo um passado que quero esquecer. É bem provável que estejamos melhor assim, ela lá e eu cá, até para que a nossa relação mãe-filho melhore, que já estava desgastada.

   É tudo.

18 de abril de 2020

Diesel.


     Instalado aqui em Espanha e tendo um apartamento amplo, decidi adoptar um cão. Comprar estava fora de questão, com tantos animais abandonados por aí. Estivesse eu em Lisboa e a minha mãe não me deixaria, temendo um agravamento da minha asma. Não sofro de crises iguais às da infância, se bem que volta e meia a doença se faz sentir - estive doente há semanas, já aqui em Espanha, com uma infecção respiratória. 

    Contactei um abrigo galego de animais abandonados e apaixonei-me imediatamente pelo Diesel, um cãozinho mestiço de 4 a 6 anos de idade encontrado numas bombas de gasolina de Verín, junto ao diesel, o que lhe veio a inspirar o nome. O Diesel estava muito maltratado, com otites graves, uma infecção ocular e cheio de carrapatas. Não tinha vacinas, como se calcula, e trazia um chip não-registado português, o que dá a entender que foi abandonado por portugueses junto à fronteira. Não tivesse sido acolhido e morreria. Decidi manter-lhe o nome, afinal, não sabendo absolutamente nada do seu passado, Diesel é um ponto de referência. Foi ali, entre os combustíveis, que o deixaram à sua sorte.

     Assim que nos vimos, o Diesel urinou na minha mochila. A coisa começou bem! Encontrámo-nos junto a uma clínica veterinária e lá pude comprar-lhe umas coisinhas: uma cama (que não usa, e que urinou duas vezes), o comedouro e o bebedouro e alguns brinquedos (aos quais não liga). Foi tudo tratado devidamente. Adoptei o Diesel seguindo todas as formalidades. Já tem a sua documentação e eu sou o seu legítimo tutor. 

        
    A adaptação do Diesel tem sido regular. Está connosco há três dias. No primeiro, assim que chegou, urinou pela casa e fez cocó numa das carpetes. Já marcou o território várias vezes, levando a que, inclusive, tivéssemos de lavar a colcha da cama, ao tê-la brindado com o seu alçar de perna. É extremamente meigo e sossegado. Não ladra. Tomou dois banhos seguidos (que tinha um cheiro insuportável) e tão-pouco rosnou. Apenas ficou mais agitado, o que é natural. É todo um mundo novo, cheio de desafios. Pessoas e lugares diferentes. Conhece-nos cada vez melhor e nós a ele, e já vai sabendo onde pode entrar e onde não pode. Em regra, os quartos estão vedados. Tem acesso aos demais cómodos. Ainda é cedo para lhe abrir todas as portas. Tememos que, reiteradamente, repita o que tem feito. Por enquanto, o que mais me preocupa é a sua alimentação. Não come da ração que lhe comprámos e nem come toda a comida que lhe faço. Parece preferir ossos. Encomendei uma ração caríssima e estou a ver que nem lhe toca.

      Uma vez que não gostei do veterinário que o viu, escolhido pelo abrigo e no dia em que o fui buscar, levei-o a uma aqui de Trives que já lhe administrou a primeira dose da vacina que abrange sete doenças. O Diesel não está castrado, numa opção a considerar. Afortunada e estranhamente, não tem leishmaniose. Num cão que esteve na rua, é quase milagroso.

     Passando os dias entre o sofá e a carpete, que adora, ao Diesel também agrada correr pelos campos, e isso é o que não falta destes lados. Claro está que ter um animal, sobretudo um cão, é trabalhoso: há que levar a passear, por exemplo, uma obrigação que a muitos resulta impossível ou de difícil cumprimento, levando-os a escolher gatos. Em todo o caso, e é o meu primeiro mamífero, o meu primeiro cão, não se trata de um hábito a adquirir apenas para eles, senão de igual modo para nós. Ter decidido adoptar o Diesel fez com que começasse a ter outras responsabilidades, e isso é bom. Foi bom para si e para mim. Resta-me apresentá-lo.



4 de abril de 2020

Espanha (parte 2) - Santiago de Compostela.


     Durante esta estadia na Galiza, adoeci justamente uns dias antes de ir a Santiago de Compostela. Nesse sentido, tive de adiar a viagem para a semana seguinte, até que, no dia 8 de Março, lá se concretizou. 

    Santiago de Compostela é uma das cidades mais importantes da Cristandade, onde se acredita estar sepultado o corpo de um dos apóstolos de Jesus, São Tiago Maior. A sua catedral medieval, em estilo românico, aliada à fé, certamente tornarão este destino bastante apetecível, pois conjuga arquitectura, história e religião. Eu visitei-a por uma combinação de factores, e também por ser a capital legal e administrativa da Galiza, sede do poder autonómico e do parlamento galego.

Mosteiro de São Martinho Pinário

      A catedral de Santiago está em obras presentemente. Dificilmente conseguirão apreciar a fachada. Entretanto, recomendo a visita pelo seu interior, onde está a cripta do apóstolo. Recomendo ainda a visita ao museu da catedral. Poderão encontrá-los na Praça do Obradoiro, mesmo em frente ao Palácio Raxoi. A praça, aliás, é lindíssima. Mui espanhola. Num dos lados, precisamente à direita do Palácio Raxoi (à esquerda da catedral, portanto), têm a Pousada dos Reis Católicos, que em tempos idos funcionou como um hospital. Conta-se que os monarcas consideraram que Santiago não dispunha de um espaço digno para acolher os peregrinos cansados e feridos, ordenando a sua construção.

O Palácio Raxoi

     Todo o centro histórico de Santiago, Património da Humanidade desde 1985, é digno de uma visita atenta: a Praça das Praterías, a Porta Santa, o Arco de Mazarelos, a Capela das Ánimas, a Casa do Cabido, o Convento de São Francisco, a Igreja de Santa Maria Salomé... Ali, num único quarteirão, verão um conjunto arquitectónico deslumbrante, de inestimável valor.


Panorama da Catedral de Santiago

Foto panorâmica da Catedral de Santiago

Monumento a Rosalía

   Tendo tempo, o que não é fácil, não menos importante seria visitar o Parque da Alameda, sobretudo o Passeio da Ferradura. No Parque da Alameda, há uma, bom, duas estátuas com um significado social curioso: chamam-lhe As dúas Marias. Trata-se, na verdade, de uma escultura que homenageia duas irmãs da cidade que, pelos anos 50 e 60, se passeavam pelo centro histórico sempre pelas duas da tarde, provocando os transeuntes, sobretudo estudantes, com as suas roupas garridas, que contrastavam com o cinzentismo dos hábitos e costumes da Espanha franquista. Naturalmente, foram vítimas da repressão e da maledicência popular. Desde 1994 que ornamenta o parque. Por ali, no Passeio da Ferradura, homenageia-se outra figura ímpar da cultura galega, desta feita das letras: Rosalía de Castro, um dos principais nomes do ressurgimento da língua galega, vulto da literatura deste idioma tão íntimo do português, venerada sobretudo pelos círculos nacionalistas.


As dúas Marias

  A par, claro está, de todo este património que Santiago tem para nos oferecer, retenho principalmente a sua luz. Santiago tem um encantamento especial. É provável que seja uma soma de todas aquelas energias, cada uma vinda de um canto do mundo, a conferir à cidade uma aura magnética, pura, leve. Não tem nada a invejar a Lisboa.