29 de abril de 2015

April 29 & CIGNO Awards.


    Passou um ano. Em criança, o dia do meu aniversário era sempre motivo de alegria, de presentes, nem tanto do bolo. Era o melhor dia. O mais aguardado. Mal adormecia. Acordava primeiro do que todos, ficava à espera que os pais me dessem os parabéns, dissessem o que faríamos, onde almoçaríamos, a que horas me levariam à loja de brinquedos mais perto. Volta e meia, uma sessão fotográfica, telefonemas dos avós, tios, demais familiares. Sorrisos estampados no rosto.

    Presentemente, é uma data que chega quase como uma sombra. "Lá vens tu." "Estás tão próximo, a sério?" Meio um velho amigo que nos acompanha. Um amigo que perde o seu encanto, malfadada vida. E dizem que sou tão novo para ser indiferente ao aniversário... Não há festa, não há alarido.

     Constato isso em mim, a desilusão. Parece que está tudo conhecido, quando sei que há ainda tanto por desvendar. Não consigo, por mais que queira, encontrar um estímulo adicional. Chamem-lhe genes, conformismo, inadaptação. Sou assim e agora dificilmente mudo. Em todo o caso, lamento que a pessoa que fui se tenha dissipado ao longo dos anos. Ainda não a esqueci. Todavia, o maior receio prende-se em quem ainda sou, que mal ou bem se sustém. Temo, a décadas, lastimar ter-me perdido.
     O pai ligou-me. Reaproximámo-nos com o falecimento do avô. É o contraste. A pequena dádiva que atenua. Fica assinalado.


     Uma palavra para os CIGNO Awards. No domingo, na gala interactiva, fui galardoado com dois CIGNOs: Melhor Blogue LGBT Pessoal ou Diário e Melhor Produção de Texto em Blogue LGBT. Na primeira categoria, fiquei bastante surpreso. Não tinha noção alguma de que os meus escritos mais pessoais suscitassem tanto reconhecimento, conquanto seja uma parcela relativamente irrisória do que escrevo. Muito obrigado a quem votou em mim. Agradeço o reconhecimento e o carinho. Verdadeiramente estimo as pessoas que me acompanham. Embora saiba distinguir o real do virtual, não sou indiferente, de forma alguma, aos laços que se estabelecem entre nós. Negá-los seria, a par de os diminuir, injusto.




25 de abril de 2015

25 de Abril.


   Quarenta e um anos volvidos,  já muito se disse sobre o 25 de Abril e a sua relevância histórica. Portugal carecia de uma democratização urgente, isolado que estava no plano internacional. Descolonizar, outro dos objectivos de Abril, foi conseguido a sacrifício dos colonos e dos nativos, imersos, a partir de então, em guerras civis que arruinaram por completo as infraestruturas daqueles territórios, favorecendo a ascensão de facções de cariz autoritário, em que a tónica no desrespeito pelos direitos humanos continua a ser uma constante.
    Desenvolver foi outro dos vértices de Abril. O de mais difícil concretização. Abril permitiu a adesão às Comunidades Europeias, pese embora a cooperação institucional que já havia entre Portugal e a antecessora da UE. Os fundos comunitários ajudaram à reestruturação da economia portuguesa, permitindo um desenvolvimento acentuado ao longo da última década do século XX. Todavia, Portugal manteve o atraso crónico face aos demais países do espaço comunitário. As políticas de proteccionismo da economia e favorecimento dos monopólios, o desincentivo à escolarização, a parca abertura à informação e à livre expressão, mesmo considerando algumas mudanças durante a vigência do Estado Novo, foram suficientes para impedir o acompanhamento da marcha europeia.
    Os problemas que detectamos têm, seguramente, origem no regime obsoleto a que, por cá, a II Guerra Mundial não pôs cobro. E tanto que Oliveira Salazar a evitou. A visão do estadista estava claramente desfasada da realidade, sobretudo no pós-guerra. Num exercício de análise à origem das nossas dificuldades estruturais, podemos recuar no tempo, indo até aos tratados que fomos assinando com a Inglaterra, primeiro, depois o Reino Unido, e que comprometeram o surgimento de uma indústria coesa, dinâmica. Geograficamente longe do centro da Europa, estar na periferia foi outro factor.
     Portugal tem um elevado potencial. Somos a porta de saída para o Atlântico, que nos socorreu perante uma Castela ambiciosa e tão próxima. Hoje podemos aproveitar esses recursos, os laços culturais que fomentámos pelo mundo, não me referindo aqui apenas aos territórios que ocupámos e colonizámos, como também a todos aqueles com os quais nos cruzámos pelos séculos, desde países do sudeste asiático passando pelo norte de África e península arábica. Temos dirigido as prioridades para a UE, equivocados, quando o carácter igualitário dos Estados-membros não passa de um acordo de boa vontade, e isso verificou-se com o resgate financeiro dos últimos anos.
      A par da vertente cultural, podemos apostar no turismo, quer de veraneio, quer rural, tendo em conta a multiplicidade de realidades que coexistem, paradoxalmente, num país pequeno. E ainda investir no turismo histórico, recuperando património degradado e tornando cidades como Lisboa, Porto, Évora, Coimbra, a título de exemplo, não se esgotando aqui, em verdadeiros centros de arte e cultura, redes que já existem em outras cidades europeias.
      De entre os nossos recursos, valorizar os produtos nacionais, a indústria vinícola, olivícola, corticeira, onde nos destacamos. Tentar reduzir a nossa dependência energética, estimulando, nomeadamente, a energia solar.
   Criar postos de trabalho, contornar a forte tendência para a emigração de valiosos contributos, incentivar a natalidade, não esquecendo os seniores.
      Portugal não se trata de um caso perdido, assim o queiram. Os pais de Abril, ao devolverem a liberdade que nos foi negada, acreditavam num país de oportunidades. Tendemos a esquecer o passado. Nove séculos de história, de luta por quantas vezes pela independência, provaram do que os portugueses são capazes.

20 de abril de 2015

As Presidenciais.


   Disse, meses antes, que seria prematuro abordar as eleições presidenciais que se realizarão no próximo ano. Com efeito, e embora as legislativas tenham progressivamente assumido um carácter de extrema importância, não menos relevante será a escolha do Chefe de Estado. Em Portugal vigora um sistema semi-presidencialista, não sendo o Presidente da República uma mera figura decorativa. Em abono da verdade, tem um papel político de primeira linha, ao promulgar ou vetar os decretos-leis do Governo e as leis da Assembleia da República, de onde extraímos com clareza a sua participação na actividade política. A par do poder de representação do Estado português ou ainda o seu papel moderador junto das demais instituições do Estado. Se é correcto dizer-se que, em Portugal, o Presidente "preside e não governa", não seria justo remetê-lo a um lugar de mero espectador passivo da actuação do Governo. Tempos houve em que a figura do Presidente era ténue, eclipsada pelo omnipresente Presidente do Conselho. Tal ocorreu durante os anos em que Oliveira Salazar esteve no poder, diminuindo com a tomada de posse de Marcello Caetano, empossado por Américo Thomaz, que assumiu aí uma postura interventiva, até fazendo jus às prerrogativas que lhe eram atribuídas pela Constituição de 1933.

     Mário Soares referiu-se a si próprio como o "Presidente de todos os portugueses", inaugurando em si um estilo de Presidente que pretende ser consensual, transversal às divergências políticas que são normais e saudáveis em qualquer democracia, sucedendo à experiência Eanes, de um militar, explicada pelo forte condicionalismo que sofreu a democracia portuguesa até ao afastamento dos militares da vida política, só possível com a primeira revisão constitucional de 1982. A partir de então, espera-se que um Presidente aja quando assim for necessário, que a sua intervenção seja pontual, mas incisiva, um potencial árbitro, fiscal, da actuação do Governo. A Constituição parece querer conferir-lhe esse papel em várias das suas disposições. O seu crivo é fulcral na actividade legislativa do Estado, sob pena de invalidade dos actos normativos. Logo na definição de Presidente da República, a Lei Fundamental patenteia o seu espírito de órgão moderador, que assegura o funcionamento das instituições democráticas. O Presidente da República é, antes de mais, um garante. Revestindo-se o seu papel de elevado rigor, o Presidente da República deve ser alguém acima de qualquer suspeita, cuja integridade e honestidade não possam ser questionadas. O sentido de Estado deve ser absoluto. O Presidente representa a República. Exige-se, também, um currículo irrepreensível. O Presidente não governa, contudo, na senda do pensamento de Platão, deve ser alguém dotado de especial visão e sabedoria, o melhor dos melhores. Atributos que podemos estender ao Chefe de Estado.

     Quando decidimos observar com atenção o panorama político português, deparamo-nos com a primeira dificuldade: quem preenche estes requisitos? Os presidenciáveis portugueses, na sua maioria, aparecem associados a escândalos de maior ou menor gravidade, não reunindo consenso em relação às suas vocações ou à integridade de carácter exigível. E o mesmo acontece em todos os quadrantes da típica dicotomia esquerda-direita. Ninguém é consensual, já o sabemos, mas um Presidente carece de um sentimento de probidade acima dos demais políticos.

     Os últimos dez anos revelaram em como falhámos, como povo, na eleição do Presidente da República. Em quarenta anos de democracia e quatro presidentes eleitos por sufrágio directo e universal, nunca um Presidente foi tão criticado, tão parcial e tão omisso no cumprimento escrupuloso dos seus deveres. E as implicações dessa conduta sentir-se-ão no longo prazo, o que vem reforçar a exigência na hora de votar e faz impender sobre os partidos políticos, sem prejuízo das candidaturas apartidárias, a obrigação de apresentar pessoas credíveis e honestas perante o escrutínio popular.

15 de abril de 2015

Ordinary.


      Apostando em conseguir abstrair-me da rotina, procuro fazer o que nunca fiz, distrair-me, sair, viver sem me deter nisso. Não temos por que dificultar o que de si mesmo já é complicado. Nesse sentido, tenho passado pouco tempo em casa. Noites há que durmo fora, ora em casa da avó, ora em casa de um amigo.

    No domingo fui à FIL, a uma feira de turismo. Participei em alguns passatempos sem qualquer intenção. Num deles ganhei um peluche. Um disparate: construir um avião em papel e tentar fazê-lo passar por um orifício de cartão. Logrando na tarefa, preencher um formulário e inventar uma frase com determinadas palavras. O prémio é uma viagem. Ainda aguardo a resposta. A minha frase não será a mais original. Obrigatório seria incluir "Países Baixos", "França" e o nome da transportadora. Com algo como "moinhos" "Torre Eiffel", elaborei o que me surgiu estando sob pressão. Não pude pedir ajuda, embora obtivesse umas sugestões através de sms, escapando ao controlo rígido de quem por lá estava.

     Tirei fotos, brinquei, foi engraçado. À noite, comprámos algo para jantar e ainda me aventurei em frente a um fogão (?). Os meus dotes culinários são inexistentes, mas não morremos à fome. Verdade seja dita, pouco fiz na cozinha. Ajudei como soube e os livros de receitas têm a sua utilidade. A juntar aos demais ingredientes, uma pequena dose de boa vontade e ânimo dão o toque final. E ficou bom!

      Na medida em que estou tranquilo, o estudo torna-se menos penoso. Flui melhor. E tiro sobre mim uma certa responsabilidade exagerada. Não tenho muito mais a provar, tampouco a mim. Passo o tempo estritamente necessário na faculdade, elaborando os relatórios e as apresentações com a dedicação e o zelo que não descuro. Apenas deixo ir.

         É caricato o modo como retiro algum encanto, ingénuo até, eu diria, de momentos triviais. Há quem diga que a felicidade está na simplicidade. Eu, que nela não acredito, começo a desconfiar do fundo de veracidade dessa afirmação. Não é descabida.

       Não obstante desconfiar dessa felicidade, podemos alcançar a tranquilidade possível. É o objectivo. Tudo o mais são caminhos, relativamente sinuosos, dependendo de nós escolher os certeiros. Ou os que nos levarão à meta com a menor dor. Assim o alcancemos.
          Um exercício para o qual não há códigos ou doutrina. Por isso complicado. E essencial.

10 de abril de 2015

De Édipo e dos tormentos.


   Somos os únicos mamíferos que continuam a ingerir leite depois de adultos. Como tal, também atingimos tarde a maturidade, protelando a saída de casa para além do quarto de século de vida. Erradamente quanto à segunda constatação, e a primeira começa a merecer interrogações relativas aos seus benefícios por parte da comunidade científica.

     É importante tornarmo-nos responsáveis pela nossa sobrevivência, incluindo segurança e subsistência, e os pais devem incutir nos filhos o valor da independência. O que mãe e o pai não fizeram comigo - preço que alto se paga. Não fui educado para crescer, para seguir o meu caminho, tropeçando e erguendo-me, quebrando o nariz, como ouvi por aí. Um bebé é em si mesmo um diamante que lapidamos e todo o cuidado é pouco no garante dessa tarefa.

      A vocação parental dos pais é nula ou perto disso. Não que tenham sido maus pais, não o foram. Chego a perguntar-me se não terão sido bons demais. Capaz de terem sido maus, ao não saberem educar-me convenientemente. Quem disse que o mais importante para uma criança são brinquedos atrás de brinquedos, a satisfação de todos os seus caprichos? Confiar o que nos compete a terceiros, pagando para isso, afastando deveres que são nossos. E educar não passa apenas por alimentar, por assegurar conforto. Contempla os exemplos, as regras, os conselhos, a capacidade de dizer um "não" firme e sonoro, inderrogável. De tudo sinto falta e, podendo regredir no tempo, a isso pediria para ser sujeito.

      Faço, então, passo ante passo, as conquistas que não fiz. Procuro desenvencilhar-me do que me segura, me sufoca, me tolhe os movimentos. Pequenas vitórias pessoais, nada mais. Tão simples. Que me são essenciais. Isto para evitar o crescimento abrupto que tive há uns anos, em que de uma assentada tive de assegurar o que ainda não tinha feito. E foi doloroso. Nunca são processos fáceis, pelo menos envolvem pequenos martírios.

      Quero sair daqui. Morar só. Ser adulto de vez. É a etapa que se segue, que me atemoriza, é certo, mas da qual preciso.
        Gosto da mãe. Muito. Não posso continuar a ser o seu menino. Não lhe faz bem, nem a mim.

6 de abril de 2015

A Greve.


    As recentes paralisações provocadas pelas greves levantam questões de ordem moral e jurídica. Embora ao Direito não seja relevante qualquer indagação de índole moral, em caso de colisão de direitos ou de abuso de direito é chamado a intervir. A greve é um direito consagrado no nosso ordenamento jurídico. O artigo 57.º, número 1 da Constituição da República Portuguesa diz respeito ao direito à greve. Contudo, como acontece com qualquer outro direito fundamental, e o direito à greve é-o, não é absoluto e está sujeito a restrições, nomeadamente quando estamos perante a colisão de direitos ou a salvaguarda de outros direitos constitucionalmente protegidos, estando sempre o seu exercício sujeito, como os demais direitos fundamentais, aos princípios da adequação, proporcionalidade e da necessidade (artigo 18.º da Constituição).

     Há necessidades perenes que exigem a continuidade de serviços mínimos, conforme enuncia a nossa Constituição no artigo 57.º, número 3, o que obriga a que a lei ordinária defina a prestação de serviços necessários à segurança e manutenção de equipamentos e instalações, prevendo-se também os serviços mínimos que sejam indispensáveis para a satisfação de necessidades sociais permanentes e inadiáveis. No Código do Trabalho, o direito à greve encontra-se regulado entre os artigos 530.º e 543.º O artigo 537.º, número 2 enuncia os serviços impreteríveis a que a greve não pode limitar, nomeadamente serviços médicos, hospitalares e medicamentosos, de salubridade pública, funerais, entre vários outros; e, na alínea d) do referido artigo, transportes, incluindo estações de caminhos-de ferro e de camionagem (...), relativos a passageiros. A letra da lei é clara ao mencionar os transportes de passageiros, contemplando respectivas estações.

       Na medida em que nenhum direito é absoluto, o direito à greve pode ser restringido nos casos previstos na lei, mas não a ponto de se esvaziar o seu alcance último e o seu núcleo essencial: sendo uma conquista das classes trabalhadoras, em caso algum o direito à greve pode ser afastado por meros inconvenientes que cause, perturbações no quotidiano. Apenas e tão-só estando em causa necessidades sociais de primeira linha, e que a lei prevê, é que podemos falar numa compressão deste direito.
      Anunciando-se mais greves, desta vez abrangendo o Metro e a Carris, podemos falar de implicações que poderão ir além de meras perturbações no funcionamento normal da cidade. As situações de urgência estão abrangidas nos limites à greve, bombeiros e hospitais, mas será lícito dificultar o acesso de um doente, cuja enfermidade é grave, a uma consulta, não podendo esse mesmo doente despender dinheiro num transporte particular, ou individual, sendo público, como um táxi? Não estaremos perante uma colisão de direitos com previsão no artigo 335.º do Código Civil? E, em caso de colisão, não deveremos ponderar a importância de ambos os direitos? Questões que se levantam. Compete aos tribunais arbitrais verificar da pertinência / justiça dos serviços mínimos durante as greves e se os princípios que presidem ao exercício dos direitos estão preenchidos.

     O direito à greve, ainda que fundamental, não deixará de estar sujeito aos limites impostos pelo abuso de direito (artigo 334.º do Código Civil). O exercício de um direito é ilegítimo excedendo-se os limites impostos pela boa fé, o que nos interessa aqui. As sucessivas greves do Metro terão subjacente as reivindicações legítimas dos trabalhadores ou também a vontade inequívoca de causar transtornos sociais, não sendo estes uma inevitabilidade mas em si mesmo configurarem um objectivo dos grevistas? E a greve da Carris, marcada para o mesmo dia, não reforçará a pergunta retórica que fiz? O artigo 530.º, número 2 do Código do Trabalho, de redacção praticamente semelhante à do artigo 57.º, número 2 da Constituição, indica que aos trabalhadores compete definir o âmbito de interesses a defender pela greve, indo a Constituição mais longe ao referir que a lei não pode limitar o âmbito, no entanto, na minha interpretação do abuso de direito, é ilegítimo que o objecto da greve assente no único propósito de criar situações que impliquem um caos funcional. Viola o princípio da boa fé, além das considerações que façamos segundo os princípios que enumerei acima.

      Posto isto, o direito à greve, que não é absoluto, pode ser restringido, sujeita-se aos princípios gerais de direito que norteiam o nosso ordenamento jurídico e às valorações que dependem dos interesses e demais direitos que estejam em causa.

1 de abril de 2015

Primavera.


       O bom tempo chegou, afastando, definitivamente, o cinzentismo próprio da estação fria. A seu tempo virá a chuva ("Abril, águas mil"), o que por si só não basta para que neguemos a luz que beneficia - e em muito - o sul da Europa. As árvores ganham vida, colorindo-se os seus troncos nus de pequenas flores brancas, carregadas de pólen, aguçando o apetite voraz das abelhas que as povoam. A brisa é fresca à noite, contrastando com os dias de temperaturas amenas, por vezes roçando o exagerado, e já dizem que vamos oscilar pelas próximas semanas.

      Um amigo confidenciou-me que os alemães não são tão distantes quanto nos querem dar a parecer. Que a vida em Berlim consegue ser mais dinâmica do que a que temos por cá, considerando que não têm este Sol fantástico de que dispomos. Não indo tão longe, passando la raya, o povo espanhol sai de casa, passeia-se, ri. Pelas ruas de Lisboa vemos jovens, sobretudo. Os mais velhos mantêm-se em casa. As senhoras de idade nas suas lides. Este povo não evolui. Identifico-me com o carácter soturno da dita alma lusitana, mas cansa. Décadas de ditadura que impuseram um estilo de vida sóbrio e discreto deixaram as suas marcas aqui e acolá. Como alguém disse, e ouvi ou li, Salazar morreu há mais de quarenta anos, porém a sua despótica presença e dura herança ainda perduram. Sente-se.

    Saí, sentei-me numa esplanada. Falei e ri. Esqueci-me, por momentos, dos problemas que me perseguem. Passei, num ápice, de rapaz sério, compenetrado, a alguém que só quer estar em paz. E consegui. Depois voltou tudo, sim. Percebi uma realidade tão presente e comentada, tão óbvia, e talvez por isso tão pouco perceptível, acerca dos dias. O ontem tem uma importância relativa. Existiu, fez-se sentir, não o podemos modificar, é certo. O amanhã pertence-nos. Um novo dia tem necessariamente de nos fazer esquecer o anterior. Sendo mau, até agradecemos. "Já passou." Parece evidente, não é? Para mim não o era. É provável que ainda não o seja fixamente; penso nisso, conforta-me, anima-me. É a coragem. Existo, estou vivo, respiro, sinto, observo, sofro, e sei rir. Vi o precipício de perto e não gostei.

       O caminho deve ser este. Ganhei um pouco de tranquilidade. Espero não esporádico. Tenho de ser forte. A ver se consigo chegar a velhinho. E que lá, por fim, não me importa que seja tardiamente!, consiga estar... bem.