31 de dezembro de 2022

O ano, o ano terrível.


    Neste fim de ano não irei, pela primeira vez em muitos anos, fazer uma revista aos doze meses. Foi um ano tão horrível a título pessoal que inclusive por uma questão de dignidade me irei poupar a essa tarefa. Houve temas nacionais e internacionais que naturalmente mereceriam uma pequena abordagem em jeito de síntese, em todo o caso, o que me aconteceu sobrepõe-se a tudo, e portanto 2022 ficará entre as minhas piores recordações.

   Quero desejar-lhes um ano novo com o que peço para mim: tranquilidade e paz de espírito, o que menos tenho e o que mais necessito. 

    Vemo-nos em 2023, creio eu. O blogue tem estado um pouco à margem da minha atenção. Definhou como eu. Se me recupero, é provável que o recupere. Sem promessas.

30 de dezembro de 2022

Cem anos da constituição da União Soviética.


   A União Soviética foi formalmente criada há cem anos, a 30 de Dezembro de 1922. Surgiu dum ideal de igualdade social que nunca se concretizou, quiçá porque a igualdade seja uma utopia, uma bonita utopia cujo sonho de alcançar é meritório. Do sonho veio o pesadelo, e uma vez mais matou-se em nome de uma ideologia. É o que temos feito desde que existimos, portanto, mais do que escrever uma efeméride de exaltação ou condenação, quero tão-somente recordar a constituição de um Estado que escreveu, em autoria ou co-autoria, todos os manuais de História do século XX.

27 de dezembro de 2022

Vigo.


  Gosto muito de Vigo. Vigo, que é a maior cidade da Galiza, lembra-me Lisboa pela azáfama, aquilo a que os espanhóis chamam bullicio (termo que também existe no português). Necessito dessa azáfama, barafunda se quiserem. Cresci numa cidade, sou urbanita. Vivi durante três anos no rural, num meio pequeno, e a experiência não foi boa. Fui feliz por lá, é certo, porém, sentia sempre a falta não só de todos os serviços que uma cidade tem como também daquele ritmo que muitos consideram o pior lado das cidades.


Um boneco de neve natalício enorme


 Agora vivemos numa cidadezinha agradável, com 14 mil habitantes, com todos os serviços. Vigo, entretanto, mantém-se como o meu paradigma de cidade a viver na Galiza. Gostaria de me mudar para lá no médio-prazo. Não sei se será possível, uma vez que comprámos aqui um apartamento. Vai-se vendo. 


Quem não gosta de um urso? 


    O presidente da câmara de Vigo (aqui chamam-lhe alcalde) é um obcecado com a iluminação natalícia. Não será apenas obsessão; vai buscar milhões com aquilo em retorno do turismo. É um negócio. Vigo transforma-se. São tantos os adornos, as luzes, os artefactos, que a cidade fica um mimo (para quem gosta, naturalmente). As tragédias pessoais ainda não conseguiram roubar-me o carinho quase infantil que nutro pelo Natal, daí que tenha decidido ir a Vigo ver as luzes. Em Lisboa, fazia-o quase diariamente. Não me cansava de descer as avenidas para desfrutar da cidade reluzente.


Que esta estrela os ilumine

   Deixo-lhes algumas fotos do meu percurso por Vigo, da minha rota natalícia.

24 de dezembro de 2022

Feliz Natal.


   Há algum tempo que não venho aqui. O blogue, confesso, já não me é útil. Ainda me lembro dele, de outra forma não estaria aqui, mas não é o que foi durante 14 anos. É bem provável que nos tempos vindouros equacione se o mantenho ou não. Enfim, esses balanços ficarão para o Ano Novo. 

    No Natal mais triste da minha vida, estou a tentar ir buscar forças onde não as tenho. Espero que vocês o passem melhor que eu, com a família ou quem quiserem. A família são aqueles que escolhemos para ter ao nosso lado.

    Deixo-lhes uma foto da minha estadia de ontem em Vigo, quiçá a cidade mais natalícia da Europa, e os votos de um Feliz Natal.



7 de dezembro de 2022

A campanha de Portugal no Mundial 2022.


   Talvez seja precipitado da minha parte fazer desde já uma análise à participação de Portugal neste campeonato do mundo de selecções. A competição não terminou, tão-pouco para o nosso país. 

   Portugal, ontem, goleou a Suíça. Praticámos um futebol que eu nunca vi, e há quase vinte anos que acompanho as prestações de Portugal nestes torneios. Temos jogadores com muita qualidade; um meio campo de ouro, uma defesa eficaz. Somos candidatos ao título. Podemos ficar pelo caminho, chegar à final, ganhar. Ganhar, porém, não é uma utopia. Vale o que vale, claro. Há sempre quem não goste de futebol, do mediatismo do desporto-rei. Respeitável. Temos outros problemas no país. Correcto. Uma coisa não invalida a outra, não é o que se diz? Dos nórdicos aos africanos, todos vibram com aquele objecto esféricos que se movimenta aos pés de 22 jogadores. Por algum motivo será, digo eu que nada sei.

   Ronaldo é um impresentable, como dizem os espanhóis. Menino mimado, arrogante, egocêntrico, prefere sair-se bem num jogo, ele, ao sucesso colectivo, de Portugal e dos seus companheiros. Fernando Santos foi sensato e demonstrou firmeza ao mantê-lo no banco. Foi (é) um grande jogador, o melhor, sabemo-lo, mas há que preparar o futuro da selecção. Ronaldo não é eterno, Portugal continuará a precisar de vitórias se quiser alcançar o lugar que merece entre as grandes selecções. Além disso, a selecção  não é propriedade de Ronaldo e família. É um conjunto de atletas que vestem a camisola da sua nação. Quando um jogador, por melhor que tenha sido ou for, não pode contribuir, independentemente do motivo, fica no banco. O interesse supremo é o do conjunto e, no limite, o do país, no que a esta competição se refere. Reacções de desagrado, mal-educadas, só desonram quem as tem. 

      Veremos até onde chegamos. Com ou sem Ronaldo.

22 de novembro de 2022

Mundial 2022.


   Começou anteontem o Campeonato do Mundo de 2022. É sabido, eu gosto de acompanhar estes torneios entre nações, muito embora este ano não esteja, pelas circunstâncias, tão entusiasmado como em anos anteriores. Em todo o caso, muni-me da minha revista oficial, vejo os jogos todos, e tão-pouco as polémicas em torno dos direitos humanos me demoveram. Independentemente das opções da FIFA e dos costumes do Qatar, que repudio, o que me motiva são as disputas entre nações, sobretudo, que partidas de clubes não me seduzem tanto. Naturalmente, condeno as violações sistemáticas dos direitos humanos no Qatar e na esmagadora maioria dos países do Médio Oriente (para não dizer todos), porém, torno a dizer, as escolhas da FIFA no que respeita ao país anfitrião que escolhe em cada campeonato não devem retirar a beleza do espectáculo e a sua importância para os aficionados. Quem gosta dos Mundiais, irá continuar a vê-los. O activismo, podemos e devemos continuar a levá-lo a cabo, em contexto de realização de grandes torneios e fora deles. O Qatar já desrespeitava os direitos humanos e continuará a desrespeitá-los quando nos despedirmos deste Mundial 2022.

13 de novembro de 2022

Nova Casa.


   Há uma semana, eu e o M. mudámo-nos. O M. conseguiu, finalmente, o seu posto fixo como médico, tendo escolhido um município a cerca de 40km de onde vivíamos. Estamos numa cidade, temos todos os serviços à nossa disposição, o que não sucedia na vila onde passámos os últimos dois anos e meio das nossas vidas. Comprámos um apartamento espaçoso mesmo em frente ao rio e ao passeio fluvial. Disponho agora de um amplo espaço para passear o cão. É uma nova vida. Profissionalmente, o M. tem estabilidade, uma vez que pode exercer como médico aqui para sempre. Onde estava, era interino. Aos 34 anos, é médico com posto fixo, o que muitos médicos com mais vinte anos em cima ainda não conseguiram. Desengane-se quem pensa que a vida de um médico é fácil. Com a instabilidade laboral dos nossos países, há gente que consegue ter mais segurança no seu emprego sem uma licenciatura do que o contrário. O tempo dos empregos seguros passou há muito.


Mesmo em frente à nossa casa


    As mudanças são sempre uma tortura, e eu infelizmente tenho feito muitas por vicissitudes da vida. Em Março, fomos a Portugal buscar os meus pertences e os da minha mãe aquando da sua morte, e menos de um ano depois já fizemos uma mudança. Os cerca de 40km da vila onde vivíamos em nada diminuíram  ou amenizaram o nosso trabalho. Tivemos de empacotar tudo, e imagine-se o que é fazê-lo quando, como eu, se é de acumular coisas. Centenas de livros, dezenas de camisas, calças, casacos, louças, mais coisas minhas de infância... foi uma trabalheira. Para que possam fazer uma ideia, enchemos duas vezes uma carrinha, e na quarta-feira última ainda tive de voltar à arrecadação do antigo apartamento para buscar os meus pertences de infância e outros que tais que depositámos ali. Depois, há que arrumar tudo na casa nova, deitar fora o que não presta, e isso levou-nos mais uma semana. Naturalmente, o M. continuou a trabalhar. Somente pediu dois dias de mudanças. O que houve, sim, foi coordenação da nossa parte. Como sabíamos de antemão que a convocatória estava a chegar, fui empacotando a casa atempadamente. Chegado o dia da mudança em si, procedeu-se apenas (como se fosse pouca coisa!) ao transporte. Estamos esgotados, porém, animados pelo trabalho concluído e com a nova fase que se inicia.

18 de outubro de 2022

Goku&Mia.


   Creio que lhes tinha comentado, quando ocorreu, da morte do Diesel. Dois anos e três meses na nossa companhia, alguém no-lo envenenou (esta parte não me recordo se cheguei a contar-lhes, terrível). O M., médico, e o veterinário, pelos sintomas e rapidez da crise que culminou na morte do cão, foram levados a crer em envenenamento. Se acidental ou não, eu tenho as minhas suspeitas. Não lhe quisemos fazer uma autópsia pela inutilidade do procedimento.

   O Diesel morreu numa sexta-feira, e os dois dias que se seguiram, sábado e domingo, foram de muita angústia e solidão. O M. está a trabalhar desde manhã até à noitinha, as horas que passo sozinho são imensas, e o cão fazia-me muita companhia. Na segunda-feira imediatamente a seguir, adoptei o Goku. O Goku -nome também escolhido pela senhora do canil- tinha 3 meses quando veio para a nossa casa. É um bodeguero, uma raça andaluza com origens no Reino Unido, e totalmente diferente do Diesel, inclusive por ser um cachorro: extremamente carinhoso, é enérgico, não pára quieto um minuto, e parece-me mais inteligente. Reúne todas as características dos cães bodegueros.

   Com o Goku, redobrei os cuidados. Tal como o Diesel, nunca está sozinho, e quando temos de fazer algo deixamo-lo em casa. Nas férias de Verão, claro, num hotel canino. A diferença está quando vou ao supermercado. Como vivo numa vila pequena, deixava-o atado à porta enquanto fazia as compras. Não o repito com o Goku, porque, se o Diesel foi envenenado intencionalmente, foi-o durante os parcos minutos em que fazia as minhas compras.





    Os gatos. Eu gosto de gatos. Mais de cães, assumo. Há dois anos, adoptei um gato, no mesmo canil em que adoptara o Diesel, porém, tive de o devolver uma semana depois por incompatibilidade com o meu transtorno obsessivo-compulsivo. Bem sei que os animais não se devolvem -não foi uma decisão que tenha tomado de ânimo leve-, mas pesando tudo devidamente na balança, cheguei à conclusão de que seria melhor para ambos, para mim e para o felino. Os gatos, adoráveis, têm uma personalidade que não se coaduna com o meu TOC, nomeadamente o pular por cima de tudo, as arranhadelas nos sofás, móveis, colchas, plantas, quando o meu transtorno se manifesta sobretudo na incapacidade de lidar com a desarrumação e a deterioração de objectos.

    Há uns dias, o M. trouxe-nos uma gata. A Mia (nome escolhido por mim). A história da Mia é triste. Foi abandonada pelos donos -vê-se que é uma gatinha de casa-, refugiou-se num centro de saúde de uma vila onde o M. faz vários plantões e uma mulher crudelíssima matou-lhe os filhotes (acabara de parir). A Mia, sendo uma gata e com as suas características inatas, não estraga nada. Às plantas, nem lhes chega.

   Foi uma decisão do M., o que de certa forma também me tranquilizou. Havendo algum outro problema, a “culpa” seria sua. Até este momento, tudo está a correr bem. Consigo sair de casa deixando-lhe as portas todas abertas, quartos incluídos, tentando superar o meu TOC, e a Mia ainda não deu cabo de nada. Com o Goku, a relação é tensa, particularmente da parte da Mia, que lhe mostra os dentes e as unhas, registando eu altos e baixos. Conseguem estar juntos numa mesma divisão da casa, sem que se aproximem em demasia. Suponho que com o tempo melhore. O não se engalfinharem já é bastante bom.




15 de outubro de 2022

Contas simples, Senhor Presidente.


   Marcelo Rebelo de Sousa deu um tiro no pé. O maior, direi eu, desde o momento em que tomou posse como Presidente da República, no seu primeiro mandato, com a diferença de que está no segundo, o último, permitindo-se a estas e outras afirmações, estas e outras atitudes, que não o dignificam nem ao cargo. Falo-lhes, como imaginarão, das declarações do Chefe de Estado a respeito das investigações a abusos sexuais cometidos por clérigos. A dita comissão independente chegou ao número aproximado de 400 casos, tendo Marcelo dito que não lhe pareciam muitos, ipsis verbis.

  Nem a sua extrema religiosidade justifica uma afirmação tão infeliz e infame. Tínhamo-lo como um homem inteligente e sensato. Não ponho em causa o primeiro, duvido do segundo. Marcelo esteve mal. Qualquer um tem dias maus e diz parvoíces irreflectidas. Contudo, no dia seguinte, e após auscultar a revolta no país, Marcelo, longe de pedir desculpas, como se anunciou na imprensa, saiu à tangente: se -se- alguma vítima de sentisse ofendida, ele desculpava-se.

   Marcelo ofendeu não apenas as vítimas da Igreja Católica - as milhares (milhões?) de crianças que tem a seu cargo e que maltrata e abusa; Marcelo ofendeu-nos a todos, até a quem, como eu, felizmente nunca caiu no leito de um padre ou um bispo pervertidos. Porque a sua patética dedução -o Presidente comparou os casos investigados em Portugal com os dos demais países europeus- baseia-se em números, e aquelas vidas não são números, e a censurabilidade daquelas condutas também não diminui por serem 400, 200, 100 ou 10 casos. Ainda que fosse 1, como se diz por aí. São contas simples de se fazer, inclusive para um jurista.

17 de setembro de 2022

Férias, Independência do Brasil e Isabel II.


    Já há muito tempo que não escrevo nada aqui. Quando não há nada para dizer, melhor calar, e saber calar é uma virtude, diz a sabedoria popular. Continuo, como imaginais, a atravessar um período de luto muito difícil, com dias melhores e outros piores. Entretanto, porque a vida continua, dizem também, fomos de férias para as Canárias. Repetimos a ilha, a Gran Canaria, que nos encantou no ano passado; as suas praias, as pessoas, as paisagens. Pensámos noutra ilha, mas no Verão gosto de fazer turismo de praia, e as praias das demais ilhas, pelas aplicações de viagens, pareceram-me muito rochosas. Pelo sim, pelo não, melhor jogar pelo seguro. Pensei na minha mãe todos os dias (novidade...), excepto, pela adrenalina, no dia em que fomos ao Aqualand Maspalomas, o parque aquático da ilha. Nos próximos dias, é provável que vos vá escrevendo sobre as férias, se tiver força de vontade.

   Entretanto, apanhei, durante os dias em que estive fora, dois acontecimentos: o bicentenário da independência do Brasil e a morte de Isabel II. O blogue sempre foi um espaço que utilizei para escrever breves (ou extensas) palavras sobre factos, ocorrências que não me deixam indiferente.

   Quanto ao 200º da independência do Brasil, naturalmente que é uma data que está indelevelmente relacionada a Portugal. A perda do Brasil, numa sociedade colonial e esclavagista como a portuguesa de então, representou a perda da sua mina de ouro, literalmente, e do seu estatuto como potência, que a bem ver já não era o da época gloriosa do século XVI. Portugal fez-se representar ao mais alto nível, com Marcelo Rebelo de Sousa nas festividades ao lado de Bolsonaro, um sapo que o Chefe de Estado português teve de engolir.

    A relação entre o Brasil e Portugal é bastante boa, contrariamente àquilo que sucede aqui em Espanha com os Estados emergidos das suas antigas colónias. Em todo o caso, o Brasil não tem para com Portugal nenhuma atitude reverencial baseada na antiga relação de domínio. É um pais que soube fazer o seu percurso, inclusive no que respeita à língua comum com Portugal, e culturalmente não tem em Portugal uma referência. Há o reconhecimento desse vínculo, do passado que une ambos os países, há laços de amizade, cordialidade e cooperação, e pouco mais. Já Portugal, e não é de estranhar, vê o Brasil com um certo paternalismo advindo do passado; é-lhe um território quase místico, que remonta a uma idade gloriosa, e em tudo o que envolve o Brasil de forma crucial, Portugal gosta de estar presente, de acompanhar, respeitando a soberania do país, certamente, porém com aquela atitude de pai que observa atentamente os passos de um filho que já há muito voou.

    Brasil e Portugal estarão sempre unidos. A comunidade brasileira em Portugal é a maior no país, não parando de crescer, e há desafios que ambos os povos terão de superar: da parte dos brasileiros, exige-se o fim de antigos mitos relacionados à figura dos portugueses, mitos que não correspondem mais à realidade; por sua vez, os portugueses terão de fazer um esforço maior para compreender que o Brasil tem a sua identidade cultural e linguística autónoma, que não têm por que ser igual à portuguesa. De igual modo, exige-se o fim de muitos preconceitos relacionados à figura do brasileiro, sobretudo da mulher brasileira, que sim é vítima de estereótipos e generalizações perigosas.


   A morte de Isabel II teve uma enorme repercussão fora do espaço britânico e da própria Commonwealth. Portugal decretou três dias de luto oficial, e não foi o único país a fazê-lo. Falamos de uma pessoa que ocupou a chefia de estado de uma potência como o Reino Unido durante 70 anos, atravessando vários governos dos seus reinos e de fora deles. Gostemos ou não, foi uma mulher que marcou o século XX, quando mais não seja pela longevidade do seu reinado. Eu não gosto, o que não deixará de me levar a reconhecer o impacto que teve, nomeadamente cultural, atraindo turistas e consequentemente lucro ao seu país. Se há monarquia emblemática, é-o a inglesa, pelo seu prestígio, que está intimamente ligado ao do Reino Unido como herdeiro da potência imperial, mercantil, cultural que foi durante séculos, mais exactamente até ao fim da I Guerra Mundial.

    Isabel II e a sua imagem estão envoltas num manto de romantismo que não nos deve impedir de ver as injustiças da monarquia. Afinal, o que fez Isabel II pela paz ou pelo bem-estar mundiais? Qual o seu mérito em ter ocupado um trono para o qual não foi eleita; um trono que recebeu por ter nascido em determinado berço? Em 70 anos, encobriram-se escândalos, de corrupção até, envolvendo a monarca e a sua família. Sete décadas de bajulação naturalmente deturpam o carácter de qualquer um. Para um democrata, a concessão de privilégio tal durante tanto tempo não é concebível nem tolerável. Não há tradição que o explique e ainda menos o justifique. Desde já, observam-se limitações às liberdades de expressão e manifestação no Reino Unido de sectores anti-monarquia que não dignificam o Reino Unido como secular sociedade tolerante, que tanto avançou no domínio das liberdades individuais quando a Europa continental fazia o caminho inverso. A atitude da polícia inglesa vem demonstrar que as mais sólidas democracias tremem perante o despotismo de privilegiados que se julgam investidos por um deus qualquer (e o Reino Unido tão-pouco é um Estado aconfessional ou laico) para reinar, neste caso, até que o mesmo deus os chame à sua presença. Lembra-me a entronização de Juan Carlos em 1975, quando ficou bem claro que só responderia perante o tal deus no dia em que fosse chamado a prestar-lhe contas.

4 de agosto de 2022

Deus e a Fé


   Neste ano terrível, terminei há instantes um livro que tinha aqui há quase 20 anos, desde o Natal de 2005, e em que por vicissitudes da vida nunca pegara. Comprei-o no início do período de desligamento dos meus pais, que culminou na sua separação, e aqueles tempos foram-me demasiado turbulentos e dolorosos para pensar sequer em ler. A obra chama-se Deus e a Fé (no original, ¿Sin Dios o con Dios?), e consiste num diálogo epistolar entre dois amigos, um crente em Deus, teólogo, jesuíta, e um não-crente, filósofo, que trocam correspondência entre si, expondo cada um por que razão acredita e não acredita em Deus.

   Deus para mim é um mistério. Presumo que para todos os seres humanos. Houve um tempo em que julguei acreditar nele, mas dei-me conta de que tudo aquilo em que julgava crer não era mais do que palavras e pensamentos sem a menor base de sustentação. A verdade é que passei toda a minha vida sem a necessidade de Deus. Recorri-lhe algumas vezes, não por fé, senão como uma última instância de recurso

   Nos últimos tempos, fui tomado por um cepticismo enorme, provavelmente não indiferente à minha conjuntura actual. Pensei que fosse ateu, porém, não. Será melhor dizer-me agnóstico, porque efectivamente não consigo asseverar nem refutar a existência de Deus. Mantém-se-me uma incógnita. Admito que encontro razões plausíveis em alguns crentes -especialmente neste do livro, um dos seus autores-, González Faus, que exprime fundamentos que nos fazem pensar. Retive um na memória: a Deus não se pode conhecer, apenas crer; para o homem (entenda-se, a humanidade, homens e mulheres), conhecer é dominar, apropriar, e isso far-nos-ia ser superiores a Deus. Pelo contrário, Ignacio Sotelo, o outro coautor, tem de igual modo bons argumentos, nomeadamente o de que um Deus omnipresente se faria sentir de forma mais evidente, e que a sua omnisciência o levaria necessariamente a saber que falharíamos, fracassaríamos, e que portanto não faz sentido ter-nos criado livres se essa liberdade, falhada a priori, tem como objectivo redireccionar-nos na sua direcção. Dito por outras palavras, fomos feitos perfeitos para falhar, para depois voltar a ser perfeitos. A razão e a fé.

   Um livro desta natureza e envergadura não pretenderá, digo eu, que cheguemos ao final e digamos: “Acredito!”, ou “Não acredito!”. Parece-me antes que é um exercício para que tenhamos outras premissas, outras visões, que nos ajudem, ou não, a formular a nossa própria hipótese de Deus. Não serão muitos os que terão atravessado este mistério da existência sem se perguntar por Deus, quem é, onde está, qual o seu propósito com tudo isto.

29 de julho de 2022

Diesel (2014?-2022).


   Sendo sincero, já me custa estar sempre a escrever desgraças, mas que poderei fazer eu? Creio que me lançaram um mau olhado, ou algo do género. Não sou dado a acreditar neste tipo de coisas (inclusive considero-me agnóstico), mas por vezes deparo-me com determinadas circunstâncias, pessoais e nos outros, que me levam a considerar a existência de más energias, pelo menos. Não sei se isso implicará deuses.

  Fazendo-o quase em jeito de relatório, depois do meu padrasto (05/03), da minha mãe (10/03), da minha avó paterna (03/07), da minha tartaruga (11/07), na sexta-feira passada morreu-me o Diesel, o meu cãozinho, que adoptara há dois anos, pouco tempo depois de vir viver para Espanha. Na quarta-feira estava perfeito. Na quinta de manhã, tive de ir a Vigo tratar duns assuntos no vice-consulado de Portugal, e despedi-me dele. O meu marido levou-o a passear antes de ir para o consultório e logo me disse que o Diesel vomitara. Bem, não fiquei preocupado. O Diesel vomitara várias vezes antes, era-lhe comum, até depois de comer ervas, que lhes servem como purga. À noite, tarde, quando chegámos, tínhamos tudo vomitado, e decidimos esperar pelo dia seguinte para levá-lo ao veterinário. Morreu de manhã, pelas 10h, no corredor. Diz quem conhece mais do assunto que eu (o meu marido e o veterinário) que provavelmente morreu envenenado. Se de forma intencional ou não, não se sabe. Levantaram-se-me mil e uma dúvidas, inúteis, porque não há nada a fazer quando nos deparamos com estas situações.

   Reajo quase de forma apática a estas últimas mortes. Racionalmente, tartarugas e cães há muitos, e da minha avó nem gostava particularmente. O que esta sucessão de mortes vem fazer é agudizar-me a dor pela morte da minha mãe, e questionar-me sobre o porquê, o porquê disto tudo, destas mortes que se somam sem parar num espaço temporal tão curto.

14 de julho de 2022

In memoriam.


   Hoje, ao vasculhar o meu e-mail lá por 2014/2015, dei com umas fotos antigas de que nem tinha conhecimento. Duas fotos onde surjo com o meu amigo Miguel Botelho, um dos bloggers mais antigos, falecido em 2019 após vários anos, muitos mesmo, de uma luta inglória contra um tumor agressivo. O Miguel relatava no seu blogue, que poderão encontrar aqui (um voo cego a nada), todos os processos médico-cirúrgicos por que passou ao longo do tempo, e foram muitos, que lhe provocaram um enorme sofrimento, sem que porém se resignasse. O Miguel enfrentou o cancro sempre com a mesma tenacidade e coragem. A sua morte, entretanto, assim espero, trouxe-lhe finalmente a paz que não pôde encontrar em vida.

   Estive com o Miguel algumas vezes, e recordo-me que, aquando da notícia do seu falecimento, me lastimei por não ter, presumia eu, uma foto consigo, onde constássemos os dois. Encontrei hoje, misteriosamente, uma, neste ano horrível. Ali estamos nós, no jardim Amália Rodrigues, perto do Parque Eduardo VII, numa cálida tarde de Verão. Depois, fomos almoçar numa das transversais à António Augusto de Aguiar. Não sei se terá sido a última vez que estivemos juntos. O que sei, sim, é que a doença já se manifestava de uma forma ostensiva, não lhe permitindo estar mais do que alguns minutos sem que tivesse que acudir de novo, uma e outra vez, à casa de banho. E todos nós, os que ali estávamos com ele, éramos testemunhas daquele sofrimento e incómodo, que o Miguel dissimulava com um sorriso, a sua simpatia e educação. É este o Miguel que recordo: um homem educado, culto, ávido devorador de livros, e discreto. Discreto nas relações pessoais, íntimas e menos íntimas.

    A descoberta da foto, chamemos-lhe assim, foi o mote para esta publicação. Deixo-a aqui, e faço-o porque sei que o Miguel não se importaria. Ele mesmo tem fotos suas no espaço que nos deixou como legado, por assim dizer.



    A propósito, e porque talvez algum de vocês saiba interceder junto seja de quem for, a minha tartaruga faleceu há três dias, depois de 27 anos e 7 meses comigo. A quarta morte do ano, uma mais que se vem somar ao rol de tragédias.

8 de julho de 2022

Annus Horribilis.


   A vida ensina-nos. Sempre o ouvimos vindo de pessoas mais velhas que nos precedem em anos e experiência, mas frequentemente só entendemos a dimensão desta lição quando passamos por determinados acontecimentos que nos provocam verdadeira dor. A partir daí, aprendemos a relativizar tudo o que antes colocávamos no epicentro das nossas preocupações. 

    A separação dos meus pais, em 2006, pareceu-me o fim do mundo. Tinha vinte anos. Nunca antes houvera passado por um período tão duro. Foi o desmoronar dos meus alicerces, da estrutura que me suportava mentalmente. Vi-me sozinho, com uma pessoa nova na minha vida, cuja existência não se deveu a uma decisão que tenha tomado. Vi-me, em suma, no meio de um caos total que os meus pais provocaram. Foi o culminar de anos de decisões erradas que me prejudicaram tanto... A custo, a muito custo, fui-me reerguendo, e (re)nasci mais forte, é certo. Aquele ano trouxe uma viragem decisiva, crucial, contudo, pelo sofrimento que me acarretou, ficou conhecido por mim como o meu annus horribilis. Sabia -é fácil deduzi-lo- que outros chegariam. Talvez não tão cedo. 

     Perdi a minha mãe. Creio que agora o consigo escrever. Como escrever sempre me foi mais natural do que falar, paradoxalmente, consegui dizê-lo antes de o conseguir escrever. Como se o escrevê-lo o tornasse num facto assumido, consolidado, irreversível. Cinco dias antes, não perdi, mas morreu o seu companheiro de dezasseis anos, o homem que demonizei por tanto tempo, apercebendo-me agora de que fora excessivo. Só nos damos conta da futilidade dos ódios quando as pessoas partem. Na debilidade dos outros vemos a nossa própria. Tudo se acaba tão rapidamente. E aquele homem que quis longe dos meus olhos, a quem desejei tudo do pior, foi-se. Não fomos amigos. Nem sequer nos respeitámos. Hoje, entretanto, vejo que algum bem me fez, que não lho reconheci, e que dou por mim a pensar nele todos os dias.

     Na sexta-feira santa, a minha avó paterna, a avó Maria, adoeceu. Adoeceu de um momento para o outro. Entre internamentos e exames, descobriu-se-lhe um cancro de pulmão. Morreu no dia 3 deste mês. 

     Este ano, num espaço temporal inferior a quatro meses, perdi duas das mulheres mais importantes: a mais importante de todas, a minha mãe, e a minha avó que, com a minha mãe e o meu pai, também me criou. Duas perdas dolorosas, abruptas, inesperadas. À sensação de estranheza, de abandono, dificilmente dou corpo. Em primeiro lugar, vem a evidência de nunca mais voltarmos a ver aquelas pessoas que sempre estiveram presentes, para o bem e para o mal. De seguida, a certeza de que já lá não estarão para nós se precisarmos. É um confronto com a nossa solidão, com o desamparo. E vêm as tentativas de remediar isto e aquilo, reunir este e aquele caco, resolver esta e aquela pendência, sempre com o fito, mais ou menos consciente, de procurar escapar à causa primária de tamanho desconforto.

    Daqui em diante, não sei o que irá suceder. Vivo um período de profundas transformações que se iniciou em 2020. Estes terramotos que me sucedem de tempos em tempos, que me provocam um medo tremendo, e que nunca sei como me deixarão.

30 de maio de 2022

O deus das pequenas coisas.


   Terminei há uns dias um livro extremamente útil para se conhecer a realidade sociocultural da Índia. O deus das pequenas coisas foi publicado em 1997 e, no mesmo instante, tornou-se num enorme sucesso literário pelo mundo fora, rendendo à sua escritora, Arundhati Roy, o Booker Prize. É a estória de dois irmãos gémeos e a sua mãe que, por circunstâncias menos felizes (fatídicas), se vêem afastados, e são-no sobretudo pelo contexto em que se inserem. São-no porque vivem num país que, naquela época (e que hoje continua a fechar os olhos), permitia o iníquo sistema de castas; uma sociedade pejada de complexos de todo o tipo, onde uns se julgavam mais do que outros, porque tinham sangue inglês, costumes britânicos, ou inclusive porque professavam o cristianismo. Juntou-se o mau ao péssimo. Aos preconceitos seculares (milenares?) da sociedade indiana, o racismo institucional e social que era prática comum entre os britânicos, e que o levaram para a Índia junto ao colonialismo, perdurando além do seu fim. No meio de tudo, dois meninos e a inocente Ammu são apanhados com os seus sonhos, os seus atrevimentos, as suas brincadeiras, ousadias, e as tentativas maliciosas, cínicas, de se recompor, coser, o que está (estaria?) mal. Remendos num tecido velho. Remendos que destroem vidas, irremediavelmente, irreparavelmente. 

    Uma Índia de fortes contrastes sociais. É, em suma, uma crítica rotunda, taxativa, à Índia injusta, que vira a cara às suas misérias e aos mais desfavorecidos em razão da sua ascendência ou posição social, que se consome a si própria e ao seu povo, extremamente diversificado cultural, linguística e religiosamente. A política e o confronto ideológico atiçaram ainda mais o lume naquele gigantesco mantra em combustão.

    Li-o em castelhano, embora também tenha uma edição em galego. Avancei já para o Ulisses, de James Joyce, uma obra complicada, intrincada, que exige atenção e, sobretudo, maturidade, e cuja tradução do inglês envolve muita perícia e astúcia. 

7 de maio de 2022

Serás sempre.


   Serás sempre a pessoa que mais me amou, que mais se sacrificou por mim. Que tudo fez para que nada me faltasse.

   Durante muito tempo, pela imaturidade, julguei as tuas decisões por não me ver capaz de as entender. A passagem dos anos, que traz a velhice, a doença, a morte, traz-nos também a experiência, e hoje vejo-me capaz de entender que não tinhas outro caminho senão aquele. Tomaste decisões erradas, como todos, e eu perdi demasiado tempo a condenar-te, a culpar-te, inclusive por situações que não eram directamente responsabilidade tua. Fi-lo por fraqueza. Responsabilizei-te por não ser capaz, e com isto perdemos momentos que poderíamos ter desfrutado adequadamente.

   Amei-te e amo-te mais do que a mim, e os erros que cometi, que cometeste, cedem perante o amor que te tenho, que me tinhas. E por isso não há lugar para o remorso. Sofro pela tua ausência -será uma dor que me acompanhará sempre-, porém, a certeza inquestionável e acima de qualquer dúvida do meu afecto por ti leva a que nenhum remorso me atormente. Lamento somente os tais momentos que poderiam ter sido melhor aproveitados.

   Disse-to, quando ainda estavas em condições de o entender, que te amava. Pedi-te perdão por qualquer erro. Sei que o sabias, tenho absoluta certeza, e isso tranquiliza-me. Nunca duvidaste do que sentia por ti. Também me dá alento saber que haverias de querer que seguisse, e que mo dirias se pudesses. Continua. Sê feliz. Tens quem te ame e te cuide. Os trinta e poucos anos que tivemos juntos foram vividos intensamente, de tal forma que, para cada situação com que me depare, sei exactamente o que me dirias, o que me aconselharias, e as decisões que tomo, tomo-as tendo em conta a tua opinião, que conheço, e o que quererias. Todas. Até as aparentemente mais polémicas. Tu e eu sabemos o que mais ninguém sabe. Uma parte já partilhada com o M., no entanto, suficientemente polida para que o compreenda e aceite melhor.

    Inevitavelmente, tal abalo fez-me mossa. Caiu sobre mim como um terramoto. Agradeço, ainda assim, a sorte que tive, que tenho, entre o desaire, o medo maior. Terei um porvir difícil, se sobreviver, e não te peço forças nem que olhes por mim porque aquilo em que acredito me impede de te imaginar por aí, vendo-me e ouvindo-me, acompanhando-me. Mas sei que, um dia, também sobre mim cairá esse véu da não-existência que afastará o conhecimento da tua perda, a dor pungente que se abate sobre mim a cada instante. Nada dura para sempre. Nem a dor.

    O apego à vida, que nunca foi muito, diminuiu, porque foste, serás sempre, um dos motores que me fazia prosseguir, insistir. Pode ser que consiga obter essa força, que nunca encontrei em mim, noutras paragens; porventura em ti, doutro modo. 

     Há que seguir, dizem eles. E seguirei, enquanto me fizer sentido.

3 de maio de 2022

XIV Aniversário.


    Olá a todos. Há mais de um mês que não publicava nada, e provavelmente permanecerei assim, mudo e calado, porque continuo a atravessar esse longo e doloroso caminho de reconstrução, de (re)nascimento, se lhe quiserem chamar assim, depois da morte de um ente muito, muito querido. Passou-se tudo demasiado depressa -pelo menos este desfecho não, não era esperado-, e não fosse o apoio do meu marido, provavelmente não estaria aqui a escrever-lhes. Sou muito claro nas palavras. Não as temo, e considero que sofrer por sofrer não merece a pena. Quando isto já não nos faz sentido -e refiro-me à vida, para os distraídos-, saímos dela como quisermos. É nossa. Pertence-nos. Não é de deuses, que não existem, nem de religiões. Não temos de sofrer física ou psicologicamente porque a vida é um dom e blá, blá, blá, whiskas saquetas.

   Mas não foi para falar de mim nem do meu sofrimento que vim aqui. Foi para assinalar o décimo quarto aniversário deste blogue. O carinho que lhe tenho ainda justifica que venha aqui com esse intuito. Pois já está. Espero que estejam todos bem, e eu, aqui vou, contando a cada dia, procurando sobreviver. O mesmo que dizer, na merda. Tchau.

     

14 de março de 2022

Um até já, talvez.


   Pode ser definitivo, pode ser que não. Estou-lhes a ser realista. Neste momento, atravesso o pior período da minha vida, o de maior dor -a dor maior-, o maior medo que se tornou real. Não estou em condições físicas e psicológicas de ir escrevendo, ou seja, de me comprometer com qualquer assiduidade nas publicações. Imagino que muitos dos que me odeiam estejam felicíssimos, mas também esses passarão por isto, e outros até já passaram. Por isso, pensem duas vezes antes de se divertirem à minha pala. Não estou a justificar nada. Sei que deixei de escrever e que há uma pouca gente que me merecia uma “explicação”. Aqui está.

    Talvez volte, quando me recuperar deste terramoto. E, voltando, serei pior do que alguma vez fui. Nada mais me dará medo na puta da vida. Vá, fiquem bem.

26 de fevereiro de 2022

Crónica de uma guerra anunciada.


   Nada me leva a favor dos EUA e do seu imperialismo sobre várias nações do planeta. Sabemos que ambos, quer os EUA quer a Rússia, se comportam da mesma forma de há várias décadas a esta parte. Movimentando-se na cena política internacional apoiando líderes simpáticos à sua causa ou ideologia e ditaduras conservadoras ou socialcomunistas, criando alianças militares, intimidando países terceiros. O fim da Guerra Fria trouxe um desanuviar de tensão entre as potências hegemónicas, porém, passámos de duas para uma, e os EUA puderam reafirmar a sua superioridade militar, económica, política, cultural. A Rússia passou a um papel secundário, ou menos ainda, com a ascensão da China. Nunca o encarou bem, e todas as tentativas americanas de estender a sua influência no leste europeu foram encaradas como uma ameaça pelos russos. Para os americanos, mais do que se defenderem da Rússia, procuram defender-se do Irão e da Coreia do Norte, criando escudos antimísseis nos países aliados da OTAN/NATO. Às portas da Rússia, portanto.

    Há um princípio basilar do direito internacional público que é o da soberania estatal. Afastando-nos dos propósitos e expectativas de americanos e russos, todos os países são, ou deveriam ser, livres para conformar o seu destino como queiram, firmando as alianças que queiram. Se ocorrem golpes de Estado, são questões internas de cada Estado soberano, e devem ser resolvidos pelo seu povo. Portugal teve um golpe de Estado em Abril de 1974, EUA e a Espanha franquista cogitaram invadir o país temendo que os marxistas tomassem o poder e creio que ninguém hoje apoiaria essa solução. É exactamente o que se passa no leste europeu: há, na Ucrânia, um governo desfavorável aos russos, há o problema da aproximação da Ucrânia ao ocidente, e a Rússia, numa intimidação absolutamente inaceitável, não o permite, ou seja, a soberania dos países do leste europeu é uma farsa. O ascendente da Rússia mantém-se e a política de intimidação não chega sequer a assumir um carácter moderado, dissimulado. Ontem mesmo a Rússia ameaçou contundentemente a Suécia e a Finlândia com consequências militares caso adiram à NATO. Já não falamos de ex-repúblicas soviéticas. Ainda que o fossem.

   Ideologias de lado, só há um caminho que me parece correcto, respeitador da soberania do povo ucraniano e do direito desse mesmo povo de viver em paz e de poder decidir sobre o seu futuro. É nisso que consiste a autodeterminação dos povos. Tudo o que se afaste um milímetro destes princípios não atende à vontade do povo ucraniano, justifica a guerra sem o aval das Nações Unidas (no fundo, apoiando agora o que anteriormente se criticou nos EUA) e abre o precedente de que qualquer Estado pode intimidar ou inclusivamente invadir outro se considerar que há razões que o justifiquem. É um atropelo ao direito internacional, é o caos nas relações entre os Estados.

24 de fevereiro de 2022

A guerra.


   Afinal, as fontes de informação que nos davam conta de um ataque iminente estavam certas. Putin invadiu realmente a Ucrânia, dando início a uma guerra desproporcional, injusta e ilegítima, que viola e integridade territorial e a soberania internacionalmente reconhecidas de um Estado soberano e compromissos que a Rússia firmou, como em 1994, em Budapeste, comprometendo-se a respeitar a soberania ucraniana em troca do envio para Moscovo do arsenal ucraniano herdado da União Soviética.

    O senhor Putin representa uma ameaça à paz na Europa e à humanidade, dado que não sabemos onde isto irá terminar e quais os seus diabólicos planos. Minorias étnicas e linguísticas russas há-as em vários países da região, inclusive nos países bálticos. Um deles activou mesmo um dos artigos da OTAN/NATO. Temos a guerra à porta das nossas fronteiras, tomando-as como as da UE, um espaço de livre deslocação de pessoas, e importa saber qual será a posição assumida pela União Europeia se o senhor Putin tiver outros objectivos para além do controlo político das regiões separatistas do leste ucraniano. Mas ainda considerando a própria Ucrânia, gostaria de saber se conseguiremos conviver com a fragmentação de um Estado soberano como os nossos -e aqui falo como europeu e cidadão da UE- que desde 2014 vê a Rússia a invadir o seu território, apossando-se dele (Crimeia) sem que nada fosse feito.

  Lamento profundamente que tenhamos chegado a este cenário de confronto directo em que inevitavelmente os que mais sofrem são os menos implicados em todas estas questões: a população civil e, dentro dela, as pessoas mais fragilizadas. É já há vítimas civis, ainda agora a guerra começou. Simultaneamente, repudio em absoluto o apoio manifestado por alguns grupos de cidadãos simpatizantes de Putin e/ou do seu estilo de governação, num insensível desprezo pelo sofrimento do povo ucraniano.

17 de fevereiro de 2022

Despertaram para um problema social e cultural.


   Eu tenho sido, nas minhas redes, das vozes mais activas das que conheço que se manifestam sobre o flagelo social e cultural que é a violência doméstica, machista e sexista. Em Espanha, inclusive, fazem uma distinção, que em Portugal não se faz, entre violência doméstica e de género, e posso-lhes dizer que a sociedade espanhola está bastante mais atenta às situações de violência infelizmente tão comuns em países do sul da Europa, católicos, que passaram por ditaduras conservadoras. Nesse sentido, quando vejo que há uma multidão que se insurge quando sabe de casos mediáticos, revolta-me. Durante uns dias, não se fala doutra coisa, até que sabemos de mais uma mulher agredida, abusada sexualmente, mutilada, assassinada, incrementando umas estatísticas vergonhosas com as quais, aparentemente, convivemos bem.

   O caso em concreto não me merece comentários. Não vejo trash tv, nem em Espanha, o que se dirá de Portugal. Recebo ecos do que se passa em Portugal uma vez que subscrevo jornais digitais portugueses. Continuo a ser português e a interessar-me pelo meu país. Não sei se agrediu, se não agrediu, vi umas imagens deploráveis, e o que me ocorre dizer é o seguinte: que se persigam, de uma vez por todas, os agressores, os que convivem bem com o machismo e a submissão da mulher ao homem; o sexismo encapotado que continua a julgar os comportamentos da mulher, o que faz, com quem vive, quantos parceiros tem, o que veste. É necessário corrigir condutas, todos os dias, educando, denunciando, abordando o fenómeno. Uma voz que se levanta de tempos a tempos é uma voz que compactua nos períodos de silêncio.

16 de fevereiro de 2022

O Mar, O Mar.


    Terminei de ler O Mar, O Mar da bem-sucedida escritora irlandesa Iris Murdoch, uma das maiores romancistas em língua inglesa do século XX, de quem li O Sino há muitos anos, tantos que praticamente não me lembro de nada da estória. Tinha uns dezasseis, e fora-me oferecido pelo meu pai anos antes. Quando somos muito jovens, e eu era-o, ou as coisas nos marcam ou passam por nós sem deixar rasto, como um pássaro que cruza o céu, traçando uma rota, sem que ninguém o observe. Creio que também nos falta maturidade para entender as mensagens subliminares. A adolescência é um período sobrevalorizado.

    Pois bem, voltemos ao mar. A estória passa-se no rural costeiro inglês. Um actor que se reforma e que escolhe a placidez de umas paragens remotas, onde redescobre um amor antigo, justamente da adolescência (falávamos dela), desenvolvendo uma obsessão por recuperá-lo. Murdoch substituiu-se à sua personagem principal, Charles Arrowby, que nos relata o que se passa em estilo de narrativa directa, um diário seu, onde expõe as suas inquietações e mais diversas teorias sobre o presente e o passado.

   A obra de Murdoch é o retrato de um homem vaidoso, egoísta, que presume que as suas vontades devem ser atendidas, que utilizou as mulheres na satisfação das suas necessidades, sem que haja uma tomada de consciência disso a nenhum momento. Arrowby não é um homem mau. É um homem com um ego extraordinário, que oscila entre o autoconhecimento e a ilusão. Um velho actor solitário, meio antissocial, que desenvolveu inconscientemente outra obsessão, a de superação do seu primo James, a quem invejou durante todo o período da infância de ambos.

    Murdoch faz com que as demais personagens surjam no contexto de Arrowby quase como invasores da sua tranquilidade, da serenidade da narrativa e dos seus pormenores caseiros, às vezes como expiando os seus pecados, como pequenas vozes que se assomam para o fazer recordar dos seus erros, de como brincou com sentimentos, servindo-se de outros, sobretudo das mulheres, que teve várias, para depois as descartar ao não conseguir, ou não querer, construir algo mais sólido com qualquer uma delas. As personagens do sexo masculino são amigos que não o são. Rivais, admiradores implícitos, jovens que procuram uma figura paterna. Arrowby é um ídolo para tantos, e no fim de contas não o consegue ser para si próprio, frustrando-se-lhe os planos, meros caprichos, afinal.

     Um livro que nos fala de neuroses e defeitos comuns, e o mar, constante, que leva e traz, regenera.

14 de fevereiro de 2022

Curva da vida.


   O Lobo, que voltou sob outra capa, é um dos bloggers mais dinâmicos da blogosfera. Andou por aí muito tempo, depois desapareceu, e agora voltou num momento em que a blogo é um cadáver. Ele tinha sempre ideias para desafios, passatempos, eventos (os calendários, os oscars da blogo, e por aí), e desta vez fez a sua curva da vida, propondo-nos que também nós a fizéssemos. Eu vou elencar os melhores e os piores anos da minha vida. Tenho uma memória prodigiosa, e lembro-me de praticamente tudo, mais ou menos pormenorizadamente, desde os três anos. Anos felizes, felizes, nunca tive até sair de Portugal, verdade seja dita, mas houve uns piores.

1996: o ano em que mudei de colégio, passando a conviver com miúdos mais velhos. Foi a partir deste ano que comecei a sentir verdadeiramente os efeitos da discriminação e da ignorância, ainda que antes, onde vivia, já fosse discriminado por ser mais feminino;

2004: foi um ano terrível. O meu pai sofreu um AVC, que felizmente não lhe deixou sequelas graves, mas tudo aquilo perturbou imenso as minhas rotinas e a minha estabilidade emocional;

2005: o segundo ano da pior tríade da minha vida. Houve uma série de problemas pessoais que tornaram o ano horrível;

2006: o meu annus horribilis. Os meus pais separaram-se, a minha mãe conheceu outra pessoa e passou a viver com ela, o meu pai também saiu de casa. Passei por um processo de transformações e mudanças que me beneficiariam a médio prazo, mas na altura foi tudo um terramoto. Sofri o pão que o diabo amassou;

2010: foi o culminar de um processo de lenta recuperação iniciada em meados de 2007. Entrei na faculdade e isso abriu-me os horizontes;

2015: mais um ano de mudanças, não positivas, mas a partir de 2006 comecei a desvalorizar o que de mau me sucedia, tendo em conta aquilo por que passei naquele período;

2018: um ano muito mau na sua segunda metade, por uma notícia devastadora;

2020: a grande mudança. Sair de casa, do país, constituir família, adoptar um animal. Aconteceu tudo demasiado rápido. Foi o melhor ano que tive desde que nasci;

2021: um ano que vem no seguimento do anterior, muito positivo, com alguns acontecimentos inéditos pelos quais ansiava há muito tempo;

   Se fizesse um gráfico, veriam que, desde que vim ao mundo, estaria praticamente tudo abaixo da linha. Houve, sobretudo, anos maus, e outros igualmente maus que foram a continuidade uns dos outros. Foi quase tudo mau na minha vida, digo-o sem medos, e o bom tem sido uma excepção.

11 de fevereiro de 2022

Escalada de tensão.


   Embora a União Soviética se tenha desmoronado há 30 anos, a sua sucessora, a Rússia, nem por isso perdeu o interesse no leste europeu. Não foi com agrado que viu os países do leste europeu a aderir à NATO, à União Europeia; mantém relações privilegiadas com a Bielorrússia, e muitos daqueles países necessitam dos russos para o abastecimento de energia. No fundo, a tutela que a União Soviética mantinha, a Rússia julga que deve manter. Isto por um lado. Pelo outro, os EUA, como sempre, acicatando a desconfiança que já existe entre muitos daqueles povos e os russos, pelo passado recente, e procurando estender a sua influência às portas do seu tradicional arqui-inimigo. Tratando-se de um país de dimensões continentais, o maior do mundo, com energia atómica, um status de potência, evidentemente que a Rússia não vê com bons olhos a aproximação do leste europeu ao ocidente.

   Há ainda a questão das minorias étnicas russas em vários daqueles países. No caso da Ucrânia, e desde logo assumo que pouco entendo da matéria, sei que há uma forte presença russa sobretudo na parte oriental do país, e o russo é bastante falado. Na Crimeia, a maioria da população é de origem russa. Para nós, portugueses, é-nos uma realidade estranha, uma vez que etnicamente somos todos portugueses e falamos todos, ou quase, a mesma língua (há a questão do mirandês, que é uma falsa questão para aqui). O mesmo não ocorre noutras zonas do globo. Em Espanha, onde resido, as questões socioculturais já se fazem sentir no quotidiano político do país e inclusive nas relações que se estabelecem entre os diferentes povos, sempre marcadas por alguma tensão. No leste europeu, sucede o mesmo. Nem sempre as fronteiras dos Estados respeitam as nações, e nem sempre as nações constituem um Estado, e ainda não raras vezes algumas nações, ou parte delas, são incorporadas em Estados limítrofes. Quando a U.R.S.S se desmembrou, aqueles novos Estados continuaram com a configuração que assumiam durante o período soviético, enquanto repúblicas soviéticas. Desde a constituição do Estado socialista até à sua queda, mediaram várias décadas, e imagino que tenha havido movimentação de povos dentro das fronteiras internas, com predominância dos russos como maioria étnica, dominante demográfica e politicamente.

  Não acredito num conflito que comprometa a paz mundial, mas, sim, acredito em pequenas escaramuças e nas tentativas de intimidação da Rússia. A Europa é uma região pautada regularmente por conflitos -embora seja um continente pequeno, é-o diverso-, e a recordação das guerras nos territórios da antiga Jugoslávia ainda estão presentes.

9 de fevereiro de 2022

Budapeste (parte VI).


   Será quiçá a última publicação sobre Budapeste, ou talvez não. Hoje dir-vos-ei as minhas impressões gerais sobre a cidade e os húngaros. Começando pela cidade, é lindíssima. Adorei conhecê-la, provavelmente não repetirei porque tão-pouco é uma grande metrópole que deixe muito por visitar em cinco dias, que foi precisamente a duração da nossa estadia. Vimos tudo o que havia para ver. Conseguimos cumprir com o roteiro a que nos propusemos. Aproveitámos bem o tempo que tínhamos. Budapeste é uma cidade funcional, com bons transportes públicos, segura, não demasiado extensa, tranquila. O húngaros, pois...

   Os povos são todos distintos, em razão do percurso histórico, do clima, da cultura. Eu não esperava que os húngaros fossem calorosos na recepção aos turistas como os espanhóis, os italianos, os portugueses. O que esperei, sim, é que fossem educados no trato, cordiais, sobretudo os que lidam com os turistas, e a experiência demonstrou-me o contrário. A minha e a de outras pessoas que escolheram a Hungria como destino de ócio, que nos demos, eu e o M., depois do regresso, ao trabalho de ler opiniões em sítios na internet dedicados a viagens e turismo. Há demasiadas opiniões semelhantes à nossa.

  Logo à chegada, a polícia, ainda no aeroporto, foi extremamente agressiva com os turistas que chegavam. Falaram-nos num tom autoritário, brusco, quase ameaçador. Pareceu-me que estava a entrar num estado ditatorial nos anos 70. No mesmo dia, repetiu-se o sucedido à entrada do parlamento. Os seguranças manifestaram os mesmos modos. Nos locais de comércio e restauração, também não temos nada de agradável para dizer: agressividade, má cara, desconfiança. Já sabia que os húngaros tinham elegido a extrema-direita, o Fidesz, um partido eurocéptico e anti-imigração, mas nós éramos turistas. Contribuímos para a riqueza interna do país, para o seu desenvolvimento. Com um leque tão vasto de escolha, decidimo-nos pelo seu país, e isso ao menos merecia que nos tratassem com outra consideração. À saída, no aeroporto, uma vez mais, e talvez para manter a coerência (risos), assistimos a mais episódios desagradáveis com os turistas.

   Importa referir que muitos dos casos foram observados por nós e ocorreram com outras pessoas. Não se trata de uma experiência nossa, isolada. Inclusivamente, comentei-o com o M., durante uma visita guiada, e uma portuguesa que estava de visita, ouvindo-nos, deu-nos razão. 

  A Hungria pertence à UE desde 2004. Budapeste é uma das cidades mais visitadas da Europa. Esperava-se que lidar com o turismo já fosse uma prática rotineira para os húngaros, e a impressão com que fiquei é a de que não gostam de estrangeiros. Há uma profunda desconfiança com quem não é de lá. Ainda que quisesse voltar, que não quero, não o faria. Há povos que são abertos ao mundo, receptivos aos outros, e há outros que não. As coisas são assim. 

   O que referi aqui não implica que a vossa experiência tenha de ser igual à nossa. Budapeste é realmente uma cidade que merece ser visitada. No entanto, eu aconselhar-vos-ia a refrear o ânimo quanto à receptividade dos húngaros, que deixa a desejar.

8 de fevereiro de 2022

Budapeste (parte V).


   O regime comunista desintegrou-se, na Hungria, em 1989. Caiu de forma pacífica, como de resto em todos os países do antigo bloco soviético, à excepção da Roménia, que executou o seu líder, Ceausescu, após um julgamento sumário. À época, as praças de Budapeste estavam todas elas repletas de estátuas e símbolos do comunismo. Com a transição para a economia de mercado, retiraram-se aquelas estátuas das praças públicas e chegou-se a cogitar a sua destruição. O bom senso imperou e, em 1993, inaugurou-se um parque a cerca de 12km de Budapeste, um descampado, como que um cemitério onde depositar aquelas enormidades de bronze sem ferir susceptibilidades e comprometer o novo rumo político pró-ocidental que se almejava.


Lenine, o grande líder e fundados da União Soviética


  Chama-se Memento Park, e a sua construção não se deu ao acaso. Arquitectonicamente, tudo foi idealizado para lhe conferir um simbolismo. A entrada, por exemplo, parece-nos sumptuosa, reportando-nos a um templo clássico, mas depois, quando passamos a porta, vemos que se trata de um terreno amplo, seco, desértico, com as estátuas dispostas aqui e acolá. É uma alusão ao comunismo, um modelo de regime que promete muito, sem que, no fim, se cumpram as expectativas. Estávamos em 1993, e ainda não lhes podia ser exigido aos húngaros que fizessem leituras apolíticas da sua história recente. Fora do parque, no lado oposto à entrada, vemos as botas de Estaline sobre um pedestal. Sobejaram apenas as botas. A estátua foi destruída integralmente numa revolta contra o regime comunista em 1956, que o Exército Vermelho sufocou imediatamente. Tal não sucedeu às de Lenine. Temos uma no pórtico da entrada, gigante, e outra no recinto do parque. Até ao dia de hoje, o fundador da U.R.S.S goza de mais prestígio e consensualidade do que Estaline.


Monumento à República Socialista Húngara (1969)


   Lá dentro, e depois da compra do bilhete, encontrarão não só elementos soviéticos como húngaros, e inclusive um Monumento aos Combatentes Húngaros das Brigadas Internacionais de Espanha, que foram -sem querer abordar muito a história espanhola nesta publicação- unidades militares que lutaram ao lado da República durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), contra Franco, do bando dos nacionalistas. Como acabou, vocês já sabem.

    Têm à disposição ainda uma pequena loja que vende recuerdos do recinto.

Todas as fotos foram captadas por mim. Uso sob permissão.

7 de fevereiro de 2022

Budapeste (parte IV).


   Budapeste é conhecida pelas suas termas. É uma cidade termal, famosa na Europa. Quis o destino que eu vivesse na capital termal da Galiza e de Espanha, Ourense, mas nunca cheguei a ir às termas daqui. Antes de me mudar para o rural, vivi umas semanas em Ourense. Tudo coincidiu com o início da pandemia, pelo que a ida às termas ficou adiada indefinidamente. Proporcionou-se fazermos termas em Budapeste. A cidade dispõe de dois balneários: um mais antigo, Gellert, e outro mais moderno, Széchenyi, que foi a nossa opção. Fica perto da Hösök tere, na linha M1, na estação homónima.


Sabe tão bem


  O balneário dispõe de várias piscinas, umas interiores, outras exteriores. Ficámos sobretudo nas exteriores. Estavam 5ºC, e dentro de água 29ºC. A sensação de variação térmica é impressionante e extremamente agradável. E depois há aqueles esguichos de água quente tão reconfortantes nos músculos e ossos. No caso do M., que sofre um pouco da coluna, além do agradável que são, ajudam-no a relaxar e a eliminar as dores. Um conselho: levem chinelos e touca. Se não o fizerem, poderão adquirir estes produtos numa loja dentro do recinto das termas. São obrigatórios. Ah, e a toalha de banho (ou um robe, melhor, porque no Inverno faz muito frio). O balneário tem instalações para que troquemos de roupa e, no final, nos duchemos.


O Balneário de Széchenyi


    Dependendo do tempo que disponham em Budapeste, aconselho a que passem pelas termas.


Todas as fotos foram captadas por mim. Uso sob permissão.


5 de fevereiro de 2022

És maricas?


   Um breve hiato nas publicações de Budapeste para um desabafo. Uma publicação intimista. Não surge por necessidade de catarse, mas explica, de certo modo, o porquê de, depois de uma breve incursão à direita, ter percebido onde realmente pertenço, e certos comportamentos.

   Como muitos meninos, eu também fui vítima de anos de preconceito, ignorância e ódio. Quando ouço falar em sair do armário, a expressão soa-me a algo incompreensível. Eu consigo perceber o que é chegar-se à beira de um pai ou de uma mãe e contar-se o que se é e se sente; comigo nada se passou assim. Eu nasci sem um armário. Era demasiado evidente, para mim e para os outros, que era um rapaz diferente. Ser mais delicado no trato, gostar de brincar com as meninas e com brinquedos de meninas não necessariamente teria de determinar a minha sexualidade. Entretanto, foi assim que o entenderam. Desde os cinco anos, sensivelmente, comecei a ser alvo de piadas e ridicularizações, primeiro no bairro em que vivia, depois no colégio. Naquela época (inícios dos 90), a juntar-se ao preconceito estava a ignorância. Parece inacreditável, mas os miúdos não sabiam bem o que eu era. Perguntavam-me se era homem ou mulher, se tinha vagina, se o meu pai também era assim como tu. Havia um desconhecimento gritante. Foi-o assim durante anos. Anos, dia após dia, sujeito às mesmas perguntas, às mesmas perseguições. Não podia falar daquilo com ninguém. Ninguém o entenderia ou estava capacitado para me ajudar. Por umas quantas vezes queixei-me aos meus pais dos maus-tratos de uns miúdos, que ligavam para o colégio, falavam com os directores e tudo ficava igual. Quando me refiro a maus-tratos, refiro-me a piadas e insultos. Até ao dia de hoje, nunca fui agredido fisicamente ou violentado sexualmente por ser gay.

   Esses anos transformaram-me decisivamente. Estou convencido de que me moldaram a personalidade. Como amar se nunca soube o que essa palavra significava? Como respeitar se nunca me respeitaram? Em casa era querido, sim, porém não chegava. Faltava ser aceite lá fora, pelos outros. Ser tratado como uma pessoa digna de consideração como qualquer outra, e sobretudo num período tão delicado como o é a infância, e mais tarde a adolescência. É impossível crescer-se com uma cabeça sã naquelas circunstâncias. Alguma repercussão havia de ter. No meu caso em concreto, tornei-me numa pessoa com falta de empatia pelos demais, desconfiada, que alimenta sentimentos de vingança contra quem me fez mal. Podia, realmente podia, ter transformado os traumas em mais uma bela estória de superação que se expõe nas redes sociais e todos batem palmas. Não foi assim. Admiro quem o consegue, a sério que sim. É bom, é excelente, conseguir pegar nas nossas fraquezas e dar-lhes um rumo positivo, inspirador.

  Naturalmente, a sociedade, a mesma que me fez mal (e, é provável, a alguns de vocês) não se compadece das nossas debilidades. Exige-nos o mesmo. O mesmo equilíbrio, a mesma ponderação, os mesmos sentimentos altruístas. Exige-nos, no fundo, um percurso irrepreensível como o dos demais. Julgam-nos por quem somos sem a menor preocupação com o nosso historial. Quando começamos a revolver o passado de alguém, podemo-nos deparar com surpresas, algumas chocantes, outras nem tanto, mas seguramente com muitas explicações.

  Então, como estar do lado dos meus verdugos? Como, inicialmente por me rever num patriotismo disparatado que exalta a história de Portugal e as suas velhas glórias coloniais, começar a fazer propaganda unindo-me àqueles cujo percurso em nada foi semelhante ao meu? Foi a análise que me fiz, e ao meu procedimento, e percebi que estava no caminho errado. Também percebi que o meu passado pode explicar quem sou, mas não deve determinar sempre o que faço, e que me cabe a mim distinguir o bem do mal, resistir às minhas inclinações para o mal. Não deixar que o que me fizeram me destrua como ser que tem a capacidade de, pelo menos, imitar os outros observando como fazem. E, acima de tudo, não fazer com ninguém o que me fizeram a mim. Seria dar-lhes a vitória, e eu não quero que eles ganhem.

4 de fevereiro de 2022

Budapeste (parte III).


    O Castelo de Buda pode levar-nos ao engano pela designação. Não se trata de um verdadeiro castelo. Na verdade, é um palácio, que tão-pouco visitamos como tal. Alberga dois museus de Budapeste: o museu de belas-artes e o museu de história. Nas imediações, encontramos o Bairro do Castelo de Buda, que junto a este, às margens do Danúbio e à Avenida Andrássy, são Património da Humanidade pela UNESCO desde 1987. É precisamente neste bairro do castelo que se situa a Igreja de Matias, de estilo neogótico, que vale a pena visitar, e o Bastião dos Pescadores, onde encontrarão um miradouro magnífico sobre a cidade. Relembro-lhes apenas que todos os monumentos em Budapeste, incluindo a maioria das igrejas e catedrais de relevo, são de visita paga. Decidimos visitar o Museu de História de Budapeste, dar um passeio pelo entorno, pela igreja e pelo bastião, naturalmente. Para subir ao castelo, poderão fazê-lo a pé (um pouco custoso), ou através de um funicular, que estava em manutenção no dia da nossa visita.


As vistas desde o Monte Gellért


   Entretanto, antes disso subimos ao Monte Gellért para poder desfrutar de umas vistas privilegiadas sobre Peste (que fica na outra margem do Danúbio). Esta subida sim pode custar-lhes um pouco, como nos custou a nós. Felizmente vamo-nos podendo sentar nuns bancos providencialmente instalados ao longo da encosta.


O Bastião dos Pescadores


   Pela noite, recomendo-lhes uma passagem por uma das cafetarias (dizem os entendidos) mais bonitas do mundo. Chama-se New York Cafe, e realmente tem uma decoração prodigiosa para a sua finalidade. Os preços, claro, são impraticáveis. A cidade não é mais barata, como se julga quando imaginamos que vamos recheados de euros a trocar por florins. A facilidade com que o dinheiro húngaro nos desaparece das mãos é impressionante. As taxas de câmbio também nos prejudicam, e nós levámos florins de Espanha (fizemos o câmbio aqui). Não chegou, claro. 


Deixa-nos sem palavras


  Antes de regressar ao hotel, fomos ver o parlamento de noite. Budapeste é conhecida pela sua luminosidade nocturna.


A cúpula do Castelo de Buda

Todas as fotos foram captadas por mim. Uso sob autorização.

3 de fevereiro de 2022

Budapeste (parte II).


   A Sinagoga de Dohány fica no bairro judeu. São outros dois locais que merecem uma visita atenta e demorada. No caso da sinagoga, é muito especial. É a segunda maior sinagoga do mundo e a maior da Europa. Como referi, situa-se no bairro judeu, que ainda hoje preserva as marcas dos bombardeamentos durante a invasão da Hungria, em 1944. Esta sinagoga reúne traços curiosos na sua arquitectura, daí que desperte o interesse de judeus oriundos de várias partes do mundo. Não é uma sinagoga comum. Tem características das igrejas católicas e uma forte inspiração andaluza. Damo-nos conta dessas influências só ao observá-la. Em todo o caso, se optarem pela visita guiada, como nós (há-as em vários idiomas durante todo o dia), dir-lhes-ão isto e muito mais.


Budapeste ainda tem os caricatos trolleys, que eu me recordo de ver no Porto, nos idos anos 90


   Outro dado interessante é que no terreno da sinagoga estão sepultados, em valas comuns, corpos de vítimas do nazismo. Nenhuma sinagoga encerra em si sepultamentos, à excepção desta, que esteve prestes a ser destruída pelos nazis. Não o foi, mas viu-se fortemente afectada na sua estrutura durante os bombardeamentos. Alguns dos corpos foram identificados, outros nem tanto. Nos seus jardins encontrarão ainda um memorial às vítimas dos alemães, incluindo do corpo diplomático. Constam nomes portugueses e espanhóis.


A Ponte da Liberdade, da que muitos húngaros ainda não gozam, infelizmente


   À tarde, seguimos no nosso passeio pela cidade. Passámos pela Basílica de Santo Estêvão, pela Ponte da Liberdade e pelo mercado da cidade. Não são locais de interesse que estejam perto entre si, mas o percurso faz-se a pé, para quem goste de caminhar, ou então poderão optar pelo transporte público de Budapeste, que como lhes disse na publicação anterior, é rápido e eficaz. Num país com um nível de vida (ainda) inferior ao português, e que portanto julgamos com menos meios, estão dotados de bons autocarros e de um metro que funciona muito bem. Budapeste é, assim me pareceu, uma cidade que, sendo capital de Estado, não é excessivamente grande. Percorremo-la bem.


Uma praça com elementos que imediatamente nos reportam à arte do leste europeu 


   Começando a anoitecer, passámos pelas imediações do Castelo Vajdahunyad, que fica logo atrás de uma das praças mais emblemáticas da cidade, a Praça dos Heróis (Hösök tere, em húngaro). É um espaço lindíssimo decorado com estátuas dos monarcas húngaros.

Todas as fotos foram captadas por mim. Uso sob permissão.

1 de fevereiro de 2022

Budapeste (parte I).


    Partimos de Barajas às 7h da manhã, aterrámos em Ferenc Liszt pelas 10h e pouco. O aeroporto húngaro foi assim rebaptizado em homenagem ao famoso compositor Franz Liszt, húngaro, personalidade destacada no país dos magyares.

  A capital húngara está extraordinariamente bem servida de transportes públicos, quer autocarros, eléctricos, trolleys ou inclusive o metro. Apanhámos o autocarro que faz o trajecto entre o aeroporto e o centro da cidade (não convém utilizar os táxis; podem cobrar valores abusivos - nada que não suceda em Lisboa aos turistas, e às vezes até a quem não o é...). Demorou cerca de meia hora. Não fomos imediatamente fazer o check-in. Quisemos explorar a cidade, levávamos apenas umas mochilas (pouco peso, portanto) e havíamos comprado os bilhetes para uma visita guiada ao parlamento húngaro -o que muitos que visitam a cidade desconhecem, que há que comprar os bilhetes antecipadamente pela internet- às 13h e pouco.


As vistas desde Buda a Peste (sim, eram duas cidades) são um espanto


  O parlamento húngaro é um verdadeiro encanto, quer exteriormente, quer no seu interior. A visita guiada está mais do que justificada, de resto porque é a única forma de podermos lá entrar. É o segundo maior parlamento do mundo, data do século XIX, foi construído no estilo barroco com influências neogóticas e é o edifício mais emblemático de Budapeste. Um conselho: se quiserem ter uma visão panorâmica do parlamento, saiam na estação de metro Batthyány tér (todavia, se quiserem visitar o parlamento, terão de sair na estação Kossuth tér). Ambas pertencem à linha M2 (a vermelha).


É tão sumptuoso


   No mesmo dia, ou seja, o primeiro (chegámos bastante cedo), aproveitámos para ver a Ponte das Cadeias, que está neste momento em obras, e passear na baixa comercial da cidade, conhecida como Váci Utca. Fizemos o percurso a pé desde o parlamento até esta zona. Pelo meio, visitámos o célebre memorial às margens do Danúbio, conhecido por Sapatos do Danúbio, onde jazem sapatos de metal homenageando as vítimas judias do Holocausto, gente que, aquando da ocupação da Hungria pela Alemanha, em 1944, já na fase final da II Guerra Mundial, foi executada e atirada ao rio, sendo que os seus sapatos ficaram na margem. 


Nalguns sapatos, vemos velas, flores e inclusive pequenos escritos


    Anoitecendo cedo e antes de nos recolhermos ao hotel, porque estávamos cansados, jantámos comida tradicional húngara e terminámos a desfrutar de um bom chocolate quente (vão agasalhados que a cidade é fria no Inverno!) numa cafetaria histórica, ali mesmo na zona comercial, chamada Gerbeaud.

Todas as fotos foram captadas por mim. Uso sob autorização.