Esquivo-me de comentar casos mediáticos e em segredo de justiça. Reformas legais, penais, nunca devem ser feitas a quente. O povo pede-as quando assiste a crimes hediondos, e da mesma forma que a lei penal prevê penas diferentes para crimes diferentes, também a sensibilidade popular muda conforme estejamos perante uma ou outra conduta criminosa. Há crimes particularmente dramáticos porque parece que colidem com a natureza humana. Se o criminoso foge sempre à actuação do homem médio, certos criminosos conseguem mesmo praticar actos que não parecem encontrar acolhimento entre o homem civilizado.
Em Portugal, somos civilizados fora de portas. Não inclui o trânsito. Em casa, somos dos piores criminosos. Agredimos e matamos. Não é de agora. É de sempre. Agora, começamos a tolerar menos essa nossa característica negra, o tal lado lunar a que alude Rui Veloso num tema, aquele lado sombrio que ninguém quer conhecer. No nosso caso, parece que a lei continua a ser insensível a esse contexto violento que durante décadas insistimos em negar. Nem todo o criminoso anda de capuz e de arma branca na mão. Há criminosos que se comportam normalmente em sociedade, e que no seio das suas famílias semeiam o terror. Sim, a lei prevê e pune a dita violência doméstica, mas puni-la-á como deveria? O que sinto é que há um claro desfasamento entre a sanção que a norma penal estatui e a consciência popular acerca da gravidade de determinados delitos, entre a justiça que as elites admitem e a justiça que o povo clama. Teimamos em considerar-nos brandos, pacatos, como se fosse uma bandeira para ostentar lá fora e, cá dentro, tapar a vergonha, empurrando o pó para debaixo do tapete. Orgulhamo-nos do terceiro lugar entre os mais pacíficos do mundo, com cenários de guerra em milhares de lares. São vítimas inocentes, e a muitas delas a justiça não chega. Quando chega, chega tarde.
Durante muito tempo, viu-se a pena como a mera retribuição do crime. Para tal contribuíram nomes como São Tomás de Aquino, ou Kant, séculos depois. De momento, encaramo-la como necessária no âmbito da prevenção geral e especial: socializar o agente e prevenir a prática de mais crimes, dissuadindo a comunidade com a ameaça da sanção. Em todo o caso, precisamos de a encarar de novo como justo castigo pela prática do crime. A liberdade acarreta responsabilidade, e somos livres para nos decidirmos pelo bem e pelo mal. Ao bem, advém um benefício qualquer; ao mal, o castigo. É este balanço entre liberdade e responsabilidade que nos mantém equilibrados, de outro modo voltaríamos ao estágio anterior ao actual, antes do contrato social. O castigo, entretanto, não deve produzir um mal maior ao praticado. Se o fizer, a justiça peca por excesso e comete ela mesmo uma injustiça.
Reforme-se a lei penal quando a poeira assentar. Façamo-lo, todavia. Não esperemos que outras tragédias surjam para nos escudarmos sempre no argumento de que não podemos alterar a lei com o coração, senão com a razão. Ao legislador compete perscrutar o povo, corresponder aos seus anseios e fazer com que a lei reflicta os seus valores morais e éticos.