Os sentimentos independentistas visíveis na Catalunha não desabrocharam espontaneamente. Há um passado impossível de ser negado e há causas fortes por detrás dos últimos acontecimentos. Olhar para a realidade catalã com um olhar de português, limitado à experiência lusitana, seria muito redutor.
Para se entender o que se passa no país vizinho, é necessário ter em consideração a realidade histórica. Espanha surgiu de uma união de reinos, onde se aglutinaram nacionalidades diferentes num único Estado. Cada um desses povos manteve a sua língua, neste caso o catalão, e tradições seculares de autonomia que nem o acumular dos séculos e da repressão conseguiu extinguir.
Comungando de um passado comum com o resto da península, também a região da actual Catalunha teve, após a romanização, invasões germânicas no seu território, seguidas dos árabes que conquistaram toda a Ibéria a partir de 711 (salvo a região das Astúrias). Já no século X, expulsos os árabes, é fundado o Condado de Barcelona que, numa política de casamentos (como costume da época), é unido ao Reino de Aragão em 1150. Estando unida à coroa aragonesa, em 1479, devido ao casamento em 1469 de Fernando II de Aragão e Isabel I de Castela, dá-se a unificação de Aragão com a coroa castelhana, levando, por último, em 1492, à união de todas as realidades ibéricas (salvo Portugal) na actual Espanha.
Contudo, a Catalunha jamais renunciou à sua história e às suas características próprias, tentando sublevar-se, de 1640 a 1650, contra o domínio castelhano, o que em muito contribuiu para o êxito da insurreição portuguesa de 1640, que culminaria na restauração da independência. As consequências dessa sublevação seriam pesadas, com perdas significativas de territórios para a França, incluindo o condado do Rossilhão e a actual Sardenha. Não nos esqueçamos do império mediterrâneo que a Catalunha dispunha à época.
Com a Guerra da Sucessão espanhola, e devido à má estratégia seguida pela Catalunha no conflito, viu-se, com o seu fim, incorporada definitivamente ao Reino de Espanha por Filipe V (de Anjou).
Já no século XX, a história da Catalunha tem se desdobrado em recuos e avanços na sua autonomia. Conseguiu obter um organismo administrativo que Primo de Rivera aboliria em 1923; com a II República Espanhola veria o seu estatuto de Comunidade Autónoma ser aprovado, mas, com o fim da Guerra Civil Espanhola e a subida ao poder do Generalíssimo Franco, toda a autonomia viria a ser retirada até ao fim da ditadura e do advento da Constituição democrática de 1978, que reconheceria, de novo, a autonomia da Catalunha, desta feita num Estado Democrático de Direito.
Como é facilmente constatável, há diferenças substanciais entre Castela e a Catalunha. Não podemos falar, analisando a realidade espanhola, de um Estado unitário do lado de lá da fronteira. Espanha é uma manta de retalhos institucionalizada e, pese embora os séculos de repressão, o sentimento de independência habita no espírito do povo catalão. A crise internacional que agudizou os problemas da frágil Espanha apenas acentuou o ódio e a desconfiança à política centralista de Madrid, falsamente maquilhada de autonomista.
Espera-se, para breve, uma consulta ao povo catalão na próxima legislatura, de forma a apurar-se o sim, ou o não, à independência da região. O processo será todo ele democrático e espero, numa perspectiva pessoal, que o governo espanhol respeite a decisão dos catalães. Espero, também, que pela primeira vez se abra um precedente que possa resolver a questão secular da Galiza, do País Basco, de Olivença (usurpada a Portugal) e de Ceuta e Melilla (usurpadas a Marrocos).
O artigo 1º, n. 2 da Carta das Nações das Nações Unidas fala do respeito do princípio da autodeterminação dos povos. Que a comunidade internacional não descure as suas obrigações no que ao reconhecimento possível do Estado catalão, independente, concerne.