30 de maio de 2012

Primeiro Round.


 A melhor estratégia não será a de encarar cada avaliação como um castigo. De outra forma não faria as cadeiras. Contudo, os anfiteatros novos provocam-me arrepios. O átrio circular, de paredes cobertas de pequenas pedras cristalinas em tons de castanho, madre-pérola e branco, tornam o espaço distante e frio. As vozes ecoam, cujo som projectado contra as paredes assume uivos estranhos.
 Ajudei uma aluna (colega e amiga) invisual a descer a escadaria que nos leva ao piso inferior. A sua perspicácia e intuição em muito suplantam as nossas capacidades. Reparou que eu estava ansioso. Ao perguntar-lhe como chegou a surpreendente conclusão, uma vez que consigo manter o timbre vocal sereno, disse-me que soube-o através do contacto das minhas mãos na pele do seu braço. Ela identifica a minha voz a uma distância extraordinária. Falando baixinho - e estando suficientemente longe de si - escuto-a a chamar por mim.

"Oláaaaaaaa Mark!!"


 Sentámo-nos de forma a deixar uma fila de intervalo, como sempre. Li o enunciado. Pensei. Voltei a ler. Pensei. E, pela primeira vez em muito tempo, senti-me a desfalecer perante o que me era exigido. A alínea b) está terrivelmente incompleta. Não tenho medo.
 Olhando para a S., vejo o quão mesquinho consigo ser. Ali estava ela, de portátil ligado, a fazer o exame calmamente. Dissera-me, há tempos, que temia voltar a reprovar de ano. Contra as regras estabelecidas, quebrei o protocolo e dirigi-lhe a palavra, dizendo-lhe que tinha a certeza de que tudo iria correr bem. Murmurei-o baixinho, mas aproximando-me dela ao ponto de os professores verem. Sorriu - e o seu sorriso é tão bonito - desejando-me igualmente boa sorte.
 A S. é uma vencedora.
 Deu-me ânimo e senti-me restabelecido. As palavras certas, no momento exacto, fazem toda a diferença.
 Concluído, entreguei e saí, esperando por ela no átrio para a levar até à sua mãe, que religiosamente a vai buscar todos os dias, esperando-a no bar.
 A minha tarde terminou com o Sol a desaparecer no horizonte.


27 de maio de 2012

Conversei com a Lua.


 Olhei para os meus braços e vi pequenos pontinhos salientes na pele. Sintoma dos efeitos da brisa fresca da tarde no meu corpo. A capa dos apontamentos levitava com o vento. As frases flutuavam, e pousavam, para de novo se levantarem a cada rajada súbita que se fazia sentir.
 A ténue luz solar adquirira um tom alaranjado, anunciando a chegada da noite. Recebi uma SMS.

 "Estudas? :p"

 Não, olho o céu tentando descobrir as primeiras estrelas que surgirão no firmamento. Nem uma. Talvez porque ainda haja demasiada luz; talvez porque não seja merecedor de as ver. Deveria existir uma norma legal que nos obrigasse a ter uma estrela só nossa. Nem exigiria uma constelação; bastar-me-ia o pontinho menos luminoso, a anos-luz do nosso sistema solar.
 No regresso vi a Lua. Finalmente. Surgiu disfarçadamente no céu ainda azul. Gosto de conversar com ela. Por mais que caminhe, olho o alto e vejo-a, brilhante, em minguante.
 E foi o meu início de noite.




  A mais distante é minha...

24 de maio de 2012

Um dia hei-de voar mais alto.


 O Sol não conseguia tocar-nos com os seus raios quentes, mas dificilmente se escondia de nós. Estávamos na parte mais baixa do pequeno átrio, sozinhos, e desatámos a falar sobre as nossas vidas, o que incluía, claro está, o bom e o mau. Um por um, a modo de confissão, lá começamos a enunciar o que de melhor e de pior já tinha acontecido. Quando chegou a minha vez, senti-me frustrado por a parte má da minha vida não ter a mesma substância que as homólogas. A parte boa também ficava aquém das outras partes boas, logo, limitei-me a escolher algo que tivesse sido realmente especial.
 Senti que não tinha problemas, no momento em que o Sol começou, por fim, a aproximar-se. Não foi o suficiente para me sentir um privilegiado, mas deu para perceber que os tons que me rodeiam não são os amarelos, vermelhos e laranjas que ignoro. Há azuis, verdes e muitos negros, admitindo que guardaram as partes mais tristes para si.
 Em música de fundo, escutava o ruído do heavy metal de um colega aborrecido. Provavelmente estaria a pensar na impertinência das dissertações sobre a essência das nossas vidas. Os headphones, de arco, comprimiam-lhe o cabelo meticulosamente espetado no ar, numas reminiscências dos inícios dos 2000. Sempre que o vejo, tenho a sensação de estar diante de um membro de uma banda adolescente qualquer que ficou perdido no tempo.
 Das nossas vidas - e dos respectivos conteúdos - passámos aos testes que ainda temos por receber. São alguns e determinantes para se saber o sistema de avaliação com que iremos para os exames.
 Uma ave não identificada cruzou os céus num breve momento em que ergui a cabeça. Invejei a sua liberdade. Um dia - um dia - hei-de voar mais alto.


22 de maio de 2012

Na tarde em que o vento não se fez sentir.


 Pedi um Magnum de amêndoas ao rapaz do café. Sorriu-me pelo facto de não ter troco à nota que lhe dei. Aguardei uns minutos e surgiu-me com o troco. Sorri, retribuindo-lhe a simpatia.
 Seria a minha pequena recompensa pelas aulas, assim com uma colega que todos os dias tira M&M's na máquina da faculdade. Quando me oferece, procuro as bolinhas verdes, num hábito que adquiri e que ela constatou rapidamente.
 Decidi que não comeria o gelado pelo caminho. Precisava de parar para pensar. Sentei-me no muro da porta de entrada da faculdade a saboreá-lo. As pernas ficaram suspensas, numa altura ainda considerável. Passaram por mim professores e alunos, incluindo o professor de D.UE que, ao atentar em mim, sorriu-me discretamente. Talvez porque o cenário não fosse assim tão recorrente. Talvez porque também queria sentar-se a comer um gelado, sem preocupações nem testes por corrigir. As obrigações provavelmente não o deixariam. É bom ser-se livre. O que pensariam os colegas, os professores catedráticos e jubilados se o vissem - sim, a ele - à entrada da faculdade a comer um gelado? Tomá-lo-iam por insano. Insanos são aqueles que perdem o brilho no olhar. Ele ainda o mantém.
 Estava um vento desagradável, mas o seu efeito não se fez sentir em mim. Tive minutos que pareceram horas, em que discorri pensamentos e vontades, mais das vezes inconciliáveis. Ao terminar o gelado, pensei em pular do alto do muro, mas temi magoar-me. O pulo sairia desastroso. Melhor seria não arriscar.
 Peguei na mala e saí em direcção ao metro.


20 de maio de 2012

Timor.


 Timor-Leste comemora os dez anos da sua independência. Historicamente, para sermos correctos, há dez anos assistiu-se a uma restauração da independência da antiga colónia portuguesa. Em 1975, aproveitando a onda de descolonizações que se fazia sentir em todo o decrépito império português, Timor proclamou unilateralmente a sua independência, sendo invadido, dias depois, pela Indonésia, que anexou o recente país ao seu território, reclamando-o como mais uma das suas províncias.
 Timor-Leste em nada estava relacionado com a Indonésia, dividindo com esta apenas o mesmo espaço geográfico, a mesma ilha, a ilha de Timor. A Indonésia foi colonizada pelos holandeses, que aí formaram a sua colónia vastíssima, as Índias Orientais Holandesas. Por seu turno, Timor-Leste manteve-se como território português, o que lhe preservou uma identidade própria, distinta, equiparável a outros antigos domínios portugueses. Timor, desde logo, tinha a sua língua própria, com influências da língua portuguesa, o tétum; tinha a sua religião, católica, inversamente à Indonésia, de larga maioria muçulmana. Todas estas características únicas demarcavam as diferenças: Timor era uma realidade distinta da Indonésia.
 Ignorando a situação frágil de uma pequena nação cobiçada por um vizinho ambicioso - e aproveitando o clima de Guerra Fria que se vivia pelo mundo - a comunidade internacional fechou os olhos à ocupação ilícita e a todos os títulos reprovável por parte da Indonésia. Houve uma condenação formal, da Assembleia-Geral das Nações Unidas, num pedido encabeçado por Portugal, mas, na prática, nada foi feito para que os indonésios se retirassem imediatamente do território timorense.

 Após décadas de repressão e de violência atrozes, a comunidade internacional foi olhando para a causa timorense. Organizou-se um referendo e, finalmente, o povo timorense escolheu o seu caminho, optando pela independência total e incondicional, o que se veio a verificar em Maio de 2002.
 O mais recente país do mundo (até perder o lugar para o Sudão do Sul) tinha - como tem - vários desafios por enfrentar. Reconheceu oficialmente a língua portuguesa como sua língua oficial, ao lado do tétum, num gesto de reconhecimento e amizade incondicionais para com Portugal. A língua portuguesa, fortemente reprimida e praticamente extinta nas camadas mais jovens da população timorense durante a ocupação indonésia, foi reabilitada, sendo este reconhecimento como um agradecimento implícito a Portugal. A língua indonésia foi ensinada aos jovens, todavia, os guerrilheiros da FRETILIN e os mais velhos recusaram-se a usá-la, mantendo o português como a língua da guerrilha, da resistência. Hoje em dia, professores brasileiros e portugueses têm como missão o ensino da língua aos mais jovens. O número de falantes aumenta gradualmente, embora os jovens educados na língua indonésia resistam em aprender o português. A título de curiosidade, no caso de dúvidas na interpretação de alguma lei, entre o tétum e o português, prima o português.

 Não deixo, por fim, de salientar a responsabilidade de Portugal em cada segundo de ocupação indonésia em Timor. Abandonado pela sua metrópole, e longe desta, Timor foi ocupado devido à negligência portuguesa, num território em que tinha a obrigação de defender contra qualquer invasão externa. Assim como nos antigos domínios africanos - cujas guerras civis subsequentes às independências são da total responsabilidade portuguesa - também em Timor podemos imputar todo o sofrimento à má administração de Portugal.
 Os anos que se aproximam são de um enorme desafio. Timor-Leste é um país pobre, carecendo de infraestruturas a todos os níveis, incluindo o mais elementar. Porém, que ninguém duvide da força do seu povo. A força não se mede no tamanho, no número de habitantes ou nos apoios que se consegue: a força habita na coragem, na determinação, na vontade de se ser soberano.
 Timor acreditou; Timor venceu.


18 de maio de 2012

Naquele momento era eu.


 Subi umas escadas cobertas de pedra de calçada. Aquela pedra branca, de arestas disformes e quadrados mal desenhados. Estavam húmidos, o que me levou a deduzir que os regadores automáticos estiveram ligados até pouco tempo atrás. Coloquei o dossier, o estojo e os códigos em cima de um banco de madeira e colhi uma flor dos arbustos circundantes. Senti-me distante do mundo, da realidade. No momento em que todos estariam preocupados com o teste, que se aproximava a cada passagem dos minutos, eu continuava isolado de todas as influências que pudessem ter em mim.

Meia Hora

 Em baixo, perto da porta de entrada, três colegas fumavam. À minha volta, num carro estacionado, um rapaz encavalitava-se sobre a sua namorada, excitadamente, levando uma chamada de atenção da mesma, talvez notando o estado em que ele se encontrava. Saiu do carro dela e entrou no seu, com ar de inconformado. Um outro rapaz aproximou-se. Espera. Parou. Sentou-se no banco perpendicular ao meu e exalou um suspiro de cansaço, agravado pelo calor imenso que se fazia sentir.

10 minutos


 Não quis tirar o telemóvel para fora. Não gosto de relógios de pulso. Perguntei as horas a um rapaz que passava na mesma altura em que me encaminhava para o interior da faculdade.

"É meio-dia!"

 Entrei no anfiteatro, disposto a fazer o teste numa folha normal, simples, branca com linhas. Era só mesmo para ser diferente. Não gosto daquelas com o nome da faculdade no cabeçalho. Porém, provavelmente não mo aceitariam e daria um enorme desgosto à mãe.
 Deixei a vontade lá fora, perto da relva molhada, e comecei a ler o enunciado.


16 de maio de 2012

"You look tired", they say.


 Gostava de me sentir leve e solto. Essa frescura, mormente matinal, acompanhava-me pelo resto do dia, se bem iniciada com um copo de sumo de laranja natural. Era tudo quanto me bastava para ser feliz. Bom, para ser sincero, uns scones simples também iam muito bem. Quando queria - e para variar - colocava leite bem frio na tigela amarela do bonequinho sorridente, com Estrelitas.
 Findo o café da manhã, passava pelo espelho, ajeitava o cabelo ao som de uma qualquer música ligeira que ainda tocava no pc e saía para as aulas. Tinha tempo para mim, tinha tempo para saborear cada minuto do dia. Existia.
 O ritmo universitário alterou o panorama algo idílico em que vivia. Há dias em que tenho olheiras. O café da manhã não sabe ao mesmo e as Estrelitas já reclamaram comigo, questionando-me se já encontrei outra espécie de céu. Confinadas à despensa, esperam pelo fim do seu prazo de validade.

 (Afinal, as estrelas também têm "validade")

 O que me distingue de uma boa maioria é o facto de me recusar a ser escravo do que escolhi, mesmo tendo a noção de que caminho no sentido oposto ao que sempre defendi peremptoriamente. Chamo-lhe de distracção lúcida. A ideia de que enquanto estiver consciente posso parar, leva-me a tentar manter o ritmo.
 Não devemos ser escravos dos nossos estudos, dos nossos empregos, da nossa vida. A última finalidade é a de sermos felizes, já que cá estamos. Tenho uma concepção muito própria de viver e não abdico dela. Mesmo correndo riscos por ousar pensar numa sociedade automatizada.
 As Estrelitas concordam comigo.


13 de maio de 2012

O rapaz da bola de futebol.


 Senti a camisa estranhamente justa ao corpo. Apesar do tecido leve, senti-me coberto por mantas pesadas, quentes, prestes a desfalecer. Nem uma brisa, por mínima que fosse, corria debaixo da árvore de troncos finos enfeitados de pequenas flores, brancas, que se soltavam a todo o tempo, transformando o chão em pedaços de céu. Seria a minha hipótese de tocar as nuvens.

 Não quis o livro. A boca tinha sede. Num pequeno bebedouro, metalizado, a água corria quente. Deixando-a correr, à medida em que comprimia o botão enferrujado, senti-a a arrefecer, bebendo, então, golfadas com sofreguidão.

 Ao longe, não muito distante, um rapaz jogava à bola, sozinho. Dava pequenos pontapés, impulsionando o objecto esférico contra uma parede que, voltando na direcção oposta, permitia mais um e outro chute. Detendo-a no solo, aproveitava e fazia pequenos dribles, atirando-a ao ar, cabeceando-a, para de novo a colocar no chão. Ao ver-me, murmurou-me com o olhar um qualquer convite para jogar consigo. O seu corpo revelava trabalho. As suas pernas, força. As suas mãos, determinação. O seu olhar, solidão.
 Então, na tarde em que ele reparou em mim e eu reparei em si, na mesma tarde em que poderia ter lhe dirigido uma palavra, não o fiz. Porque altos muros se erguem sobre cada um. Porque o silêncio sobra quando nada há a dizer.

 E tudo quanto existia era uma bola de futebol, num campo de terra onde enterrei o sonho.


11 de maio de 2012

O meu refúgio.


 Procurei amparo nas altas paredes verticais do anfiteatro, escondendo o rosto do Sol. Os seus raios, contudo, acompanhando o decorrer o dia, procuravam por mim através das janelas, fechadas, que tornaram o espaço quente. Abri uma ao alto, deixando correr o ar sobre a minha pele. Lá fora, ouvi gritos exaltados, num som que se repercutia na minha mente, como um estertor de guerra, com batalhas, em que os soldados seriam tantos em número quanto as pequenas partículas de matéria e ácaros que desvendava sob os feixes de luz que inundavam o auditório.

 Em pouco tempo, começaram a entrar, preenchendo os lugares dianteiros, deixando os cimeiros vazios. A proporção, olhando para todo o espaço, seria de mil para um, encontrando estranhas semelhanças com um barco que reúne, na proa ou na popa, todos os tripulantes. Não deixava de ser uma espécie de salvação o que todos queriam. Mais uma disciplina feita.

 Nas bancadas, de madeira envelhecida, agora aclarada pela luz que tornava o baço em reluzente, códigos a azul salpicados por estrelas amarelas, enfileirados, tornavam o inferno de calor numa concretização falseada de céu. Dei por mim a perguntar por que motivo as estrelas do firmamento caíram e vieram parar justamente ao velho auditório salazarista. Talvez porque a vã esperança tenha terminado e, num ditame profético, auspiciem o fim do fundamento de toda aquela tarde passada ali.

 Nas escadas laterais, onde passava, subindo e descendo, uma professora assistente, estive eu, deambulando de resumos nas mãos, ansiando pelo refúgio que não encontrei. Agora, a caneta falhara. O Sol não mais voltaria àquele lugar, naquele dia. Encaminhou-se para longe, onde as horas são mais leves e a atmosfera menos densa.


8 de maio de 2012

A chuva em mim.


 As diferentes perspectivas que pode ter o mesmo quadro traz-me à memória de que cada um vê aquilo que lhe é nítido aos sentidos. E, mudando-se os tempos, muda a vontade de estar do lado de lá ou de cá da mesma cena, irrepetidamente vivida, como um disco que teima em passar a mesma música. Antes fizera sentido.
 Pela janela, quando a madrugada deu lugar à luz pálida da manhã, vi a chuva enquanto o reflexo da luz do candeeiro tornava as gotículas em pequenos prismas reluzentes de cores que variavam entre o rosa e o amarelo. Quis fechar o trabalho no computador, já em modo stand-by, e sair à rua. Agir como em criança, quando erguia a cabeça e deixava que a água molhasse toda a roupa, para desespero da mãe que não conseguia domar a minha impaciência. Enquanto desfiava lembranças pelo filtro ilusório das recordações que teimam em estar presentes, decidi que iria sair de casa mais cedo do que o previsto.

 As poças, enlameadas, pediam para que as pisasse, num gesto de rebeldia que não me pertence. A tempo, consegui afastar-me de um carro que, impetuosamente, passou com as suas rodas pela berma que acumulava a chuva pela falta de um bueiro. A intensidade que abrandara, recomeçara de novo, levando a que procurasse abrigo por baixo de um toldo vermelho, roto, que pouco demorou para que começasse a trespassar a água, desbotando a cor da tinta dos apontamentos que levava na mão. Algumas palavras ficaram imperceptíveis, numa estranha coincidência com o teor da matéria a decorar. Também ela desaparece para dar lugar a detalhes mais significativos.
 Arrependi-me de não esperar pela mãe. E o metro que está tão longe... Quis ter a liberdade de soltar os apontamentos à rajada de vento suão que se fez sentir no momento. A consciência não mo permitiu. Se alguém me resgatasse com um guarda-chuva, a única premissa seria a de não ser eu a levá-lo.

 Conformado com a ideia de que não poderia esperar mais, saí em direcção à estação, no momento em que o temporal deu lugar, de novo, à chuva fina.


5 de maio de 2012

Gosto de ti.


 Um amigo confidenciou-me que estava mal, sem força anímica para enfrentar os problemas que tem. A princípio, ouvindo-o falar comigo sobre assuntos tão pessoais, senti-me bem por estar a ser o seu confidente, num misto de honra inexplicável. Talvez por não falarmos há imenso tempo e por nunca termos sido especialmente próximos, quis corresponder às suas expectativas. E isso passava, também, por dizer as palavras certas, não vacilando na hora de demonstrar firmeza.
 Ouvi o que tinha para me dizer e vi a tristeza espelhada nos seus olhos. Sempre soube que um olhar, por vezes, revela bem mais do que umas frases soltas, sem sentido e sem qualquer expressividade.
 Quis abraçá-lo, mas temi; quis dizer algo que o confortasse; sei que se soubéssemos aconselhar alguém, provavelmente não cometeríamos erros. Fiquei, por isso, inerte, escutando os seus desabafos, interrogando-me sobre o motivo de ter me escolhido. Logo ele, que sempre esteve rodeado de pessoas, o mesmo que, agora, se sentiu só.


"Gosto de ti!"


 Disse-o e acreditei no que dissera. O seu rosto assumiu um semblante sério; os seus olhos lacrimejaram um pouco. Poderia ter soado a um lugar comum e não foi premeditado. Disse o que sentia.
 Torna-se raro dizer que gostamos de alguém. Torna-se raro alguém dizer que gosta de nós.
 As alegrias são de todos; só a tristeza não tem dono.


3 de maio de 2012

IV Aniversário.


 Pensei em se deveria sublinhar esta data. Fará sentido comemorar aniversários de blogue? Em todo o caso, e uma vez que o costume foi ditando essa prática, não deixo de fazer uma referência ao dia.
 Inaugurei este espaço a três de Maio de dois mil e oito. O meu primeiro blogue, e único, até à data. A princípio, limitava-me a escrever para mim. Os textos, nos velhos diários, cederam perante a inércia e um sentimento típico de querer inovar. Inovar no mesmo sentido de quando mudamos uma mobília de lugar, de quando alteramos um percurso no caminho, entrando por uma nova rua nunca antes percorrida. O sentimento foi igual ao que existe em algo novo. Era tudo o que bastava.
 Aos poucos - e poucos - fui tendo conhecimento de outros espaços, interagindo e trocando ideias com mais utilizadores. Fui dando, progressivamente, importância ao blogue. Passou a ser uma continuidade do dia-a-dia, não entrando em ruptura com o quotidiano; pelo contrário, preenchendo-o.

 Por vezes, muito raramente, arrependo-me de o ter criado. Talvez porque enfrente (o blogue) as minhas obrigações de frente, exigindo atenção e não admitindo ser preterido por livros de novecentas páginas, centenas de folhas A4 e manuais sobre todos e mais alguns assuntos. Afirma-se na minha vida e, subsistindo, vai continuando a resistir por entre os dias que desfio incessantemente.
 Há quatro anos não lhe dei qualquer importância. Criei-o, certamente, entre uma das milhentas horas vagas que tinha na altura. Regalias de uma época em que julgava que estudava demasiado!... Volvido todo este tempo, chego à conclusão de que o processo de afirmação foi mais do que meritório. Se cresceu em importância aos meus olhos, não terei sido eu apenas o responsável. A interactividade, a capacidade de abstracção e o carisma das pessoas com quem me relacionei são, também, os responsáveis por estar aqui hoje.
 Resta-me agradecer o facto de estarem aqui comigo.


 Obrigado!

M.



1 de maio de 2012

Monografia.


 Podendo, faltei à aula. Não deixa de ser válida a explicação de que necessitar de pesquisar matérias para um trabalho é mais do que suficiente para se faltar a uma aula.
 Apesar de conhecer os corredores daquela biblioteca, nunca consegui sentir-me diminuto no meio das estantes de livros, ordenados meticulosamente por letras, números e temas. Para mim, uma verdadeira biblioteca será aquela que, imponentemente, se ergue sobre os nossos corpos esmagados pelo peso da sabedoria e do trabalho de homens e mulheres que tornam, a cada dia, o nosso trabalho mais fácil. A verdadeira biblioteca terá livros de lombadas desbotadas, páginas amarelas de um uso indiscriminado que reflecte a passagem do tempo. Terá um aroma à imprensa antiga, cujas folhas com carimbadas a roxo, na parte lateral ou nos cantos, dão uma importância significativa à obra. Terá livros com um português antigo, onde se grafa "indelèvelmente" com acento grave na terceira sílaba.
 Pego num livro, antigo, sobre as províncias ultramarinas, e leio o discurso do Presidente do Conselho aquando da invasão pela União Indiana do Estado da Índia Português. O discurso, poeirento, coaduna-se com a textura envelhecida das páginas e pelo horror dos rostos das figuras do regime, expostas em fotografias de ocasião, entre ovações e aplausos que suportam, na bajulação, o medo. Rapidamente arrumo o livro. Quis dirigir-me ao fundo da biblioteca, local onde, em tempos, cheguei a imaginar que, pesquisando algum livro, poderia representar uma cena trivial que frequentemente se vê em filmes. Alguém chegaria, tocar-me-ia por trás e eu, assustando-me, deixaria cair o livro ao chão. A sensação de que tudo poderia ser uma cena de sétima arte fascina-me, mesmo sabendo que a vida não tem roteiro. Ainda não foi hoje.
 Pego nos livros, tiro fotocópias - não sem antes solicitar a ajuda de alguém - e tento ritmar o batimento cardíaco, estranhamente acelerado, no compasso das folhas que saem rapidamente pela abertura da fotocopiadora industrial.
 As folhas estavam quentes, tão quentes como o chá que queria beber na altura. Não quinze minutos mais tarde, não dez minutos mais cedo: seria na hora ou nunca. Não vi ninguém conhecido.
 Coloquei as monografias no repositor e saí, deixando para trás o ruído das máquinas.