Subscrever newsletters tem um lado bom. O mau, já conhecemos: a nossa caixa de e-mails a abarrotar; o bom, é este: ter conhecimento de eventos, de festivais. Assim foi. Soube que o Cinema São Jorge estava a exibir a 2ª mostra de cinema brasileiro. Já o soube a dias do final, mas a tempo de ver os filmes que me interessavam. Anteontem, domingo, vi estes dois: Aos teus olhos e O Beijo no Asfalto. Em rigor, era para ter visto um no sábado e outro no domingo; acontece que adiaram o de sábado, Aos teus olhos, para domingo às 18h, que se juntou ao O Beijo no Asfalto, às 21h. Foi uma maratona, maravilhosa maratona, que não me é inédita, nem em festivais (aconteceu no Queer, no ano passado), nem em cinema comercial (já vi dois também, seguidos).
Começando pelo Aos teus olhos, é um filme dramático, que nos conta a história de um professor de natação que, de um momento para o outro, é acusado pela mãe de um dos seus alunos, um miúdo menor, pequenito, de o ter beijado inapropriadamente. A mãe, ao ter conhecimento do sucedido através do próprio filho, divulga o caso nas redes sociais, primeiro no grupo da escola de natação, que depois, com as partilhas, que os brasileiros chamam compartilhamentos, chega a várias outras pessoas.
O realizador nunca nos conta o que verdadeiramente aconteceu. Em momento algum. Somos levados, cada um de nós, por indícios que nos são deixados, a acreditar numa ou noutra versão, e também somos confrontados com os nossos preconceitos. Chegamos a saber que o beijo terá sido no rosto da criança. Será que ficamos igualmente preocupados se uma professora beijar um aluno no rosto? E sendo um homem? Porque é que a nossa tolerância muda? Não serão ambos professores? É aqui que entra a homofobia, que por diversas vezes surge no filme. Aliás, a confusão entre pedofilia e homofobia é uma constante. O pai do menino teme que chamem o filho de viadinho. O professor é vítima de insultos homofóbicos. A directora da escola de natação, que primeiramente apoia o seu funcionário, também o questiona sobre a sua orientação sexual, sabendo que não o pode fazer, porque as leis laborais, também no Brasil, protegem os trabalhadores quanto a questões que se prendam à sua intimidade.
É evidente que há indícios que nos levam a pôr em causa a sinceridade de Rubens. Por que motivo leva o menino para o vestiário, a única parte da escola sem sistema de videovigilância? Por que motivo guardou a sunga do menino no cacifo, não a devolvendo logo? Alegou que os meninos perdem pertences diariamente, e que lhes compete guardá-los. Será correcto um professor guardar pertences dos alunos no seu cacifo? São perguntas retóricas. Algumas terão resposta. E contundente.
Rubens parece só encontrar apoio real na namorada. Uma namorada que, a meu ver, também serve aqui apenas para nos confundir. Uma namorada de 19 anos. Ele tem 33. Ou seja, e concluindo o raciocínio e aonde os quero levar a chegar, o realizador, propositadamente, quis-nos deixar cheio de interrogações. Explorou, ainda, olhares cúmplices entre a criança e o professor. Olhares que nunca chegamos a desvendar se de apoio e carinho ou se de algo terrível. Há, ainda, um aluno mais velho, que surge sempre com diálogos indecifráveis com Rubens. Parece que o rapaz é gay e que Rubens o terá ajudado em algo que, tal como com o pretenso crime, nunca fica claro.
O filme, como se vê, trata de questões actualíssimas, como o julgamento sumário nas redes sociais, verdadeiros barris de pólvora, o preconceito, a desinformação. Não o enquadraria no selo LGBT, porque lhe falta essência e vontade para isso. Gostei das interpretações, dos planos, da simplicidade das actuações, que torna os filmes verosímeis. Quando um actor dá o que tem, isso sobressai. Daniel Oliveira deu.
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O Beijo no Asfalto foi o segundo do dia (da noite?). É, na verdade, uma peca de teatro televisionada, porque assim nasceu, em 1960, já tendo conhecido três adaptações para o cinema. Esta última, especialíssima, porque vemos os cenários, que são de teatro, a aparecer no filme. É quase como uma peça dentro de um filme. Conta com nomes de peso, como Stênio Garcia, que se sai muitíssimo bem, e Fernanda Montenegro. Sucintamente, um homem vai ao penhores para deixar uma jóia e, no regresso a casa, assiste a um atropelamento, indo ao encontro do acidentado para o socorrer. A vítima, a exalar os últimos suspiros, pede-lhe um beijo. E ele dá. Claro que tudo viria a suscitar uma enorme polémica, desde logo porque o seu sogro está presente e assiste a tudo. Sogro esse interpretado por Stênio Garcia.
O beijo, na púdica e fechada sociedade brasileira, gerou uma onda enorme de revolta e homofobia. Nisso, ambas as longas comungam. Nisso e no clima de suspeição: no Aos teus olhos, ficamos na dúvida se o professor era um predador sexual; neste, Arandir é, ele mesmo, alvo de suspeições durante todo o filme / peça.
O preto e branco, o filme foi rodado a preto e branco, representa uma vantagem. Como se houvesse uma enorme solidão entre aquelas personagens. Uma sensação de vazio, de abandono.
A ideia de colocarem os actores numa mesa redonda, ensaiando, sendo que, depois, os ensaios se misturam com as gravações, foi bem conseguida. Os ensaios servem quase como uma introdução / explicação àquilo que vemos, um acrescento, que serve para tornar aquele argumento mais real, mais palpável. Às tantas, o preto e branco leva-nos a crer estar num sonho.
Notei que o filme conjuga duas posturas antagónicas: desde logo, a pureza de Arandir, um homem bom, que atende a um último pedido de um estranho, motivado apenas pelo desejo de fazer o bem; do outro, Aprígio e Amado Ribeiro, o sogro e o jornalista de índole ruim. Um, motivado por uma angústia com a qual não consegue lidar (ficarão surpresos); o outro, incorporando o que de pior tem o jornalismo, querendo, seja por que meios for, atingir vendas astronómicas, nem que para isso se valha da difamação. Aqui, de certo modo, também encontro semelhanças com o Aos teus olhos: através da imprensa, nos anos 60, ou das redes sociais, presentemente, deparamo-nos com meios de informação que podem ser potencialmente lesivos.
O Beijo no Asfalto é ousado, e acredito que o tenha sido muito para a época. De sentimentos reprimidos, pelo menos em duas personagens, a uma pretensa homossexualidade, o encenador / realizador apresenta-nos a morte, no início e no fim; a morte que nos faz espiar velhos desejos, e que descobre outros. À medida em que as cenas vão aumentando em intensidade, a nossa alienação também: não sabemos onde estamos, onde eles estão, e estamos longe de imaginar o final imprevisível.
Um festival que soube a pouco, se bem que, em Setembro, o São Jorge traz sempre novidades.