30 de setembro de 2019

Golpe de Sol.


   «As pessoas são más. Mesmo quando bem intencionadas, acabam por fazer o mal.»



    Golpe de Sol é como um daqueles bolos de pastelaria de aspecto apetitoso, mas que, quando provado, desilude no sabor. O filme tem tido uma ampla publicidade. É pena que a propaganda não corresponda com a qualidade. A par de ser demasiado extenso, a narrativa repete-se. Ao fim e ao cabo, só os vemos da piscina para o quarto, "e vamos para a praia ou andar a cavalo", numa sucessão de frases feitas e diálogos totalmente fúteis. 




    Vicente Alves do Ó quis criar ali um argumento aliciante, com um chalé branco, requintado e asséptico como pano de fundo. Quatro jovens que se vêem confrontados com um passado mal encerrado. O problema é que se perdeu na própria claustrofobia da narrativa, a menos que a intenção tenha sido a de criar um filme tão vazio como aquelas personagens, que são um reflexo da adolescência tardia com efeitos ainda aos 40 anos, idade de todas as decisões.

   Esteticamente, e para quem gosta, o filme vale pelos corpos desnudados e atléticos. É como uma brisa de final de Verão. Passa por nós, refresca e deixa pouco. David, o omnipresente David, que nunca chegamos a saber quem é, talvez viesse dar um outro fôlego à história, que o final é tão decepcionante quanto o início e o desenvolvimento. A preocupação e a superficialidade daquelas personagens não combinam. Eles esforçam-se por parecer preocupados, mas eu não acreditei muito neles. O incêndio como metáfora da tragédia que se abateria naquela casa também não funcionou. Um filme totalmente esquecível.

29 de setembro de 2019

Sócrates.


   «Você trouxe minha mãe pra cá? Ela não vai ficar aqui!»



   O maior mérito de Sócrates é o de ter permitido que jovens e crianças em risco pudessem ter uma oportunidade de estudar e actuar, talvez se salvando assim das ruas e da criminalidade. No demais, é um filme que cai em clichés contornáveis. Não tem nada que o torne num filme memorável. É só uma estória razoável-medíocre, meio melodramática, que certamente retratará o dia a dia de muitos jovens brasileiros homossexuais que, por reveses da vida, caem nas malhas da delinquência, da miséria prolongada e da prostituição. Percebe-se o baixo orçamento e a necessidade que o realizador teve de repetir sequências, cedendo a erros que tornam algumas cenas francamente previsíveis.




   O cinema brasileiro actual tem uma forte tendência a explorar a pobreza e a exclusão social, que actuam como força centrípeta, instrumentalizando todos os elementos da narrativa para dar a conhecer as más condições de vida do povo. O Brasil vive dias muito politizados. Em todos os filmes brasileiros a que tenho assistido, a pobreza entra assim, de rompante, pelo ecrã, como se não pudéssemos ver o Brasil senão pelos olhos da fome. Os argumentos morrem diante de um panorama tão fatalista, que nos leva a afastar os sentidos da estória e a direccioná-los para a situação político-social.

  De todas as cenas, que não são nada de por aí além, destacaria a última, que é aquela em que encontro maior simbolismo, porque a descoberta sexual não tem verdadeiramente interesse nesta narrativa. Além de ter sido explorada superficialmente, foi-o de forma descuidada. Voltando à cena final, aquele mergulho representou para Sócrates uma vida nova, sem a mãe, claro, mas uma limpeza de tudo o que vivera de tão dramático. Foi o despojar-se das cinzas da mãe e do elo que ela estabelecia com a sua vida anterior. A água purifica, e somos levados a acreditar que Sócrates não se deixará levar pelo alcoolismo, pela criminalidade. O realizador, deliberadamente ou não, permite-nos antever alguma esperança num futuro mais risonho para o rapaz.

   Li que Sócrates será a escolha do Brasil para os Oscars de 2020. Tendo como argumento um jovem negro, gay e pobre, reúne todos os requisitos para fazer um brilharete. Hollywood gosta de estórias assim.


28 de setembro de 2019

El silencio es un cuerpo que cae.


   «Cuando vos naciste, una parte de Jaime murió para siempre.»



    O dia de ontem, quanto ao Queer, encerrou com um documentário muito intimista e pessoal. Agustina Comedi é uma jovem que desvenda mais de cem horas de filmes caseiros gravados pelo seu pai, de si, da sua mãe e amigos, em viagens, confraternizações e reuniões familiares. Jaime aparece em raras ocasiões.

    Assim como muitos naquele e neste tempo, Jaime levava uma vida dupla. Antes de conhecer a sua mulher, Monona, aos 40 anos, teve vários relacionamentos, entre os quais um com Néstor, seu amigo de longa data, falecido de HIV/SIDA em 1991, apenas um dia antes de Freddie Mercury. Agustina, ao longo do documentário, vai fazendo de voz off. Sabemos que foi uma das duas únicas vezes que viu o pai a chorar. A outra foi quando a sua avó morreu.

    Néstor era o elo de ligação entre o Jaime dos anos 70 e 80, que viajava com os amigos gays pela Europa e pelos EUA e se hospedava em hóteis que constavam de roteiros gay, e o Jaime de finais de 80 e dos 90, casado, pai e chefe de família. Néstor era omnipresente. Na fotografia de casamento de Jaime e Monona, surge lá, a um canto.

   Não se pense que este documentário contém apenas uma visão familiar de Jaime, Monona e Agustina, ou que se detém apenas na vida dupla de Jaime. Pelo contrário. Há todo um contexto político que não deve ser menosprezado. Em El silencio es un cuerpo que cae, Agustina faz múltiplas entrevistas a pessoas que conviveram com o seu pai nas décadas de 70 e 80 e que com ele conheceram os meandros da repressão à comunidade LGBT, sobretudo na décadas de 80, quando a atenção dada aos presos políticos se virou sobre «los putos» (pejorativo de gay), sob a forma de internamentos compulsivos, tortura e tratamento degradantes. Jaime militara em grupos de extrema-esquerda que se opunham à ditadura argentina.




    Jaime ocultava tanto o seu verdadeiro eu quando se ocultava nas filmagens. Nunca supôs que, um dia, o seu olhar pelo mundo, protegido, viraria um documentário. Logo nas primeiras gravações, que coincidem com as cenas iniciais, Jaime focou David de Michelangelo nos contornos da escultura, aproximando a objectiva das nádegas, dos traços viris. Explorar a obra-prima do mestre italiano era como um modo secreto, subtil, de se permitir apreciar o homoerotismo. Tempos houve em que um psicólogo lhe dissera, a Jaime, que ele não era totalmente homossexual, apenas parcialmente, e que a heterossexualidade que existia em si haveria de aniquilar o dito lado gay.

   Agustina faz-nos um périplo pela Argentina da perseguição e do preconceito, inclusivamente na área da saúde mental. Chamando ao pai de Jaime, de vez em quando lá o trata por mi papá. É que Jaime na verdade era o pai e outro homem que Agustina só mais tarde veio a conhecer. Um homem que se relacionou com homens, que amara a outras pessoas que não a sua mãe, e do mesmo sexo. Foi, no entanto, a menina dos seus olhos. Basta vermos como Jaime a filmava, como lhe dedicava grande parte do seu filme. A sua vinda ao mundo, como bem evidencia a frase que escolhi para figurar no início desta crítica, ditou o fim de um Jaime e fez nascer outro. Porém, como o passado nos persegue, a dupla vida de Jaime acabaria por se tornar pública. Trágica coincidência, Jaime acabou por ser filmado no dia em que morreu, poucas horas antes, após uma queda violenta de cavalo. O seu segredo não morreria consigo. 

    Diz-se que não devemos voltar aos lugares em que fomos felizes. Jaime, desta vez na companhia da mulher e da filha, voltou aos mesmos lugares onde anos antes estivera com os amigos. E soube ser feliz de novo, porque também o era com a família que escolhera para si. 

   El silencio es un cuerpo que cae é um fantástico documentário e uma excelente surpresa neste Queer 23. 

27 de setembro de 2019

O Som de um Alívio Rápido ( curta de 1982) / Cem Dias Antes do Comando (1990).


   «Não vês que eles estão a dormir, filho da p***?»


   Pier Paolo Pasolini inaugurou uma nova forma de fazer cinema, em que a narrativa perdia importância diante da liberdade da câmara. Importava mais o que as paisagens e os corpos tinham a dar ao espectador, em toda uma estética distinta. Essa terá sido a fórmula de Wieland Speck - que esteve ontem presente na exibição da sua curta, pela primeira vez em Portugal, e de Hussein Erkenov, realizador de Cem Dias Antes do Comando.

   Como Speck referiu, a curta resulta do medo que o atormentava e do clima de suspeição da sociedade alemã de então diante do fenómeno da homossexualidade. Não tem diálogos. O protagonista, residente em Berlim, conhece um jovem num bar. À noite, os seus sonhos são povoados pelo crime e pela perseguição. Era, no fundo, a projecção de todo o medo, do de Speck, abertamente gay, nos sonhos.


Cena de Das Geräusch Rascher Erlösung (1982)


  Cem Dias Antes do Comando causa-nos alguma interrogação quando nos damos conta da estranheza de um realizador soviético ter conseguido produzir um filme de cunho homoerótico. Quando vemos a longa, percebemos o porquê. Erkenov recorreu à iconografia gay para abordar a violência no exército de uma já decadente União Soviética. Como se espera, foi extraordinariamente difícil conseguir que o filme entrasse no circuito de distribuição. A exibição no Festival de Berlim ajudou.


Cena de Sto Dnei do Prizaka (1990)


    Percebe-se um claro diálogo metafísico com a Natureza, que funciona como alegoria aqui, visto que não há uma narrativa lógica. Os treinos duros, sob uma neblina gélida, a que aqueles cadetes estão sujeitos - numa alusão a Tarkovski - contrastam com os sonhos molhados e as visões deíficas, antevendo-se uma qualquer redenção numa dimensão paralela àquela. Erkenov, ao focar os rostos dos jovens, pretendeu extrair dos seus olhares a ira e a submissão controlada à disciplina.

   Os tons esbatidos dos campos funcionam como antítese dos corpos rosáceos, que transpiram sexualidade e desejo. A percepção de fatalismo sobressai da fixidez da objectiva sobre os corpos e do comportamento errático dos jovens, como se o tempo parasse e aquelas personagens pertencessem a um mundo etéreo. A sinfonia de Bach é um requiem da tragédia, da morte, do abandono, da solidão e do desejo reprimido. Na cena em que todos adormecem numa casa em ruínas, aquela é a ruína dos cadetes, destroçados mentalmente, e da própria URSS.

26 de setembro de 2019

Irving Park.


   « - I don't understand this kind of slave / master relationship. »



   « - It's about the same as your relationship with dad. »




   Muito confuso, muito hardcore para mim. Em boa verdade, nem sei o que me terá levado a optar por um documentário sobre sexagenários sado-masoquistas para o serão de quarta-feira do Queer. Vendo o programa do festival, talvez porque não houvesse nada melhor.

   É-nos dado a conhecer o dia a dia de um grupo de gays que partilham casa em Chicago e têm entre si uma relação em que uns se sujeitam a ser mestres e outros escravos. E nós vamo-los acompanhando nas suas tarefas domésticas e na intimidade, à medida em que vão procurando explicar em que é que assenta aquela família, se é que lhe possamos chamar assim, quais as regras e limites.




    Cada um faz com o seu corpo o que quer. É um princípio elementar. A partir do momento em que as sevícias e humilhações são consentidas, em que todos participam livremente, sem qualquer tipo de coacção, resta-nos respeitar. E eu respeito. Respeitar, porém, não se confunde com entender. Eu até posso conceber que haja quem goste de levar uma palmadas de quando em vez, mas andar-se de coleira pela casa é algo que me provoca alguma consternação, bem assim como tatuar-se slave numa parte do corpo. Retirar-se prazer da dor, que chega a provocar lesões na pele, como tão bem vemos, não me parece saudável, normal, equilibrado. Há ali, na minha opinião, alguma perversão que pedia acompanhamento médico. Ao menos, parecem ser felizes à sua maneira. E não é isso que importa?

   Fora isso, é profundamente entediante. Torna-se aborrecido. Duas horas de molas no pénis, chicoteadas, cenas na cozinha e na máquina de lavar não se justificam. Nem sequer pareceram espontâneos no sexo. Aquilo pareceu ser mau e bem pouco prazeroso. Dei Muito Mau no boletim de voto para Melhor Documentário.

And Then We Danced.


   «Não há sexualidade na dança georgiana. Isto não é a lambada.»



  And Then We Danced é um filme novo sobre preconceitos antigos. Ambientado na Geórgia, conta-nos a história de um rapaz, bailarino, o protagonista, que se vê confrontado com a sua orientação sexual em colisão com os valores da sociedade georgiana. Ser-se homossexual, por lá, é ser-se alvo de repressão social, em âmbito familiar, profissional e escolar. Quando descoberto, a um homossexual não resta mais do que ser confinado algures, à força. Conseguindo escapar, tem as ruas de Tbilisi para se prostituir - e vemo-lo suceder a um aluno da companhia, cujo fatalismo paira sobre a cabeça de Merab.

  Esta longa-metragem sueca e georgiana não se ocupa de maneira diferente daquilo que já conhecemos: a discriminação, os desamores, a moça que fica pendurada, apaixonada que está pelo amigo gay. O que torna este filme especial e atractivo é toda aquela mística que a dança e a música tradicionais, os costumes e a religião ortodoxa lhe conferem. Nesse sentido, a fotografia e os planos conseguem extrair das cenas aquilo que os actores e a atmosfera envolvente, quer ao nível da paisagem, quer ao nível dos cenários e do guarda-roupa, têm para dar.




    A sociedade georgiana é tão tradicional quanto a russa e outras que dividem o mesmo âmbito geográfico. Pede-se a um bailarino que seja másculo, que os seus passos reflictam a virilidade dos povos do leste. Ora, Merab não se enquadrava nesse arquétipo pré-definido. Movimentava-se elegantemente, embora com firmeza. Como o irmão lhe disse, o seu lugar não era naquela sociedade ainda tão pouco disponível e preparada para aceitar que nem sempre homens gostam de homens e mulheres de mulheres. E já que me lembrei do irmão de Merab, que parece um rufia, um pinga-amores, um ingrato, o argumento troca-nos as voltas quando o sujeita a defendê-lo e à sua honra, e o último diálogo trocado por ambos é de um carinho e compreensão que não julgaríamos possível.

   A última dança de Merab é um grito de liberdade. Merab choca o professor e o outro manda-chuva da companhia de bailado georgiana com a sua dança provocativa. O momento em que a arte enfrenta o moralismo, o preconceito. Já não lhe importava se conseguiria ou não ser o escolhido - havia apenas uma vaga. A sua dor física, no pé que sangrava, aliava-se à dor que sentia pelo abandono de Irakli. Serviram-lhe aqueles minutos para exorcizar o que o atormentava e para se provar que conseguia superar-se.

   Merab é o rosto da pureza, da candura. O seu amor por Irakli é tão bonito quanto inocente, e ele transporta para toda a narrativa essa aura de beleza e espontaneidade, nos pequenos toques, nos pequenos gestos, nos sussurros, nos olhares de soslaio e nos sorrisos, nos diálogos afectuosos com a avó, mas também nas brincadeiras com os amigos, quando corre para apanhar o transporte público ou quando dança eroticamente para o seu novo colega.

25 de setembro de 2019

One Taxi Ride.


   «A veces pienso que si no hubiera subido a ese taxi, no habría sucedido esto, pero en México tenemos un dicho que dice: "Si no lo hubiera hecho no existe".»


   One Taxi Ride é um documentário sobre dor, vergonha, culpabilização e medo que anda a agitar os ecrãs de cinema do México. Erick, aquele rapaz de visual andrógino, tem uma excelente família, e sempre o soube. Embora tenha passado por um terrível incidente que lhe deixou marcas físicas (infecção por HIV) e psicológicas, ter uma mãe, e sobretudo irmãos, que querem saber e se preocupam, é uma dádiva da qual nem todos podem desfrutar.

  Erick, pela sua instabilidade emocional, por parecer volátil nos relacionamentos amorosos, leva-nos, numa primeira análise, a alguma apreensão, mas quando atentamos no seu percurso difícil - ausência de uma figura paterna, abuso sexual seguido de um diagnóstico de seropositividade - apercebemo-nos de que poucos conseguiriam ter um percurso rectilíneo e coerente após tamanhas provações.




   O tom intimista e familiar do documentário conferiu-lhe credibilidade. Aquelas pessoas despojaram-se de capas. Choraram quando acharam que deviam chorar, sem que a lágrima tenha sido forçada. Não senti que tenha havido "encenação". Erick e a família perceberam que o seu testemunho certamente que ajudaria milhares de mexicanos na mesma situação. Quando alguém é vítima de um abuso sexual, ou seja lá que abuso for, a culpa jamais é da vítima. Para um homem, o caso de Erick, para mais homossexual, é duplamente difícil encarar a as autoridades, a família, a sociedade, porque ao medo juntam-se a vergonha e o preconceito. "Como é que um homem pode ser violado?", diz um irmão de Erick a determinado momento. Uma pergunta que assolará a muitos, que não concebem que um homem nem sempre é forte, corajoso, destemido.

     Numa cultura latina profundamente machista, não há dados sobre quantos homens são violados e sobrevivem no México. São estatísticas que não importam, realidades que se chutam para debaixo do tapete. Mais uma razão que justifica que um documentário tão pessoal quanto este seja exibido em vários festivais ao redor do mundo, desde logo em "casa", no festival de Guadalajara, onde fez sucesso.

24 de setembro de 2019

Greta.


   «Pode pensar em outra, mas tem que me chamar de Greta Garbo.»



    Armando Praça traz-nos mais do que um filme sobre uma transexual moribunda e um gay idoso. Traz-nos um retrato da solidão, da recta final da vida que não se quer encarar, da discriminação em contexto de internamento hospitalar, de uma relação que nasce inesperadamente, da necessidade, da carência, sem qualquer base de sustentação que a torne possível, somente o amor que vem a brotar da parte de um velho homem. Não digo que Jean (Démick Lopes) não tivesse começado a sentir algum afecto por Pedro (Marco Nanini), mas pesaria ali, sobretudo, a oportunidade de ter algum amparo e cuidados. E dúvidas houvesse, o último olhar de Pedro, sobre Jean e sobre nós, no fundo, é o de alguém abatido pela perda de um amor de uma vida, Daniela (Denise Weinberg), pela sua condição e pelo desgosto da separação do homem que imprevisivelmente começara a amar.

   Uma das críticas que se podem apontar reside na escolha de Praça por uma actriz dita cisgénero, ou que raio isso é, para encarnar Daniela, que no hospital não aceitaram admitir senão com o seu verdadeiro nome, masculino. Denise foi muitíssimo bem escolhida para o papel, conjugando o que de melhor têm os géneros feminino e masculino. Outra opção seria por uma transexual. Provavelmente Praça não viu em que é que uma transexual daria realismo à personagem. A meu ver, não mudou muito. E já que falei naquele hospital, local bastante insalubre, diga-se, Praça juntou, num espaço tão pouco estilizado, o preconceito e a libertinagem: Daniela não conseguiu uma vaga na enfermaria feminina, não foi admitida com o nome que se adequa à sua identidade de género, feminina; ao mesmo tempo, médicos, auxiliares e doentes dedicavam-se a práticas sexuais ali mesmo, em gabinetes médicos, salas de arrumação ou inclusive sob os lençóis encardidos dos leitos.

   A decadência é um aspecto central na narrativa, quer em Pedro, quer em Daniela, e até, de certo modo, em Jean. A decadência moral e a física. Para Jean, ser descoberto como criminoso, e não o digo pelas autoridades - por Pedro -, era como fazer resvalar aquele deus que sabia representar para o velho amante em algo desprezível.
   Pedro e Daniela estão a definhar, profundamente descrentes de tudo. A respiração é ofegante, os passos arrastam-se, os olhares perdem-se, e ambos parecem estar a aceitar muitíssimo bem, embora com profunda dor física e psicológica, o facto. Pedro é a apatia em pessoa. Parece que nunca sai daquele registo contido, indiferente à sua sorte. Quando fala de Greta Garbo, é a pulsão sexual que fala através do seu alter-ego. Garbo simbolizará a juventude que se foi e o glamour que também há muito abandonou Daniele.




  Praça optou por planos fechados, incisivos. Estáticos. Condizentes com os espaços e com os sentimentos das personagens. A acção é sempre passada, salvo algumas excepções, na claustrofobia dos cómodos de um apartamento minúsculo ou entre as paredes carcomidas do hospital. Apenas no final vislumbramos um horizonte, quando novas perspectivas se avizinham para Pedro e Jean. Pedro oscilava, afinal, sabia tão bem como nós, espectadores, que aquele relacionamento tinha tudo para não dar certo. Nascera disfuncional, e provavelmente terá morrido disfuncional. Nunca lhe chegamos a conhecer um fim.

  Marco Nanini, que tem uma prestação bastante boa (procuro ser mais comedido nos elogios), apostou num papel que lhe traria finalmente a consagração numa constelação de tantas estrelas da representação que o Brasil tem. Por lá, os bons actores estão porta sim, porta sim. Não temeu expor-se e ao seu corpo em nu integral, quiçá porque esteja no zénite de maturidade enquanto homem e artista, o que não o impediu de avançar nesse sentido. Competirá aos espectadores ajuizar. A meu ver, e compreendendo a intenção de se retratar um corpo flácido, velho, com as suas vergonhas, não teria sido mal pensado ter-se poupado um pouco. Se o corpo é exibido despudoradamente, o prazer não o é tanto. Pedro é tão contido a sofrer como a vir-se.

  Greta, sob pena de ficar guardado numa gaveta como "cinema para gays", é um bom filme, que narra a vida na terceira idade, a sexualidade na terceira idade, o amor na terceira idade, o ser-se minoria na terceira idade, com menos maquilhagem do que aquela Daniela punha em si quando actuava. E ainda bem.

23 de setembro de 2019

The Spark: the origins of pride.


   «Posso até ser preso, mas só por polícias bonitos.»



   The Spark: the origins of pride é daqueles documentários que todos devem ver, pessoas LGBT e não, porque só fala de sobrevivência e amor, desde os duros, porém estimulantes, anos 60, de motins contra a repressão policial, até à actualidade. Fala-se de direitos também, contudo, na perspectiva de os explicar segundo um qualquer princípio que faça sentido. Num exemplo, o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo fará sentido para acautelar direitos do casal. Não estamos perante um manifesto LGBT inconsequente, não. Pelo contrário. São testemunhos muito reais, de pessoas que viveram acontecimentos que hoje lemos algures em artigos de internet. Não sabemos o que é estar a dançar com alguém até surgir, no bar, um determinado sinal luminoso a alertar para a iminência de uma rusga policial. Não sabemos o que é atentar em cada prédio de um bairro (no documentário, Castro, em Los Angeles) e cada um deles ter albergado um amigo que morreu de SIDA ou de fome, por se encontrar demasiado fraco para sair e comprar comida. Também não sabemos o que é estar à espera que um ponteiro de relógio marque a hora certa para se dar início a um momento histórico na luta por direitos civis. O bom deste documentário é permitir-nos não só conhecer a história da afirmação LGBT, mas ainda pela boca dos seus principais intervenientes, não necessariamente gays; ouvimos o testemunho de um ministro francês que fazia parte do governo aquando da descriminalização da homossexualidade no país dos gauleses.

   A França e os EUA foram o epicentro de revoltas que viriam a alterar o paradigma no modo como se encarava a homossexualidade, num fenómeno que se alastrou a todo o mundo ocidental, começando logo pelos Países Baixos. E há pormenores caricatos, como o das lésbicas que fundam uma irmandade de apoio aos gays vítimas da SIDA, doando sangue na impossibilidade de estes o fazerem, ou o do boicote a uma marca de sumo de laranja que era publicitada nos media por uma reacionária da extrema-direita cristã. Em tempos tão conturbados, aquela gente uniu-se em torno de uma causa, uma militância, o que no presente deu origem a movimentos que em parte perderam todo o sentido. Ainda referir o do preservativo num obelisco de Paris, que prontamente foi retirado pelas autoridades. Pormenores ditos de bastidores, que enriquecem a luta de homens e mulheres que se investiram de uma coragem que provavelmente nos faltaria.




   Muitos daqueles activistas que participaram na revolta de Stonewall e de outros idênticos em Paris não se revêem nesta aparente normalização da luta. Como em certo trecho se ouve, «não lutámos para agora sermos papás e mamãs». Uma comunidade que tanto bracejou pelo direito à diferença, vê-se cada vez mais diluída na dita normalidade, a heteronormatividade, que foi invadindo o quotidiano LGBT, como se procurassem copiar modelos.

   Dos documentários mais interessantes, pelo modo como foi elaborado. É dinâmico, coerente e desinteressado, não agressivo, não ressentido contra a maioria heterossexual. Versa sobre a história, sobre o como foi, e o como foi foi aguerrido, combativo, penoso.
   A luta, dizem, não está ganha, quando mais de setenta países criminalizam a homossexualidade. Onze deles com a pena de morte.

22 de setembro de 2019

Self-Portrait in 23 Rounds: a Chapter in David Wojnarowicz's Life, 1989-91.


   «Quando contraí este vírus, percebi que contraíra uma sociedade doente também».



   Ao longo de cinco horas de gravação em 1989, David Wojnarowicz (1954-1992), pintor, escritor e activista norte-americano, vai relatando a François Pain e Marion Scemama, que esteve presente na Cinemateca, as angústias e a sua realidade enquanto homossexual, seropositivo e artista, numa América que condenava os doentes de SIDA à morte, pelo desconhecimento, pela intolerância, pelo preconceito.

  David fazia parte da geração que transitou da infância para a adolescência quando se deu a revolução cultural do ocidente, iniciando-se sexualmente no momento em que séculos e séculos de repressão tombavam. Jovem adulto no apogeu da epidemia de SIDA, com todo aquele cortejo de horrores, acabaria por ser atingido, bem como o seu companheiro. Entretanto, não quis ser o típico portador de HIV que morre no silêncio, e por isso tido por corajoso, não; quis barafustar, gritar, proclamar ao mundo que via amigos a morrer por falta de apoios estatais no acesso a medicação que poderia prolongar as suas vidas. Embora tenha escrito dez livros na sua curta vida, tendo desenvolvido projectos em diversas outras áreas, foi este activismo político que o impulsionou na fase final da vida. Tal tomada de posição, e tão-só clamava por uma política de saúde pública justa, levou-o a ser perseguido pelas autoridades religiosas e políticas. Uma obra sua, um crucifixo coberto de formigas da Smithsonian Institution, teve de ser retirada, sob pena de corte nas verbas. No Texas, um político afirmava que a solução para se terminar com a SIDA era "atirar sobre os gays". Nas manifestações LGBT, riam-se e zombavam, dizendo nenhum deles estaria lá no ano seguinte, morrer que iam da enfermidade. Vendo-se doente e num contexto de perseguição e intolerância, David escrevia manifestos lidos cheio de cólera. Foi a luta de uma curta vida.


David Wojnarowicz, fotografado por Peter Hujar, também ele falecido em decorrência do HIV


   Pela primeira vez, David, que tinha tanta dificuldade em falar sobre a sua sexualidade, a relatou, e de uma forma crua e dolorosa, não obstante, pareceu-me, espontânea. Os engates em que esteve, as primeiras experiência sexuais com homens mais velhos, as viagens pela costa sul-sudoeste dos EUA, entregando-se a sexo louco em meio daquela paisagem árida e quase desértica, no fundo, toda aquela espiral de promiscuidade em que entrou, sem protecção, claro, como era apanágio naquele tempo e como se veio a reflectir na sua arte, quer na pintura, quer nos escritos e na intervenção pública, que já foi mencionada. 

   A possibilidade de este documentário poder ser visto após a sua morte deixava-o flipado. Ele sabia que ia morrer, ainda que em alguns diálogos quisesse transparecer a esperança num medicamento novo, em tratamentos que lhe prolongassem a vida.


Cartaz do documentário no Festival de Berlim

   A morte do companheiro foi um duro golpe, uma experiência traumática. Que as pessoas se tornassem "transportadoras profissionais de caixões" era algo que o incomodava. Era exactamente isso o que ocorria naqueles anos de grande mortandade entre a comunidade gay da cena nova-iorquina. Quando Peter morreu, o companheiro, quis que este fosse fotografado assim que morreu - e nós vemos as fotos no documentário -, cadavérico, corroído por um vírus isolado apenas pouco anos antes. Um retrato post-mortem chocante, perturbador, real. A morte era aquilo, e não a sucessão de cerimónias fúnebres e de actos piadosos.

  "Self-Portrait in 23 Rounds" é um legado à sua maneira. Um labour of love, onde David Wojnarowicz contracena consigo mesmo, visto que não há qualquer intervenção de terceiros ao longo dos 78 minutos, desfiando lembranças à medida em que nós vamos conhecendo a seu vastíssimo arquivo. As estórias de um homem que sabe estar a viver um momento único e impactante na luta contra poderes instituídos que viam no HIV não só uma punição, um castigo, como também uma arma contra os homossexuais. Aqui, não há apelos à protecção, e ainda menos moralizações.  Não há arrependimentos, remorso. Há reconciliação com o presente, uma dose de coragem e aceitação dos factos.

    É um excelente documentário, simples, quase todo gravado em torno de uma desarrumada mesa de cozinha. Um itinerário pessoal, emotivo, pungente, sobre uma época que felizmente deixámos lá para trás, num dos períodos mais negros da história da ciência, da medicina e da sociologia. Há todo um contexto político-social-cultural que impulsiona o documentário e lhe dá razão de existir. Resta acrescentar que foi exibido também no Festival de Berlim e no Whitney Museum, na exposição David Wojnarowicz - History Keeps me Awoke at Night.

21 de setembro de 2019

Queer Lisboa 23.


   Começou ontem o grande festival que anima as noites (e os dias) ali para os lados da Avenida da Liberdade desde 1997, numa das semanas de Setembro. Falo-vos do Queer, festival internacional de cinema queer, que já vai na sua 23º edição. Este ano, uma vez mais, o Cinema São Jorge e a Cinemateca vão acolher dezenas de sessões, entre longas novas e velhas, documentários e curtas-metragens. Eu adquiri 12 bilhetes, batendo todos os meus recordes (o maior tinha sido o do ano passado, com, salvo erro, 7 sessões). A primeira delas será já hoje, na Cinemateca: Self-Portrait in 23 Rounds: a Chapter in David Wojnarowicz's Life 1989 - 1991, um documentário sobre a vida do artista norte-americano David Wojnarowicz  (1954 - 1992), falecido precocemente de HIV/SIDA. Contará com a presença do realizador.




   Ontem, inserida também no âmbito do Queer 23, fui a uma exposição na Galeria Foco, na Rua da Alegria, junto à praça. Uma exposição interessante, num espaço exíguo, porém acolhedor, de seu nome Sem Receio de Criar o Caos, que poderá ser vista entre os dias 20 e 28 deste mês, acompanhando a duração do festival. Nela, a obra plástica de alguns jovens criadores representa e homenageia Harmony Korine na sua faceta de realizador, pelo seu contributo para as questões de género e sexualidade. Quem não se recorda de Kids, de 1995, que retrata precisamente a inconsequência de uma juventude urbana, frívola e hedónica, de comportamentos regados a álcool, drogas e sexo sem protecção, profundamente efémera, para quem o amanhã é longe demais.


Sem título I, Rui Palma, 2019. Jacto de tinta sobre papel fotográfico


   Deixo-vos algumas fotos. Terão mais nas minhas redes sociais. Bom início (chuvoso) de Outono!

19 de setembro de 2019

Os debates das legislativas.


   Antes de mais, devo dizer que não assisti a todos os debates. Apenas a alguns. O acto eleitoral do próximo dia 6 de Outubro, no qual os portugueses irão eleger os seus deputados, não se reveste, no meu entender, de tanto interesse. Já sabemos de antemão quem irá ganhar, e não vale a pena vir-se dizer que quem decide são os eleitores, como se as sondagens e até o senso comum não valessem de nada. Claro que as eleições não se fazem nas televisões e nas rádios, mas, a menos que ocorresse uma catástrofe até lá, parece-me pouco provável que o PS não ganhe. Vai ganhar. As projecções indicam-no, e também indicam que a direita terá o pior resultado de sempre, com intenções de voto abaixo dos 30 %. Nem no PREC, em 1975, se registaram números assim. O que não se sabe é se António Costa logrará a maioria absoluta sozinho ou com o PAN, que parece que também vai crescer, acompanhando, aliás, a tendência europeia na proliferação destes movimentos ambientalistas, ou eventualmente com o apoio das restantes forças de esquerda.

   De todos os debates, o que me pareceu mais crispado foi o de Assunção Cristas, presidente do CDS-PP, com André Silva, porta-voz do PAN. Tenho visto os debates em diferido, e este foi precisamente o último que vi. Assunção Cristas sabe que é expectável que o CDS diminua a representatividade e que o PAN a aumente. O eleitorado de ambos não é o mesmo, ou seja, quem vota no CDS não ponderará votar no PAN, e vice-versa. O que a jurista quis foi pôr a descoberto as fragilidades dos ambientalistas, que são muitas, contornando um crescimento daquele partido em deputados na Assembleia da República. André Silva, venho-o dizendo, faz mal o trabalho de casa. Vê-se que se sente à vontade em temas ambientalistas, porque, em tudo o que fuja às bandeiras programáticas do PAN, não só não apresenta números, as contas feitas, como se atrapalha, gagueja, hesita, e Cristas conseguiu atacá-lo justamente no seu calcanhar de Aquiles. Duvido que André Silva tenha conseguido contornar a imagem que passou para o eleitorado, de partido inflexível, com tiques autoritários, que quer impor o modo de vida e de estar dos seus membros e simpatizantes a todos. Para o PAN, a liberdade individual pouco importa. Escudando-se nas alterações climáticas, pretende impor a alimentação vegan aos cidadãos, incluindo a crianças e jovens, que, como tão bem sabemos, precisam de uma alimentação equilibrada, e uma alimentação equilibrada exige proteína animal. É uma agenda da esquerda, depois de anos da agenda LGBT. O lobby ambientalista é outro dos que teremos de enfrentar pelos próximos anos, porque eles vieram para ficar.

    Assunção Cristas parece-me das líderes que mais se tem afastado do PS. Não é que acredite em si quando diz que não vai aumentar impostos ou que se preocupa muito com as famílias, os idosos, os mais desfavorecidos. O CDS jamais irá enfrentar o seu eleitorado, composto por empresários, grandes proprietários do norte do país. De igual modo, não pode maquilhar, no seu currículo, algumas das reformas do anterior governo em que participou, e que nem sempre foram vistas como benéficas para as pessoas comuns, para a classe média. Assim mesmo, sabe bem qual é o seu eleitorado, o de centro-direita, de uma classe média ligeiramente mais conservadora. Disputa essa área com o PS, ao centro, e com o PSD, ao centro-direita. O que acontece hoje que não acontecia no passado é que se prevê uma fuga do eleitorado de centro-direita para outros partidos. Lembro-me por ora do Aliança, de Santana Lopes. As pessoas estão cansadas do PSD / CDS. Têm presente, na memória, os anos difíceis de 2011 a 2015. Má sorte para estes partidos, que tiveram de governar numa conjuntura de crise internacional e de falhanço socialista anterior, durante o consulado de Sócrates. Ficaram irremediavelmente colados a uma página de austeridade a que ninguém quer regressar. 

   O debate entre Costa e Rio era o mais aguardado. Costa e Rio representam o dito centrão, e as semelhanças entre eles são mais e mais profundas do que as diferenças. Este debate, mais do que ajudar a decidir o sentido de voto num ou noutro, porque as pessoas vão julgando os políticos ao longo do tempo e não em duas horas, serviria para deixar patente quais as soluções, distintas, que um e outro propõem para os problemas do país. Era Rio quem tinha de correr atrás do prejuízo, passo a expressão. Fê-lo? Não. Esteve melhor do que tem estado, seguramente que se superou, mas acabou por vir confirmar o que todos já sabíamos: a sua tendência é a de alinhar com o governo nos assuntos decisivos. Honra lhe seja feita: um homem que está à frente do principal partido da oposição e que sabe convergir, quando todos esperariam que divergisse, e profundamente, coloca os interesses do país acima dos do seu partido e dos seus, que presumo que sejam continuar à frente do PSD, mantendo-se fiel àquilo em que acredita.

   Costa, claro, com a vantagem do seu lado, tem procurado adoptar uma postura mais descontraída, simpática, sorridente, e ainda não o consegui ver desarmado. No debate com Jerónimo de Sousa e Catarina Martins, e sobretudo no último, encontrámos uma extrema-esquerda bastante mais combativa e desconfiada daquilo que será o PS dos próximos quatro anos. Terem apoiado o governo foi uma faca de dois gumes: o eleitorado da extrema-esquerda desconfia dos socialistas. Os ódios são antigos. Poderá haver algum desagrado pelo apoio comunista e bloquista a esta solução governativa, e a maioria dos portugueses contentes com as políticas seguidas pelo governo irá votar PS, esquecendo-se de que este PS teve de negociar para poder governar. Sem ter de negociar, vendo-se com maioria, será um PS muitíssimo mais imprevisível. O diálogo é sempre preferível a quaisquer maiorias absolutas.

   A direita vem falhando rotundamente. A ideia mais repetida por Rio e por Cristas é a de que houve o maior aumento de impostos de sempre, e houve, mas não é isso que paira entre o eleitorado. Vive-se num clima de confiança e de folga tributária, uma vez que Costa foi sábio em diminuir aqueles impostos cujas variações afectam mais as pessoas: o IRS e o IVA. Depois, claro, aumentou noutros, nomeadamente nos indirectos, como o combustível, e sempre com aquele escudo fantástico das alterações climáticas e da perseguição ao uso do carro próprio. A ausência de qualquer crise económica europeia e internacional foi a cereja no topo do bolo. Eis, mui resumidamente, os quatro anos de governo socialista. Ah, já me esquecia: os passes sociais foram a cobertura de chocolate do bolo. As eleições vencem-se nos grandes centros urbanos. Enquanto político, Costa ganhou e a direita perdeu, porque foi incapaz, quatro anos depois, de fazer o eleitorado acreditar que estamos pior, que o país está pior. Incapacidade sua ou efectivamente o país não está pior? Houve pouquíssimo investimento público, quase nenhum, menos do que nos anos de Pedro Passos Coelho. O Serviço Nacional de Saúde, que há dias assinalou o seu quadragésimo aniversário, está cheio de problemas, com quebras no fornecimento de medicamentos, falta de profissionais de saúde, embora o balanço de quarenta anos seja francamente positivo. Em alguns indicadores macroeconómicos, estamos com números iguais àqueles deixados por Passos Coelho.

  Independentemente dos resultados que saírem do escrutínio de Outubro, não é saudável que uma democracia esteja praticamente toda voltada à esquerda. Portugal ruma em sentido oposto ao da maioria dos países europeus. Se por lá fora se vive uma deriva à extrema-direita, aqui arriscamo-nos a uma à extrema-esquerda, com tudo o que isso implica, nomeadamente perseguições pessoais e ideológicas a quem se define de direita, o que já vem sucedendo. É isso que temo. Um enorme desequilíbrio de poder e influência, porque, forme governo quem formar, as linhas orientadoras serão relativamente as mesmas, para cumprir com os compromissos assumidos em Bruxelas. Espera-se um abrandamento progressivo da economia, e daí é que virão as grandes novidades.

18 de setembro de 2019

MOTELX (review).


   Dado por terminado o MOTELX, festival internacional de cinema de terror de Lisboa, que completou a sua 13ª edição, resta-me fazer um balanço. Foi o primeiro MOTELX que encarei como tal, como festival, tendo ido a OITO sessões, duas a mais frente às seis iniciais de que vos dei conta na primeira publicação sobre o certame. E foram estas, pela seguinte ordem (poderão clicar em cada hiperligação para ler as respectivas críticas a cada um dos filmes):






The Hole in the Ground (sessão adquirida posteriormente);

- Get In;

Plan 9 From Outer Space (sessão gratuita);

The Wind


   Pude ainda assistir a três curtas-metragens, uma nacional e duas internacionais. Foram elas, por ordem: Don't Feed These Animals, The Haunted Swordsman  e, por fim, A Little Taste.




   Sobre a organização do MOTELX, creio que tenham estado bem. Houve mérito na procura por criar um ambiente dinâmico, de terror, condizente com o festival. Andava por lá um figurante a fazer de Michael Myers, o célebre serial-killer ficcional. Além disso, foram atenciosos com os geladinhos gratuitos para os espectadores. Do que não gostei: do preço dos bilhetes, que aumentou em mais de 50 % face ao ano passado. Achei excessivo. E vá lá que os comprei com desconto, quer adquirindo o pack, quer utilizando o desconto da Yorn - sim, que eu pago os bilhetes do meu bolso. Não sou como uns e outros que pedem acreditações para não pagar, e depois, claro, têm de mostrar trabalho. Podiam também evitar estimular o consumo de bebidas alcoólicas. Bebidas gratuitas num recinto de cinema pequeno, e quem conhece o São Jorge sabe que aquilo não é por aí além, torna o espaço claustrofóbico, e evitar-se-ia que se passeassem uns quase indigentes que só lá estavam pela bebida e não pelos filmes. Não se admite que filmes cobiçadíssimos só tivessem uma sessão (refiro-me ao Midsommar, claro). Eu compreendo que o filme esteja prestes a estrear nos cinemas comerciais e que tenha havido constrangimentos por isso, mas, ainda assim, exigia-se um esforço no sentido de se disponibilizar uma segunda sessão. Se não houve esse dito esforço, fica o recado. Por último, não cumpriram com os horários divulgados no jornal oficial e nos folhetos informativos. Os atrasos das sessões chegaram aos 10 minutos. Se abrissem as portas antes, contorná-los-iam e às longas filas.




    O somatório destas falhas, vá, não me leva a pôr um ponto final no MOTELX. Gosto de terror e seguramente que só não irei à edição do ano que vem se não puder. O apoio que dão à produção nacional, não a excluindo, pelo contrário, e o cariz verdadeiramente internacional das escolhas, com filmes de vários países, torna-o num festival no mínimo interessante.


17 de setembro de 2019

Get In e The Wind.


    São as duas últimas críticas a filmes do MOTELX, antes de uma final publicação em jeito de balanço. Devo dizer que as críticas aos filmes não seguiram sempre a ordem em que os vi. Críticas houve que julguei merecerem uma publicação autónoma. São caso disso The Golden Glove e Plan 9 From Outer Space.

   Get In (não confundir com Get Out, um filme de terror do ano passado, que detestei) é uma produção francesa. Do que mais tenho gostado nesta edição do MOTELX é que os filmes têm todo um conteúdo subjacente, o que é excelente. O protagonista é negro, está casado com uma mulher branca. Oliver Abbou, o director, soube pô-lo em situações do quotidiano que demonstram o racismo encapotado, em forma de paternalismo, sobre os negros que moram em França e inclusive aquele que ocorre dentro da própria comunidade negra (numa das cenas, o protagonista, que é professor, adverte um aluno também negro, que o confronta, chamando-lhe "Oreo", bolacha que é preta por fora e branca por dentro; noutra cena, quando convidado a sair pelo funcionário público, o segurança, também negro, diz-lhe: "acalma-te, irmão"). A par dos problemas raciais, Paul vive em meio de crises de virilidade. Em parcas palavras, é um homem apático, que alguns considerariam "frouxo", o que contrasta sobremodo com a nossa representação do homem negro, forte, impenetrável, sexualmente insaciável. Houve, ainda, uma inversão dos papéis: os antagonistas são brancos, jovens, fisicamente atractivos.




   O argumento gira em torno de uma casa, ocupada à revelia dos donos, precisamente os protagonistas, mas está longe de ser o que lhe subjaz. As questões que são trazidas, como referi num parágrafo anterior, têm outra densidade. Saliento a referência cultural ao porco, o animal, que é usado em máscaras pelos antagonistas. O porco é tido por um animal degradante, rasteiro, sujo, podre, justamente a associação que fazemos com aqueles sujeitos, que, em grupo, agem com uma enorme violência. O tema da violência em grupo é, assim, também abordado. 

  A determinado momento, há um volte-face. Os antagonistas primários passam quase a alvo da nossa comiseração, ou não será assim? Quanto a mim, vi ali justiça a ser feita, com um tanto de exagero. Ninguém esperaria aquela desenlace. 

   Das crises conjugais às falsas amizades, Get In é mais denso do que parece, e foi uma boa surpresa naquele sábado de festival. Defini-lo-ia como um bom filme de terror psicológico.


   No que concerne a The Wind, esta longa é ambientada no século XIX, nas planícies do sul-sudoeste dos EUA, conjugando elementos dos westerns com algum do folclore americano, bem assim como a fé cristã com a demonologia. A fotografia adensa a sua beleza natural, a daquelas planícies, e ajuda a criar a atmosfera de suspense e terror. Um silêncio perpassa o filme, só quebrado pelos diálogos, curtos, concisos, e pelo ruído do vento, que agita o horizonte.
   O filme trata o fenómeno do sobrenatural com contenção de fantasia. Só por aí, caiu de imediato nas minhas boas graças.

  Reparei em claras inspirações no clássico de Brian de Palma, de 1976, Carrie, designadamente quando a protagonista, Lizzie, surge à porta, ensanguentada, com os seus longos cabelos lisos sobrepostos à túnica branca. Lizzie é atormentada por uma depressão pós-parto pela morte do bebé, o que vai ficando claríssimo à medida em que a narrativa se desenrola. Paranóia ou possessão demoníaca? O que se passará naquela casa, ou, melhor dizendo, naquele monte isolado em que mora com o seu marido e um casal recém-chegado?




   O século XIX foi particularmente conturbado para os norte-americanos. Passariam por uma guerra civil, inclusive. Até hoje, o porte de armas é uma garantia constitucional por lá. Numa cena, o marido de Lizzie, antes de se ausentar, pediu-lhe que, se visse um demónio, disparasse. O americano médio, lá está, que julga poder enfrentar tudo e todos com a sua arma. É só uma curiosidade.

   Acima de tudo, vemos uma mulher que vai enlouquecendo, pela solidão, pelo desgosto, pela sua mente impressionável. E nós vamo-la acompanhando nas suas tarefas diárias, tendo-se apenas a si por companhia. Uma solidão que se adequa àquele interior do estado do Novo México. Bem rodado, sombrio, é um bom filme de terror.

16 de setembro de 2019

Plan 9 From Outer Space.


   Este é outro dos filmes que merece uma crítica autónoma. Considerado pela crítica especializada como o pior filme de sempre, tornou-se, ao longo dos seus sessenta anos, um filme de culto, e não apenas do terror, mas da sétima arte no geral.

   Em jeito de começo, a organização do MOTELX esteve bem ao incluir este clássico entre as suas sessões. Plan 9 From Outer Space, do mítico Ed Wood, surgiu no último ano da década de 50, em 1959, há precisos 60 anos, como um filme de terror. Dois anos antes, a URSS lançara o primeiro satélite artificial para o espaço, o Sputnik 1, inaugurando a corrida espacial com os EUA. Este filme provavelmente reflecte esse efeito, nas artes e na mente fantasiosa das pessoas, de um choque civilizacional que se julgava estar prestes a assolar a humanidade.

   Quando um filme tem dois ou três clichés, é mau; tendo cinco ou seis, é muito mau; quando tem todos, é bom. É o caso desta longa a preto e branco, que provocou risadas constantes na audiência. As más interpretações, os cenários desastrosos, os inúmeros erros de filmagem, a utilização desmedida de imagens de arquivo, em suma, o amadorismo que se verifica no conjunto, tornam-na num filme docemente acarinhado. Quando nos rimos deste filme, não o fazemos em tom de troça ou de fastio, mas com algum carinho. Quer-se dizer, não é para todos ficar em último, e o mérito de ser falado, ainda que por más razões, ao fim de sessenta anos, deve ser reconhecido.




    Ed Wood terá tido pouco orçamento, mas, ainda assim, persistiu na ideia de levar este filme até ao fim. É de se louvar quando alguém acredita num projecto e se empenha para o concluir. Naqueles anos, o cinema não chegava às pessoas de forma tão completa e finalizada, como actualmente o faz. Não. Havia espaço para que o espectador imaginasse. O realismo não era assim tão importante, mediante que se criasse nas pessoas espaço para que estas sonhassem. O cinema tinha magia. Lembre-se do King Kong, de 1933.

   O estatuto de superpotência também tem destas. Os norte-americanos levam o galardão do melhor e do pior cinema de sempre. E nós, cá no nosso pequeno país, temos filmes maus, muito mau, tão maus ou piores do que este. Recordo-me, por ora, de Alentejo Sem Lei, que não foi um filme, mas uma série de três episódios. E ai de nós se quiséssemos ficar com o pior filme de sempre!

  Em Portugal, os cineastas conhecem bem as dificuldades de se fazer cinema. Plan 9 From Outer Space representa quase simbolicamente todos os que querem fazer muito com poucos meios. Na cabeça de Ed Wood, este seria um clássico da ficção científica. Acabou por sê-lo, de uma forma ou de outra.

15 de setembro de 2019

The Golden Glove.


   Optei por escrever uma crítica a este filme à parte. É o mais horripilante a que alguma vez assisti. Certamente que se recordarão (os mais atentos) de um filme que vi no início de Janeiro, The House That Jack Built, de Lars von Trier, que na altura considerei de uma violência gráfica enormíssima. Pois bem, este supera-o em larga medida.

  The Golden Glove é a história de um psicopata alemão, que existiu realmente, dos anos 70. Um homem de aspecto repelente, alcoólatra, que se movimentava nas ruas escuras de uma Hamburgo segregada, atraindo mulheres de baixa estirpe para sua casa, onde as matava friamente, esquartejando-as e guardando os corpos numa divisão da casa. O filme é nauseabundo. É o melhor adjectivo que encontro para o qualificar. Esse carácter pútrido é-lhe dado pelos cenários insalubres, pela atmosfera decadente dos espaços e pela caracterização e guarda-roupa das personagens. Neste filme, esqueça-se o alemão sadio e pujante. É, na realidade, a sua antítese.




   Honka não parecia matar por puro prazer. Antes, parece-me que a frustração, seguramente aliada ao transtorno de personalidade, fazia com que não conseguisse lidar com o facto de não ser capaz de atrair as mulheres que desejava - a colegial loira bombástica, que paira nos seus sonhos macabros. Via-se com aquele rosto disforme, assustador, incapaz de suscitar interesse até em muitas das mulheres de má vida que frequentavam o Golden Glove, bar daquele bairro degradado, e que inspirou o título do filme.

  Esta longa assusta pela crueldade, pelo sadismo, pelo desrespeito absoluto pela condição humana. Golden Glove, o bar, é um polo onde todas as mágoas se reúnem em torno do álcool, onde restos de gente procuram fugir à inevitabilidade de uma existência dolorosa. Um dos grandes méritos está na caracterização dos actores e nas interpretações. Na caracterização, comparo o trabalho com Jonas Dassler, o actor que encarna Honka, com aquele que fizeram em Charlize Theron, no Monster, de 2003.

   Pouco recomendável aos mais sensíveis, não deixa de ser uma viagem pelas mentes mais doentias que a nossa espécie compreende.

14 de setembro de 2019

The Quake, It Comes e The Hole in the Ground.


   Sentimentos mistos com esta segunda sessão do MOTELX. É um drama and disaster movie. Não creio que se justifique num festival de terror. Dois terços do filme são de se morrer de tédio, e o final é incoerente e, sobretudo, pouco crível - desta vez, safou-se não o herói americano, mas o norueguês - o filme é escandinavo, e a sessão contou, inclusive, com a presença do realizador, John Andreas Andrersen, que pôde responder a perguntas da audiência no final. Em Portugal, somos mui lambe-botas de tudo o que é estrangeiro.




  A parte dramática é boa, não se justificando naquele contexto particular. Arremata quase todo o filme. Os efeitos especiais, sim, são fantásticos. Vemos Oslo destruída computorizadamente. As cenas em que os edifícios tombam são, de facto, sufocantes desde o prisma do espectador. De igual forma, aquelas no elevador, quando duas das personagens principais procuram evadir-se dali. Neste The Quake, a tecnologia e as cenas de acção salvam-no do aborrecimento total.

  Não consegui deixar de pensar em Lisboa. A Noruega, segundo informações adicionais ao filme, antes dos créditos, é um país altamente sísmico. Sabemos que Portugal também o é e que Lisboa já passou por inúmeros terramotos, entre eles o catastrófico de 1755, que arrasou com a cidade.


   It Comes. Se julguei eu, do alto da minha ingenuidade, que teria aqui um bom filme, fui leviano. É terrível, e o facto de ser extenso e de o realizador não ter sido competente, sabendo quando terminar, leva a que seja sofrível. A sinopse prometia ao menos algo razoável e a primeira parte do filme não fazia prever que o final seria tão desastroso. Quando abordam temas tão naturais como o espiritismo, porque é que se perdem em fantasia, sangues e mortes completamente desnecessárias? São mundo à parte: um é o do sobrenatural, do espiritismo, e outro é o dos monstros, dos vampiros etc. Não os misturem como se fossem um só universo.




  Interessante para nipo-fanáticos ou nipo-curiosos, foi a minha primeira banhada no MOTELX deste ano.


  Quase para compensar o desastre que foi o It Comes, esta sexta-feira 13 pude assistir a um filme de terror que não se perdeu em fantasias supérfluas: o The Hole in the Ground. Sucintamente, gostei da abordagem subtil, mas presente, do fenómeno da violência doméstica e das marcas que pode deixar numa mulher, neste caso, e numa criança. Sarah vivia no limiar entre a paranóia e a necessidade de cuidar de um filho que ficou a seu cargo, desempenhando quase o papel de mãe solteira.




   As mães são as pessoas que melhor nos conhecem. Sarah não teve dúvidas em afirmar que aquela criança que ali estava não era o seu filho. Veio-se a verificar, mais tarde, que uma entidade sobrenatural, que nunca vimos a saber qual, tomara o lugar do pequeno Christopher.

   O filme conjuga momentos de ternura entre mãe e filho com o suspense próprio de filmes de terror, com a diferença de que neste há todo um envolvimento que o torna mais ou menos verosímil. Houve contenção na hora de se abordar o fenómeno da paranormalidade. De núcleo reduzido a duas personagens principais, resultou um filme que consegue assustar sem necessidade de floreados.

   No final, a simpática e disponível actriz principal, Séana Kerlaske, de origem irlandesa, respondeu a perguntas feitas pela audiência. O bom destes festivais é que também podemos contar com o elenco, em algumas sessões.


11 de setembro de 2019

MOTELX e Bacurau.


  Começou, ontem, o MOTELX, o festival internacional de cinema de terror de Lisboa, que vai na sua 13ª edição e que decorrerá entre os dias 10 e 15 de Setembro. Eu já reservei o lugar em seis das inúmeras sessões, da manhã à tarde, que o Cinema São Jorge guardou para 2019. No final, farei, à semelhança do que fiz no ano passado com outro festival, um pequeno balanço do certame.

  O primeiro filme com que inaugurei o MOTELX foi Bacurau, uma longa-metragem que estreou em Agosto deste ano no Brasil e que obrigou a organização do festival a incluir uma segunda sessão, que a primeira ficou esgotadíssima em horas, acabando a segunda também por esgotar. Eu fui à sessão das 18h, a segunda.



   A sala estava apinhada. Houve alguém que gritou, lá do alto das bancadas: "Lula livre!" A maioria repetiu, em uníssono, e aplaudiu. Aquela sala é um espelho da conjuntura actual no Brasil. Estava aberto o mote para uma sessão politicamente encalorada, pejada de mensagens subliminares, num país que vive na dicotomia esquerda - direita há anos, desde meados de 2013. Há, efectivamente, uma guerra no Brasil. Uma guerra civil que se trava no campo ideológico, com perseguições políticas de parte a parte, instrumentalização de poderes públicos e purgas e manifestações ferozes nas ruas das principais cidades. 

  O filme é ambientado na cidade fictícia de Bacurau - provavelmente um topónimo de origem tupi. Quis-se retratar esse Brasil profundo. Eis a primeira mensagem étnica. Em Bacurau, a água potável chega através de um camião cisterna, mas todos os habitantes, dos mais novos aos mais velhos, têm telemóveis e tablets. Na escola pública, as paredes descascam, mas é dotada de tecnologia de ponta. Mal conseguimos descortinar como é que a ligação à internet chega àquele misterioso lugarejo do sertão brasileiro. Eis a segunda mensagem: uma crítica ao capitalismo. Aquelas pessoas são compradas por um prefeito corrupto e amoral. A determinado momento, a pacatez de Bacurau começa a ser perturbada pela ocorrência de mortes misteriosas, e é aqui que a realidade e a ficção cientifica se misturam. Bacurau é quase um mundo paralelo, uma realidade alternativa. Tudo é profundamente desconcertante naquele povoado.




   Os moradores de Bacurau representam a resistência do povo brasileiro ante uma ameaça premente e predadora - o governo de Bolsonaro suportado pelos EUA. Numa das cenas, e o filme retrata um futuro próximo, um noticiário anuncia execuções públicas. No Brasil, discute-se o restabelecimento da pena capital. Há ainda referências ao eleitorado de Bolsonaro no sul do país. Dois desses sulistas são os carrascos do seu povo, ridicularizados por se julgarem racicamente superiores aos demais brasileiros. As artes não são imunes à turbulência político-social, e temos aqui mais um indesmentível exemplo dessa promiscuidade.

    Os vícios dos brasileiros estão lá também, plasmados, não em tom de crítica, mas quase de auto-aceitação. O Brasil da corrupção, do sexo que aflora a qualquer momento, dos gangues, que não devia obliterar o do carinho, do sentimento de comunidade, da entreajuda na hora de agir contra o inimigo. Mais do que tudo, o Brasil da violência. Bacurau é uma ode à violência com lampejos de sátira social e mordaz. Ela surge-nos de todos os lados, naturalmente. E a violência gera violência. Em Bacurau, parece não haver polícia, ordem pública. Em Bacurau, não há Estado. Em Bacurau, vive gente. Bacurau é um pequeno Brasil, um micro-cosmos da sociedade brasileira. Em Bacurau, é o povo quem mais ordena.

10 de setembro de 2019

Dolor y Gloria.


   Ontem, na véspera de um festival de cinema de que vos darei conta brevemente, fui ver o último filme de Almodóvar, Dolor y Gloria, com a interpretação magistral de Antonio Banderas no papel principal.

    Banderas faz de cineasta de meia-idade, Salvador Mallo, cheio de maleitas físicas e espirituais, quase eremita, que após a morte da mãe vive em crescente reclusão, só mitigada pela existência de umas amigas. Em retrospectiva, vamos vendo a sua infância, numa excursão pela Espanha muy católica y apostólica, rural, pobre. Almodóvar, aqui, num retrato intimista, provavelmente com um toque de biográfico. A fotografia é excelente. As lavadeiras, de início, esfregando a roupa no rio e pondo-a corar ao sol, enquanto trauteavam canções populares espanholas, em imagens que tão bem conhecemos daqui, do nosso país. Um retrato de uma Espanha franquista, isolada, nos anos 50 / 60.




  "El primero deseo" foi a primeira experiência homoerótica que o pequeno Salvador viveu. Almodóvar não esqueceu a beleza física, representada no corpo masculino de um jovem pintor de casas, de vinte e poucos anos, suado, de pele queimada pelo sol de Paterna. O desejo do pequeno Mallo, que se confundia com os tremores e os suores da febre. Mais tarde, adulto, no início dos anos 80, vive um romance atribulado com um homem belíssimo - pesquisem por Leonardo Sbaraglia, o actor -, que todavia termina porque a droga se interpõem entre eles. E é justamente Salvador quem vem a usar heroína, caballo, quando os opiáceos que lhe controlam a dor deixam de o ajudar. O marasmo e a descrença num futuro que lhe permita voltar a dirigir estão estampados no seu rosto de celibatário convicto. Salvador recusa-se quase a voltar a amar. Federico, entretanto, continua a mexer consigo, a despertar-lhe o desejo, mas não a ponto de o fazer arriscar.




   Dolor y Gloria é de uma beleza estética indiscutível. Nos planos, nas cores. Nos cenários. Na simplicidade de uma caverna caiada com brio, decorada de azulejos. No relacionamento tão próximo e espontâneo de uma mãe com o seu filho, e vice-versa, um amor maior. Mallo herda da mãe tão-só o ovo de costura com que esta lhe cosia as meias rotas, enquanto supunham como seria a vida das grandes vedetas do cinema norte-americano. Fala-se de Elizabeth Taylor, surge-nos Marilyn Monroe, ícones da cultura popular daqueles tempos em que o cinema cheirava a orina y el jazmín. Será, direi eu, a reconciliação com a lei universal do nascimento e da morte que o levará a regressar à sua paixão, o cinema, como director.

  As interpretações, quer de Banderas, quer de Penélope Cruz e dos outros actores, são tão boas, tão convincentes, que só ajudam a tornar esta obra de Almodóvar num arquétipo do cinema espanhol de excelência. Almodóvar continua a ser aquele selo de qualidade indiscutível - fui para o filme sem saber o mais ínfimo pormenor sobre o que iria ver. É o maior realizador espanhol da sua geração. E Espanha, nas artes, nunca deixou de ser potência.

7 de setembro de 2019

Férias e Festa do Livro de Belém.


  Dei por mim a pensar que ainda não lhes falara das minhas férias. Já sabem que estive no Algarve. Mais concretamente em Vilamoura. Foram oito dias fantásticos. Logo no sábado, passei pela Costa da Caparica. Fui à Praia 19, com uns amigos. Foi a minha estreia numa praia dita gay. Sendo sincero, gostei da praia, mas não do ambiente. O lado bom é o de que podemos estender uma toalha à vontade, sem medo de encher o vizinho do lado de areia. O lado mau é mesmo toda aquela atmosfera de engate (ou pegação, como dizem os brasileiros) e todos aqueles homens nus. Há quem goste. Eu não gosto. Claro que não me caíram os parentes na lama, ou, como também diz o povo, quem está, está, quem vai, vai.

   Já pelas 18h e picos, seguimos para sul. Cheguei ao Algarve de noite. No dia seguinte, domingo, comecei pela piscina, de manhã, seguindo-se a praia, à tarde, e pequenos passeios pela Marina de Vilamoura, pelo Old Village e pelo centro da localidade, à noite, num ritual que se repetiu pela semana. Deixo-lhes algumas fotos. Já sabem que poderão ter acesso ao registo fotográfico das férias através das minhas plataformas virtuais, isto para quem me segue por lá.

Praia da Rocha Baixinha - Vilamoura
Piscina! :)
Praia do Castelo - Albufeira, uma das bonitas em que estive na minha vida

Praia do Castelo

Arribas da Costa da Caparica





   Disto isto, nesta sexta-feira e neste domingo fui à Festa do Livro de Belém, que sucintamente é uma minifeira do livro, versão 2.0, durante três ou quatro dias, nos jardins do Palácio de Belém - residência oficial do Presidente da República. Na sexta, podia-se andar por lá; no domingo, para esquecer. Colocaram as tendas de venda dos livros num dos jardins. As pessoas amontoavam-se. O passeio valia pelos jardins, pelas fotos, eventualmente, que os descontos também não foram nada de especial - não houve happy hour. Apenas comprei um livro no domingo, uma biografia do Marquês de Pombal por Veríssimo Serrão, um dos nossos nomes maiores da História de Portugal. Uma pechincha, um achado, que mereceu. Tentei ficar para o concerto dos Xutos e Pontapés, evento de encerramento, mas fui derrotado pelos decibéis - sabem que padeço de hipersensibilidade auditiva.

   O Marcelo andava por lá a pavonear-se, entre beijinhos e selfies. Nada de novo debaixo do sol, portanto. A determinado momento, abeira-se da janela, com o povo todo cá em baixo, exultante. As velhas aplaudiam-no. Só visto. Foi meio circo. Deixo-lhes também algumas fotos.


O Marquês de Pombal - O Homem, O Diplomata e O Estadista, por Veríssimo Serrão

Festa do Livro, num dos jardins do Palácio de Belém