Com a Revolução de Abril, o legislador de 75/76 optou por manter a tradição unicameral que nos vinha desde 1926, embora tivesse sido acolhida na nossa primeira Constituição de 1822. Inspirando-se nos moldes da Constituição do Estado Novo de 1933, manteve-se o propósito de concentrar num único órgão representativo de estrutura colegial a força decisória unitária. A Assembleia da República é o órgão de soberania colegial que representa todos os cidadãos portugueses, conforme o disposto no artigo 147º da Constituição. Os deputados são eleitos por círculos eleitorais, mas representam todo o país (artigo 152º, nº 2 da Constituição, doravante CRP). A vontade da Assembleia da República, nos termos do modelo de democracia representativa, é a vontade geral de toda a colectividade. Aferimos, daí, que não há democracia sem parlamento, nem podemos falar de um verdadeiro parlamento sem que haja uma representação plural de todas as sensibilidades políticas existentes na sociedade. Ora, a Assembleia da República demonstra essa confluência de sensibilidades.
O parlamento, enquanto órgão colegial, funciona segundo o princípio maioritário, ou seja, o partido ou a coligação partidária que tenha maioria controla as decisões políticas e jurídicas da Assembleia da República. Se a CRP - e bem - nos diz que os deputados exercem livremente os seus mandatos, à luz do artigo 155º, nº 1, a verdade é que, frequentemente, estão sujeitos a disciplina partidária. Os deputados estão subordinados aos partidos políticos, sendo meros objectos fungíveis, obedecendo cegamente à liderança partidária. Os partidos condicionam quem vai ser deputado, definem as listas de candidatos a apresentar às eleições, e, através dos grupos parlamentares, controlam e sujeitam o exercício dos mandatos parlamentares à sua vontade. A tudo isto assistimos nos últimos dias quando vários deputados do PSD se viram obrigados a votar no sentido estipulado pelo partido na pessoa do seu líder, Pedro Passos Coelho, adulterando o espírito representativo patente na nossa lei fundamental e subvertendo a sua consciência a interesses partidários. O parlamento é, em cenários de maioria política, como o que vivemos, facilmente instrumentalizado pelo Governo.
O referendo está previsto no artigo 115º da CRP. Pode ser proposto pelo Governo, pela Assembleia da República e ainda por iniciativa popular de cidadãos (116º). O Presidente da República, nos oito dias subsequentes à publicação da resolução da Assembleia da República, submete ao Tribunal Constitucional a proposta de referendo para efeitos de fiscalização preventiva da constitucionalidade e da legalidade, o que resulta também da Lei Orgânica do Regime do Referendo. O Tribunal Constitucional aprecia então da legalidade e constitucionalidade do mesmo, segundo o que dispõe o artigo 223º, nº 2 alínea f) da CRP. A esperança dos opositores ao referendo residem agora no Tribunal Constitucional, uma vez que Cavaco Silva, a julgar pelo seu carácter e conservadorismo, provavelmente concordará com a consulta popular. Todavia, Cavaco Silva pode considerar o momento inoportuno e inviabilizar o referendo. Isto partindo do princípio que as duas perguntas colocadas a apreciação do Tribunal Constitucional passam pelo seu crivo. Nesta situação, Cavaco Silva tem um papel decisivo na submissão das questões a referendo, sendo o seu exercício um direito absoluto (artigo 134º, alínea c)), competindo-lhe aceitar ou recusar as propostas dirigidas pela Assembleia da República (neste caso em concreto) ou pelo Governo. Não nos esqueçamos de que há um projecto de lei de coadopção apresentado pelo PS em cima da mesa, suspenso desde já pela aprovação no parlamento da proposta de referendo que incide sobre a mesma matéria. Convocando-se o referendo, o projecto continuará automaticamente suspenso devido à primeira pergunta que, eventualmente, será colocada. Em relação à segunda, que abrange a adopção por casais do mesmo sexo, não há qualquer projecto. Invoca-se ainda uma possível inconstitucionalidade por não existir um projecto de lei em curso sobre a adopção por casais do mesmo sexo. A doutrina diverge e não concordo com os argumentos invocados por António Filipe, deputado do PCP. Na minha opinião, e na de vários constitucionalistas, um referendo pode englobar matérias que não estão pendentes de apreciação parlamentar.
Após a decisão de Cavaco Silva pela afirmativa, o projecto do PS mantém a suspensão; optando o Presidente pela não convocação, esta caduca e o projecto subirá ao plenário tarde ou cedo.
A pergunta que paira sobre muitos é a da legitimidade desta proposta de referendo. Serão os direitos individuais referendáveis? Importa fazer uma clara distinção: não há um direito a adoptar, nem por casais heterossexuais ou por cidadãos individuais. Há um direito constitucional a constituir família (36º, nº 1 da CRP), direito vago, sabendo-se que há famílias sem crianças. Há ainda um direito das crianças à protecção e à luta contra o abandono (69º, nº 1 da CRP), extraindo-se daqui um direito à família. O direito é, então, das crianças e não dos adultos. O bom senso diz-nos que, nesta luta constitucional contra o abandono, fará todo o sentido permitir que dois homens, ou duas mulheres, possam criar, educar, proporcionar um ambiente são a uma criança, assim preencham os requisitos comuns a qualquer adoptante. Jamais o Estado se substituirá a uma família e o conceito de família não pode por ele ser definido. Compete ao Estado, isso sim, proteger a família enquanto elemento fundamental da sociedade (67º, nº 1 da CRP), efectivando todas as condições que permitam a realização dos seus membros. Em parte alguma se fala de casais heterossexuais. O Conselho da Europa em 1988, na sua resolução nº 1074, reconhece a família como o núcleo onde as relações são mais densas e ricas, lugar por excelência para a educação das crianças.
À luz da lei do referendo (Lei 15-A/98 de 3 de Abril), o mesmo só poderá versar sobre questões de elevado interesse nacional, onde poderemos incluir a adopção e coadopção. Materialmente, não me parece inconstitucional. Estão de fora todos os limites aos quais a lei se refere. No meu humilde parecer, a proposta seria inconstitucional por incidir sobre um direito à família previsto na Constituição. Nenhuma instituição estatal é uma família. Um jovem, ou criança, de sempre educado por pessoas que reconhece como seus pais, não pode ver referendado o seu direito a ter aquela figura como pai ou mãe. Não nos compete ajuizar sobre os vínculos que unem uma criança à sua família mais próxima. Na adopção, o direito à protecção e à luta contra o abandono não permite, a meu ver, que o Estado possa preterir um casal homossexual por um casal heterossexual apenas porque fundamentou o conceito de família com base em convicções ideológicas e pessoais. Apresentando-se um casal homossexual à adopção e havendo um adoptando, criança ou jovem carecendo de uma família e de afectos, nada poderá impedir o processo, em nome dos referidos direitos à protecção e à luta contra quaisquer formas de abandono. Por maioria de razão, as matérias da coadopção por um cônjuge ou unido de facto do mesmo sexo e da adopção por casais homossexuais devem ser discutidas e aprovadas na Assembleia da República e não por consultas populares, dada a profunda delicadeza em causa.
Ainda na lei do referendo, se o Tribunal Constitucional se pronunciar pela inconstitucionalidade ou ilegalidade da proposta de referendo, o Presidente não o pode convocar e tem de devolvê-la ao órgão que a formulou, no caso, a Assembleia da República. A Assembleia apreciará e expurgará a parte considerada inconstitucional ou ilegal. No prazo de oito dias após a publicação da proposta que tiver sido reformulada, Cavaco Silva terá de submetê-la de novo ao Tribunal Constitucional para segunda apreciação, repetindo-se o processo. O Presidente decide, então, no prazo de vinte dias, pela convocação ou não do referendo. Havendo referendo, só é vinculativo quando o número de votantes for superior a metade dos eleitores inscritos (115º, nº 11 da CRP).
Estamos perante questões que dividem a sociedade portuguesa. Trata-se de um processo moroso, complexo, que envolve tempo que muitos não têm. Há famílias que precisam de certezas. No fim de tudo, convocando-se o referendo, seria necessário promover debates alargados e suficientemente elucidativos. Há muito em jogo e poderes ocultos...
Veremos o que dita a sensibilidade de quem ocupa os órgãos de soberania.