Meditando sobre as palavras carinhosas usadas pela imprensa portuguesa para se referir ao povo espanhol (palavras essas de uso mais frequente do lado de cá de la raya do que propriamente do lado de lá), levantaram-se em mim sérias dúvidas sobre a propriedade de termos tão familiares, não sendo a minha intenção conferir qualquer seriedade aos mesmos, admitindo, até, uma certa ironia por parte de quem os utiliza (também eu tenho um lado ingénuo).
A expressão nuestros hermanos tem tido um uso popular. Vulgarizou-se. A proximidade geográfica (único país com o qual Portugal tem uma fronteira externa), as semelhanças culturais e sociais levaram à proliferação de tão bem intencionada expressão. Alguns ressentimentos históricos - muitos fundamentados - e a subsequente necessidade de esbatê-los no tempo, também terão perpetuado este carinho fictício e criado artificialmente, mormente pelos vários governos de cá e de lá da fronteira, para os quais, num quadro de integração europeia, qualquer tipo de nacionalismo, mesmo o mais elementar e compreensível, é um obstáculo.
Será o povo espanhol irmão do povo português? Teremos tamanha afinidade que sustente isto?
Falso seria aquele que negasse um passado comum com Espanha. Sendo mais antigo do que o reino vizinho, Portugal surgiu no mesmo contexto de Reconquista Cristã, com propósitos e objectivos idênticos: livrar a Península do domínio muçulmano (infiel). Nesse sentido, ambos os reinos surgiram em circunstâncias semelhantes, com Portugal a formar-se primeiro, delimitando as suas fronteiras com o Tratado de Alcanizes de 1297. Espanha surgiria apenas em 1492, aquando da conquista do último reduto árabe na Península, feito alcançado pelos Reis Católicos Fernando e Isabel.
O período apoteótico e talvez mais importante da História de Portugal - os Descobrimentos - iniciados com a Conquista de Ceuta, em 1415, no reinado de D. João I, seriam seguidos mais uma vez de perto pela vizinha Espanha que, terminando a reconquista no seu território, preparada estava para competir com Portugal pelo comércio das célebres especiarias das Índias, ansiando, tal como o seu rival, pela destruição das rotas terrestres dos árabes. Colombo descobriria a América no mesmo ano da tomada de Granada aos árabes, 1492. Nas Américas, os dois reinos competiriam pela colonização, exploração e posse daquele continente.
O Absolutismo Régio, que grassou na Europa Continental, também haveria de contemplar os dois vizinhos ibéricos. Iniciado em Portugal no reinado de D. João II (sobretudo), atingiria o seu apogeu, no século XVIII, com D. João V e, especialmente, com o despotismo esclarecido de Sebastião José (Marquês de Pombal) que aumentou substancialmente os poderes reais, na pessoa de D. José I, aniquilando, dessa forma, qualquer outra autoridade no Reino ou nos seus domínios (o fim do exclusivismo educacional dos jesuítas no Brasil é um exemplo). Em Espanha, após a famosa Guerra da Sucessão (1702 - 1714), o Absolutismo nasceria da necessidade de afirmação de um Estado forte e coeso, incorporado em Filipe V.
O fim dos impérios coloniais na América seriam mais uma manifestação dessas similitudes históricas. As invasões napoleónicas em Portugal e em Espanha despoletariam, por todo o século XIX, as independências dos domínios espanhóis naquele continente (Venezuela na vanguarda, em 1810) e do domínio português (Brasil, 1822).
A Revolução Industrial haveria de seguir o mesmo rumo nos dois países, tardiamente, já no século XIX, nomeadamente, e em Portugal, com as reformas de Mouzinho da Silveira.
Seria, contudo, mais tarde, já no século XX, que a História confundiria de novo o percurso dos dois eternos vizinhos. Ascensões de regimes autoritários iguais: em Portugal, com o Golpe Militar de 1926, comandado por Gomes da Costa, que daria lugar a partir de 1933 e até 1974 ao Estado Novo; e em Espanha, que após a Guerra Civil de 1936 / 39 haveria de conhecer uma vitória do Generalíssimo Franco, que iria, tal como o seu congénere Salazar, dar início a um regime fortemente autoritário. Breves distinções surgiriam no contexto da transição para regimes democráticos. Enquanto que em Portugal o mesmo sucederia com um golpe de Estado, em 1974; em Espanha uma transição "pacífica" e diferente foi projectada após a morte de Franco, em 1975, e a subida ao trono de Juan Carlos, no mesmo ano. Tendo Magnas Cartas iguais na substância e em direitos, as Constituições Portuguesa (1976) e Espanhola (fortemente inspirada pela primeira - 1978) desvendam objectivos comuns. A integração europeia, nomeadamente na mesma data, 1 de Janeiro de 1986, iniciaria um novo ciclo na vida dos dois países ibéricos, já, desta feita, no quadro da C.E.E (actual U.E).
Posto isto, serão hermanos?
Não, analisando os factos. Os percursos idênticos não poderão admitir essa suposta afinidade. Atribuindo, porém, uma definição tão íntima a tais laços, de que nome poderíamos dotar as relações verdadeiramente próximas entre Portugal e os países da CPLP? E as relações entre Espanha e as suas antigas colónias na América e em África (Guiné Equatorial)?
Essas, sim, serão de verdadeira irmandade.
Espanha e Portugal percorreram tantos séculos como aqueles que têm, enquanto Estados soberanos, de costas voltadas. Nada os une. Têm línguas distintas, culturas autónomas e desejos afincados e profundos de pertença a um lugar, a uma identidade própria e totalmente diferente, pese embora os factos históricos que enunciei. A tomada ilegítima de Olivença, na célebre Guerra das Laranjas, é mais um dos espinhos na relação conflituosa dos falsos irmãos. Recorde-se de que, no que concerne a Olivença, existe, até hoje, uma total omissão em todos os tratados bilaterais que estabelecem as fronteiras entre os dois países. Nenhum cede.
Os irmãos, na realidade, são meros vizinhos. Não existe suporte popular ou histórico para mais. A designação, honorífica, chamemos-lhe assim, peca pela sua insuficiência de sustentação e pela sua inverdade. Nunca houve - e não há - carinho, estima ou amizade entre as populações portuguesa e espanhola. Desçamos a uma mera conversa entre populares num café - a essência de uma nação, o povo: não há afinidade. Haverá? O futuro é uma doce ou amarga incógnita.