29 de agosto de 2011

Metamorfose.



Seria tão bom se passássemos pela fase de crisálida, mas não a fase tradicional da puberdade. Uma fase em que pudéssemos deixar para trás tudo de errado que encontramos e fizéssemos uma renovação total. Insondáveis desígnios da Criação e temos de viver com o que vamos construindo. Oscilo entre o que está bem e o que está mal, uma tendência voluptuosa e irresistível para o inconformismo. Dizem que é bom ser assim. Aperfeiçoa-nos progressivamente. Errado. Há coisas imutáveis em nós. Somos imperfectíveis, todavia, uns aceitam melhor essa inevitabilidade.

Se tivesse o poder de fazê-lo, construiria o que não vivi. Tornaria o sonho em realidade. Como Florbela Espanca, materializaria

"Lembranças de fantásticos outroras,
 De sonhos que não tenho e eram meus!"

Se o fim da linha se afigura como um precipício, o passado não reboca as dores que anseiam terminar. Os sonhos, jogados no vil negro, desaparecem como uma centelha minúscula que diminui à medida que trespassa o ponto de não retorno. Os sonhos são densos, a substância que os envolve não existe. Porventura em nós, existe em quem se tem como real. O tempo passa e cada vez mais me observo de fora, como uma pupa ansiosa por viver.



26 de agosto de 2011

Think Less.


Fui almoçar fora com a mãe. De tarde, pedi-lhe que me deixasse perto de uma livraria no centro da cidade. Fê-lo, meio contrariada, mas percebeu que hoje o dia era meu.
Não me detive muito tempo no meio daquelas estantes cheias de ideias, novas e antigas, úteis e nem tanto. Hoje, recusei-me a pensar. Porque pensar é entediante, provoca dores de cabeça e, mais das vezes, complica mais do que resolve. Porque pensar envelhece, como dizia uma tia já falecida, e no caso dela teve o efeito desejado. Morreu, é certo, mas com uma pele fantástica. Ela dizia, já no final da vida, que queria ser um cadáver bonito. Conseguiu-o.
Jamais me inspirei no seu modo de estar na vida e acredito que quem pouco pensa, morre vivo. Bastante paradoxal.
Meti-me num jardim. Naqueles jardins onde habitualmente morre a esperança de um dia vazio. Lisboa tem-os às dezenas e nenhum me preenche as medidas. Sentei-me num banco e arrependi-me momentaneamente de o fazer. O vento que se fazia sentir debaixo de duas imponentes árvores remexeu-me o cabelo.
Vi dois rapazes a correrem lado a lado. Talvez da minha idade. Corriam. Paravam. Faziam flexões (ou tentavam). Voltavam a correr. Paravam. Recomeçavam. Dois amigos. Espera. Ao fazerem exercícios, ambos se tocavam. Simples atividade física ou homoerotismo? Não gosto de observar "pessoas". Deixei o assunto de lado.
Um foi-se embora e o outro continuou a corrida. Agora passou à minha frente e reparou em mim. Sentou-se não muito longe e começou a mexer no telemóvel. Quando se levantou, olhou para mim, sorriu e acenou-me um adeus. Saiu do jardim.
Provavelmente não pensou duas vezes ao acenar-me. Não pensou, como eu não pensei ao entrar no jardim, como a vida pode ter detalhes insignificantes quando não se pensa. Eu não tenho esses detalhes porque penso. Feliz é quem pensa de menos.



23 de agosto de 2011

Consegues afastá-los?


Ainda deixo a luz do candeeiro ligada enquanto durmo. Uma luz âmbar, alaranjada, fraca o suficiente para me deixar dormir, embora forte para afastar os monstros que teimam em assombrar o meu sono. O teto, no escuro, assume formas estranhas, indecifráveis, de contornos irregulares, cujo o afastamento se dá com a luz / presença do meu abat jour. De pálpebras cerradas, consigo sentir a luz alaranjada a iluminar-me a retina. Sinto o calor de um aconchego inexistente, uma segurança imaginária que não existe para além da minha vontade.

"Dormes de luz apagada?"

Consegues fazê-lo, como todos, mas perdoar-me-ás esta pequena fraqueza. Necessito desse amparo tão meu, dessa proteção concebível por mim quando nada mais posso fazer. Se soubesses o que se passa quando estou no escuro, provavelmente compreenderias o que sinto. Os monstros saem debaixo da cama, do roupeiro e vêm assombrar-me. O divórcio dos pais trouxe-me o medo, rebuscado quando, de madrugada, na infância, gritava pelos seus nomes por temer o escuro. O medo, afinal, nunca passou. O pai ou a mãe vinham, sentavam-se na pequena poltrona azul e zelavam por mim até que adormecesse. As sombras, quase por magia, desapareciam.

"Podes fazê-las desaparecer novamente?"

... Se ao menos estivesses aqui, de noite, poderia desligar a luz e deixar-me adormecer. Segurarias em ti o meu sono, porque quando durmo estou em paz.

Quando acordo a luz está desligada. Ou não. Já se fundiram de madrugada, já se esbateram com a luz da alvorada, já foram desligadas pela mãe.
O candeeiro pode, por fim, descansar.
Os monstros esconderam-se nos seus abrigos secretos.
Quando a chuva não cai, unindo-se a mim, o sol brilha. Já não me aquece mais.


 

21 de agosto de 2011

Pisando o molhado.


Gosto da neblina. Gosto sobretudo de a observar sobre a cidade. A mística conferida torna o ambiente diferente. O verde ganha uma vivacidade especial. A chuva da madrugada de sábado animou as plantas do jardim da avó, onde dormi, e onde passei a manhã. Adoro andar descalço na calçada do jardim. Sentir o frio a trespassar a pele fina dos pés. A chuva da madrugada ainda salpicava as plantas, agora mais vivas do que nunca. Colhi um jarro e coloquei-o perto do nariz para sentir o seu aroma. Se a mãe tivesse visto... Não posso andar descalço, à chuva, nem sentir o pólen das flores. Contudo, sinto-me livre ao contactar com a Natureza, saindo da redoma de vidro, quase cristal, em que sempre vivi. Sentir o vento nas costas, o molhado na pele, o cheiro intenso de terra fresca. Viver a manhã, não como mero observador, mas no palco principal.
Tossi. O corpo ressentiu-se da minha audácia e da vontade feroz de romper fronteiras.
Entrei para dentro e, ao invés dos cereais com leite, optei por um sumo natural de laranja. Fruta da terra trazida pelos caseiros da avó. Fruta daquela que dispensa açúcar. Senti o doce nos lábios. Parecia perfeito, mas há sempre algo que demonstra que a realidade nem sempre é assim tão idílica.
O céu escureceu mais um pouco. A sala também, repercutindo-se agora num profundo temporal no meu espírito.

19 de agosto de 2011

Encontrei o mar.


Ontem, a praia não estava cheia, por incrível que o mesmo possa parecer. O vento que se fazia sentir perto do mar amenizou o calor de agosto. À medida que íamos chegando, fui tomando atenção ao que via através do vidro do carro.
Um carrossel girava sozinho, sem ânimo humano para lhe dar vida e cor. Pessoas caminhavam com um sentido definido, atraídas por um objetivo comum. Nuvens pequenas e pouco espessas tentavam eclipsar os raios quentes do sol.
Na rua da praia comi uma bola de Berlim com creme.

"Por que razão se chamará bola de Berlim a este bolo?"

Tenho uma relação especial com as bolas de Berlim. Comi algumas quando passeava com os pais na época em que éramos felizes.
Lembro-me de quando te riste, na faculdade, naquele dia em que deixei cair um pouco de creme da boca que ficou suspenso no meu queixo.
O mar estava calmo, qual gigante Adamastor adormecido. Não, não gostei do Camões no 12º. A falta de ondas era suprimida por um cheiro intenso a sal, aroma que me agoniava a ponto de vomitar durante a minha infância. Entrei na água límpida, uma vez que não havia ondulação que remexesse as areias agora estagnadas no fundo do mar. Um pequeno cardume de peixes cinza passou não muito longe das minhas pernas temerosas do frio da água. Eles nadam todos juntos com um sentido estabelecido, o de encontrarem mais facilmente o alimento.
Estendi-me na toalha, passando os dedos por entre a areia fina enquanto me encontrava distante daquele lugar. Uma criança jogando à bola com um senhor de idade precipitou o meu silêncio interior.

"Voltaremos os dois à praia?"

Hoje, respondo-me. Não o sei dizer. Mas sei, todavia, que o que senti da última vez foi intenso, simples que fosse, e com um significado para mim.

17 de agosto de 2011

Vivê-lo Contigo.


Gosto de me sentar do lado de cá da janela a observar o exterior. A tigela dos cereais arrefecia, indiferente aos raios do sol refletidos no leite. Momentaneamente, observei com atenção o final do meu café da manhã, quando os cereais amoleceram por passarem demasiado tempo mergulhados no leite morno. Lá fora, a vida parece contrastar com os pensamentos que me ocorrem. Pensa-se muito pouco e a experiência diz-nos que agimos mais por impulso do que por premeditação. Uma senhora passa com o neto, segurando-lhe na pequena mão de criança, feliz por passar momentos ao seu lado. Com certeza ficará com ele quando os pais estiverem a trabalhar. É tão bom estar junto de quem se ama. Os cereais provocaram aquele som típico de comida embebida em líquido quente, assumindo, desta feita, uma textura uniforme, bem diferente da unicidade de cada cheerio.
Passou uma carrinha de mobiliário. Um dos vizinhos comprou uma commode très élégant. Será uma relíquia dos inícios do século passado? A senhora dona Maria Leonor sempre foi conhecida pelo bom gosto e pela sua excentricidade. Olhe, a outra gosta do neto e esta gosta de mobília. Cada um preenche-se como gosta.
Agora, cruzo a perna e penso em ti. O leite estará definitivamente frio e digo-o sem o provar. Dizem que as fibras são boas "come fibras que são do melhor e regulam o trânsito intestinal", mas tu certamente fazer-me-ias melhor. Oh, o que ela percebe de medicina? Foi para o México e vem-me com as tretas do costume. Tivera bom gosto e escolheria Nova Iorque!
Regresso a ti. És-me tão difícil. O sol está alto e quente. Consigo senti-lo pelo vidro. Vi tanta coisa e nem saí do lugar em que me encontrava quando comecei a ver a vida lá fora. Vivi-o contigo, no fundo sem ti, e nada vivi.

15 de agosto de 2011

Manuscritos.


Ontem, deitei-me sobre a cama a ler folhas soltas, umas dos inúmeros diários que escrevi durante a minha infância e adolescência; outras de pedaços de papéis que fui acumulando ao longo dos anos. É incrível a sensação de nostalgia e ao mesmo tempo de distanciamento que senti ao ler frases e textos que me pareceram tão díspares da minha realidade atual. Li cada folha, cada página, uma por uma, e demorei horas a fazê-lo. Encontrei palavras e frases que, à primeira vista e se não soubesse que as tinha escrito, negava terminantemente que fossem da minha autoria. O período cronológico de cada texto vai desde 2001 (infância) até 2009 (já com o blogue, mas quando ainda escrevia folhas soltas do diário). No meio de tanta papelada, curiosamente, não encontrei um único erro ortográfico, embora seja facilmente constatável a imaturidade presente. O período mais fértil deu-se em 2004 e 2005, quando gostei de alguém pela primeira vez e tive a necessidade de expressar tudo no papel. O divórcio dos pais, em 2006, foi prolífero também...
Comi quase um pacote de bolachas Belgas ao ler tantas folhas soltas, palavras esquecidas e emoções distantes. No entanto, ao reavivar tantas memórias, todas me surgiram no pensamento como um filme que passa em frente aos nossos olhos. As fotografias perdidas no meio de algumas páginas ajudaram a produzir esse efeito.
Vi cores, senti dores e entrei em períodos que julgara perdidos. Nada se perde em nós. Absorvemos tudo, o bom e o mau, o idílico e os fantasmas.

11 de agosto de 2011

Praia.


Hoje foi um dos melhores dias deste ano. Foi um daqueles dias em que tudo parece perfeito, em que até o brilho da manhã tem uma outra cor. Diverti-me imenso como há muito não acontecia. Fui à praia com o R..
Combinámos há três dias e hoje foi o dia escolhido. Fui ter com ele, de manhã cedo, à estação dos comboios e depois apanhámos o transporte público para a praia. Nunca andar de autocarro foi tão divertido.
Gostei tanto de o ver passadas estas semanas. Quase não o reconhecia. Achei-o diferente, mais magro e, sem dúvida, a precisar de uma cor naquela pele. Calçava uns ténis Vans gastos e vestia uns calções azuis com uma t-shirt branca. Trazia, às costas, uma mochila colorida em padrões de vermelho, preto e creio que verde, cuja marca não me consigo recordar e que nunca o tinha visto com ela.
Demos o célebre aperto de mãos, precedido por um abraço discreto, entrámos no autocarro e levámos a viagem inteira a falar. O percurso também é curto... Estávamos indiferentes ao barulho que nos rodeava e vim a saber que, desde que as aulas acabaram, as férias dele têm sido passadas quase inteiramente em cafés com os amigos do secundário e idas a uma piscina pública.
Na praia foi o máximo. Vi-o em calções de banho pela primeira vez. O tronco nu já lho tinha visto na faculdade, uma vez. Falámos imenso, fomos várias vezes à água, sendo que ele adora mergulhar nas ondas, à homem, dando aqueles mergulhos olímpicos que me parecem tão irrealistas a serem feitos por mim. Sentámo-nos à beira-mar a conversar, lado a lado; comemos as tradicionais sandwiches, feitas por mim, e bebemos iogurte com aroma a morango.
Poderia escrever aqui um sem número de pormenores e situações, mas creio que ocuparia mais espaço do que o desejado. Desta vez não senti inveja das raparigas que têm o namorado na praia, nem me senti triste por não viver o mesmo que elas. Vivi tudo e talvez ainda mais, à nossa maneira, mas mesmo assim de uma forma especial.
Queria mais dias assim e não queria que este tivesse terminado.

P.S.: Ele ficou um pouco vermelho e eu estou moreníssimo. (:

7 de agosto de 2011

My Prince.


Todas as crianças têm o seu imaginário povoado por histórias de encantar, contos e historietas que nos fazem sonhar e estimulam a nossa imaginação.
A minha infância foi cheia de livros coloridos e por colorir, dezenas de filmes de animação e histórias que o pai e a mãe me liam ao adormecer. Dormia, então, abraçado ao meu Simba e sonhava com cada parágrafo que me fora lido anteriormente. Passava os dias, no colégio, a aguardar o próximo capítulo, o desenvolvimento da história que ficara por concluir na noite anterior. Os dias ganhavam uma nova dimensão. Fantasiava com os heróis que conhecia e tentava encarnar as suas vidas e os seus papéis. Para além do gosto acrescido pela leitura, ter tido acesso ao direito de sonhar, direito inalienável de qualquer criança, levou-me a desenvolver capacidades que ficam adormecidas para sempre na vida de cada um. Uma criança que não é estimulada torna-se um adulto apático, vulgar e comum. Hoje, é raro o momento em que não estou a pensar em algo construtivo e criativo. Mil ideias viajam na minha cabeça e é-o assim desde a mais tenra idade.
Sonhava com os príncipes da Disney. Os heróis de cada filme, que no derradeiro momento colocariam o fim merecido ao vilão e desposariam a doce e amável princesa. Os meus príncipes favoritos eram o Eric, da A Pequena Sereia e o Filipe, da A Bela Adormecida, com uma acentuada preferência pelo Eric, não fosse a A Pequena Sereia o meu filme de animação preferido de todos os tempos. Gostava das características físicas do Filipe, mas sentia uma empatia pelo Eric. Sonhava, no fundo, que também eu poderia encontrar alguém assim, com as mesmas características, acreditando - inocente criança - que a vida se assemelha aos contos de fadas. Tudo me levou a procurar, já mais crescido, no básico e no secundário, alguém como os heróis com quem sonhava.
Aprendi que não existem. Vivem nas nossas cassetes e dvd's e, mais tarde, na nossa memória. Alguns conseguirão tornar as suas vidas o mais parecidas possíveis com um conto de fadas. Nem todos. Outros, terão de aguardar pelo melhor que já não vem, o real, quando a imagem se apaga e a vida regressa.

5 de agosto de 2011

Complexo de Plutão.


É difícil quando, de um momento para o outro, deixamos de sentir aquele carinho tão reconfortante. Descemos de nível, sofremos um atentado àquilo que éramos, a tudo o que pensávamos significar. Um dia somos tudo; no dia seguinte nada somos. Passamos de imprescindíveis a dispensáveis, como se valêssemos menos do que as trinta moedas de prata. Se todos soubessem de que cada um tem o seu valor, cada um tem algo que jamais será encontrado na mais perfeita procura.
Olho a noite e sinto o calor que já foi meu. Sinto e vejo - com nitidez - aquilo que vivi, anos atrás, quando tudo parecia perfeito. A perfeição só existe quando sentimos o sabor amargo da derrota, do pesar, o fel dos dias que dificulta a existência. Não queiram voltar atrás, dizem, aqueles que nada têm, atrás, que valha a pena.
Eu vivo, também, no passado.

1 de agosto de 2011

Até já, Papá.


Parece que foi ontem que tudo aconteceu. No fundo, pouco mudou na minha forma de ser desde que te foste embora. O meu âmago é igual, talvez os pensamentos sejam menos obtusos e a consciência mais nítida do que outrora.
Continuo a guardar - e a rever - os álbuns fotográficos de anos e anos que me pareceram felizes, pese embora germinasse, em nós, a semente da discórdia. Foram anos de felicidade, vividos e sentidos como se perdurassem para sempre, não esgotados na sua plenitude, pois a certeza de que seriam infinitos era um ponto assente. Os sorrisos eram verdadeiros, o amor também, mas aprende-se, com o tempo, de que nada é para sempre e que todas as certezas são refutáveis.
O amor também pode ser um pedaço perecível de coisa nenhuma. Acontece por todo o lado, esgota-se, acaba.
Continuo a sentir os aromas dos teus perfumes, a textura sedosa dos teus fatos, o brilho dos teus sapatos escolhidos cuidadosamente e ao pormenor.
Concebi um intervalo de tempo entre o passado e o presente, transformando esta lacuna numa breve despedida. Apenas uma despedida, breve, muito breve, como as que trocávamos por vezes de manhã. A despedida pressupunha o teu regresso, assim como eu, hoje e amanhã, pressuponho o teu amor.