29 de janeiro de 2016

O multiculturalismo, as suas manifestações e decorrências.


    Fomos, enquanto europeus, partilhando uma matriz cultural comum, surpreendidos com as notícias que nos chegaram de Itália. As autoridades italianas, num assomo servilista, resolveram cobrir algumas estátuas que pudessem ser consideradas chocantes ou ofensivas ao líder iraniano, o seu Presidente, Hassan Rouhani, numa visita que efectuou a Roma por forma a se encontrar com o Primeiro-Ministro italiano.

    A atitude provocou reacções diversas. Itália é uma referência, território de onde emergiu um dos maiores impérios que a humanidade conheceu, que se espalhou pela Europa, pelo Médio Oriente e pelo norte de África, propagando a sua hegemonia cultural e linguística, da qual somos herdeiros. A sua arte, pelos séculos, inspirou artistas oriundos de toda parte. No Renascimento, assistimos a uma recuperação do legado latino que se havia perdido. Actualmente, pela arquitectura, pela literatura, pela filosofia, pela política, pela escultura, pela música, designadamente, encontramos expressões do espólio romano, primeiramente, e das inúmeras realidades políticas que dominaram o território que hoje compreende a Itália, unificada no século XIX.

      Com efeito, a Europa demonstra a sua tolerância, a sua capacidade quase inumana de ceder. Impelidos por uma necessidade de redenção dos pecados de um passado não tão longínquo assim, a tudo somos complacentes, permissivos.
      Há, porém, um factor que explicará melhor esta opção das autoridades italianas: os negócios de somas avultadas, de milhões de euros, que estiveram subjacentes à visita do Presidente do Irão. Após o levantamento das sanções económicas impostas ao país islâmico, pela ONU, alguns Estados europeus apressaram-se a procurar vantagens para as suas empresas.


      Adversamente, os fluxos de refugiados do Médio Oriente confirmam o interesse que o Velho Continente continua a suscitar nas populações. Os casos que nos chegam através dos media relançam o debate em torno da convivência pacífica de culturas tão distintas entre si. Os movimentos de extrema-direita agudizam-se, recrudescem o seu discurso odioso, incentivando à revolta. A Dinamarca, insuspeita de ser um Estado intolerante, aprovou um pacote legislativo que contempla o confisco de bens dos refugiados, medida que está a ser severamente criticada pelos seus parceiros europeus, onde Portugal se inclui. Mais a norte, a Suécia prepara uma expulsão massiva de refugiados, como natural consequência da rejeição dos pedidos de asilo.

       Bem como salientei há meses, os países europeus desvalorizaram o impacto que teria, nos respectivos tecidos sociais e económicos, a chegada de milhares de pessoas em vagas descontroladas. Aos tradicionais discursos de boa-vontade e de hospitalidade, seguiu-se o confronto com a nossa incapacidade de integrar costumes e comportamentos tão próprios, embora nos comprometêssemos em respeitá-los.
      Na generalidade dos Estados islâmicos, não há leis que protejam, com eficácia, as singularidades religiosas e culturais das minorias. Desconhece-se a separação do Islão do Estado. Direito e Corão misturam-se. Naturalmente, as pessoas que provêm desses países não compreendem o caminho que trilhámos e que culminou na tolerância e na demarcação bem clara do papel que a religião deve assumir na sociedade. Os conflitos são, nesse sentido, uma inevitabilidade.

         Mantemo-nos politicamente correctos, flexíveis, transigentes. Não exigimos reciprocidade. 
       Confundimos respeito com subserviência, cordialidade com submissão. Trocamos valores por dinheiro.
         Estamos sem rumo, e perdemos progressivamente o controlo das nossas acções.

25 de janeiro de 2016

As Presidenciais (V) - A análise ao acto eleitoral.


   Quase numa capacidade premonitória, previ que este seria o último artigo dedicado às eleições presidenciais propriamente ditas, sem prejuízo de algumas análises posteriores aos desafios que o novo Presidente da República terá pela frente e à sua actuação. Em todo o caso, a actual publicação sela o capítulo que de certo modo dediquei ao acto eleitoral que hoje finda.

       Em primeiro lugar, uma retratação pública: afirmei que a eleição seria disputada por Marcelo Rebelo de Sousa, António Sampaio da Nóvoa e Maria de Belém, subestimando os demais candidatos. Marisa Matias, a candidata do Bloco de Esquerda, obteve um resultado expressivo, ficando em terceiro lugar. O mesmo para Tino de Rans, que em alguns distritos superou Maria de Belém, uma das candidatas do PS, e Edgar Silva, o candidato do PCP. Posso ser obstinado nas minhas convicções e na sua defesa, mas sou o suficiente humilde para reconhecer quando erro. E errei.

       Vamos aos acontecimentos que marcaram o dia de ontem. Ao cair da noite, constatei que a sede de campanha do Professor Marcelo Rebelo de Sousa, em Belém, deu lugar a um palco improvisado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, onde familiares, amigos e apoiantes o esperavam. Como referi aquando de uma entrevista sua na referida instituição de ensino superior, não gostei. Aprendi, desde cedo, que devemos dar à política o que é da política, e ao direito o que é do direito. O átrio de uma faculdade, com a história da Faculdade de Direito, transformado em palco eleitoral é cenário dantesco que, decerto, gerará opiniões díspares.

       A abstenção foi elevadíssima, vindo ao encontro das expectativas: há, com efeito, um divórcio dos cidadãos com a política, no geral, e com as eleições presidenciais, em particular. Exceptuando nas reeleições presidenciais, onde, tendencialmente, a afluência às urnas é menor, nunca tivemos um índice tão elevado de abstenção. Foi, uma vez mais, a indisputável vencedora.

        Algumas ilações que podemos inferir no imediato: o mapa do país evidencia que o Professor Marcelo ganhou em todos os distritos. Foi eleito à primeira volta, o que lhe dá uma incontestável legitimidade. O PS não teve um candidato ao qual pudesse dar o seu veemente apoio, o que prejudicou o partido no acto eleitoral presidencial. As eleições presidenciais são mais das pessoas do que dos partidos, mas os partidos políticos acabam por se envolver. Sampaio da Nóvoa falhou no seu propósito: disputar com Marcelo Rebelo de Sousa uma segunda volta. Ficou, ainda assim, com um resultado superior ao de Manuel Alegre nas últimas presidenciais. Maria de Belém teve um resultado catastrófico. Edgar Silva pode juntar-se à dirigente socialista, tendo perdido em bastiões históricos do PCP, como Beja. O momento é propício, aliás, para que o PCP retire algumas leituras políticas deste mau resultado. Ao que se deverá. Eu poderia aventar uma possibilidade, mas deixo o mesmo ao critério dos comunistas. Foi o pior resultado do PCP numas presidenciais. O Bloco de Esquerda manteve o suporte já vindo das legislativas. Obteve um bom resultado. Marisa Matias, tão depreciada, inclusive por mim, colocou-se ao lado de Sampaio da Nóvoa. Mérito da candidata, do seu partido, claro está, e algum demérito dos candidatos do espectro político do PS, certamente. Uma palavra para Tino de Rans: em alguns distritos, como o Porto, nomeadamente, ficou acima de Maria de Belém e de Edgar Silva. No cômputo final, ficou em sexto lugar, seguindo-se a Edgar Silva por umas décimas. Edgar Silva logrou um segundo lugar na Região Autónoma da Madeira, sua terra natal.

          Assisti aos discursos políticos. Maria de Belém antecipou-se e assumiu a derrota, felicitando, eu diria que precocemente, atendendo à hora, o Professor Marcelo Rebelo de Sousa. Edgar Silva, por seu lado, teve alguma dificuldade em personalizar em si o mau resultado do PCP. Falou vagamente nas eleições. Considero a sua intervenção muito vaga, imprecisa. Marisa Matias foi recebida entusiasticamente na sua sede de campanha, o Coliseu do Porto. Fez sucessivas referências ao resultado que colheu para o Bloco de Esquerda, afirmando-o, definitivamente, como uma das forças políticas dominantes do momento.
       Gostei do discurso do Professor Sampaio da Nóvoa. Moderado, realista, esclarecedor. Eu diria até humilde. Recusa fazer um aproveitamento político dos votos que ascendem a mais de um milhão e sessenta mil. Disse, peremptoriamente, que voltará à sua actividade anterior à vida política, não prescindindo da intervenção cívica pontual, que sempre demonstrou, nas suas palavras.

           A noite não terminaria, contudo, sem as reacções dos líderes partidários. De uma ou de outra forma, todos felicitaram o Presidente eleito (não empossado, todavia). Notei algum desconforto em António Costa, naturalmente, e em Pedro Passos Coelho. Saliente-se que o Professor Marcelo Rebelo de Sousa não era o candidato de Pedro Passos Coelho. O líder do PSD não teve outra alternativa senão apoiar o Professor, na sequência da dificuldade de qualquer outra figura da área política do PSD em avançar.

          O Professor (antes de António de Costa, curiosamente...) fez o tão aguardado discurso da noite. Uma exposição de consensos. Após repetir a velha fórmula, que remonta a Mário Soares, de querer que a sua Presidência seja a de todos os portugueses, o Professor mostra-se capaz de gerar pontes, diálogos, de pacificar a sociedade portuguesa. Existindo para colaborar e trabalhar em prol do país, na recuperação. Palavras de esperança e de confiança no futuro.
            Não esperaria nada mais do que o bom senso que revelou no discurso da vitória. Não me desapontou.

          O Professor Marcelo Rebelo de Sousa tomará posse em Março. Como constitucionalista, acredito que cumprirá escrupulosamente a Lei Fundamental. Não deixará de ser quem é - cada um terá o seu estilo pessoal. Um pequeno facto que gostaria de salientar: mencionou o Papa Francisco. Não registei um tom excessivamente programático nas suas palavras, considerando, não obstante, que o pendor conservador estará presente no mandato. Confio que o discurso de tomada de posse desvende algumas linhas orientadoras do que serão os próximos cinco anos desta recém-eleita Presidência.

20 de janeiro de 2016

As Presidenciais (IV).


   A RTP agendou um derradeiro debate entre todos os candidatos presidenciais. Ontem, terça-feira, pudemos assistir ao confronto. O dia coincidiu, tragicamente, com a morte súbita de um histórico socialista, legislador exímio do nosso ordenamento nos primeiros anos da democracia, ex-Presidente da Assembleia da República e Presidente Honorário do Partido Socialista, Dr. António de Almeida Santos. Maria de Belém, uma das candidatas que havia confirmado a sua presença, por respeito e manifesta consternação pela morte de um amigo e apoiante, decidiu não comparecer. Ao todo, portanto, estiveram presentes nove candidatos.

      Não irei esmiuçar o conteúdo das intervenções de cada um. Um debate amplo, com duração superior a duas horas, exigiria páginas de comentário político. Não o farei. A saúde não mo permite - nos últimos dias, tenho sentido certa taquicardia, tonturas. Farei uma análise alargada, ainda assim bastante pormenorizada.

    Desconhecia a conduta de certos candidatos. O debate ficou marcado por algumas acusações pessoais, dirigidas a Marcelo Rebelo de Sousa, Sampaio da Nóvoa, Marisa Matias e Paulo de Morais, encabeçadas por Cândido Ferreira. Não enobrece o debate político. Levantar suspeitas sobre o currículo de determinados candidatos, o cumprimento ou não do serviço militar e a apresentação ao Tribunal Constitucional da declaração de rendimentos e de património são calúnias que mancham qualquer campanha.
      A maioria, de forma veemente, criticou a decisão do Tribunal Constitucional relativa às subvenções vitalícias. E bem, a meu ver. Igual reacção, unânime e positiva, à reposição das trinta e cinco horas de trabalho semanal na função pública. Tino de Rans defende o alargamento para o sector privado, bem como Cândido Ferreira. Sampaio da Nóvoa e Marcelo Rebelo de Sousa consideram a reposição justa.

      Marcelo Rebelo de Sousa foi, uma vez mais, criticado por alegadas contradições no seu discurso, ora elogiando a contenção nos custos das campanhas, ora criticando alguns candidatos por receberem donativos de privados. Sampaio da Nóvoa aludiu a essas aparentes oscilações.

       Marisa Matias e Henrique Neto foram coerentes. Marisa Matias, por seu lado, desafiou Paulo de Morais a mencionar que titulares de cargos políticos da sua área considera corruptos, na sequência de declarações suas que visaram toda a classe política, conspurcando-a. Paulo de Morais, aliás, responde num processo por difamação a Luís Filipe Menezes. A candidata do Bloco de Esquerda referiu ainda a sua participação em manifestos contra a corrupção e contestou a celeuma que se criou em torno do apoio dos partidos aos candidatos. Assumindo a retaguarda do Bloco de Esquerda, expôs a ideia de que todos os ex-Presidentes e o ainda Presidente em exercício de funções tiveram apoios partidários nas candidaturas, e entre eles houve bons e maus Chefes de Estado. Para Henrique Neto, um candidato deve assumir o que pensa. Não o fazendo, mente «por omissão». Destacou episódios de corrupção que considera «vergonhosos».

       Passando ao candidato do PCP, Edgar Silva, gostei da sua proficiência ao discorrer sobre os direitos sociais. Demonstrou empenho, uma preparação anterior que em muito o beneficiou. Distendeu-se para além do espectro eleitoral do PCP, esperando, pelo que disse, votos de cidadãos que tradicionalmente não participam eleitoralmente pelo partido a que pertence.

        O momento cómico da noite foi protagonizado por Tino de Rans, que roubou gargalhadas no público pela sua descontracção e pelo desconhecimento às perguntas que lhe foram feitas. Manifestamente em desvantagem, o candidato não se conseguiu assumir como uma alternativa credível. Acredito que o seu jeito conquiste uma parcela do eleitorado no próximo domingo.

        Não tenho nada a dizer quanto a Jorge Sequeira. Não conhecia e assumo, culpa minha, certamente, que o debate não teve a utilidade de me dar a conhecer o senhor e/ou o seu ideário.
   
      Fica o registo daquilo que considero essencial das intervenções de cada um dos oradores. Demais análises e o debate propriamente dito, inclusive, estarão disponíveis online. Não creio que tenha havido um vencedor ou uma vencedora. Houve, claramente, isso sim, um alvo comum dos candidatos com menos visibilidade pública: Marcelo Rebelo de Sousa. Eu diria que o propósito de todos será evitar uma vitória à primeira volta. Confirmou-se a revolta de Marisa Matias. Marcelo e Sampaio da Nóvoa como que se diluíram entre os sete oponentes. O Professor (Marcelo) não quis incitar às tricas políticas. Sorriu, comunicou. Queria ainda salientar uma característica sua que tanto admiro: a humildade. Sendo, que o é, uma sumidade do Direito, debateu com serenidade, como se estivesse entre pares.

       Será, com toda a certeza, o penúltimo artigo que dedicarei às eleições presidenciais. Considerei pertinente, contudo, esta publicação, pelo carácter esclarecedor que pretendi imprimir nas minhas palavras.

16 de janeiro de 2016

Completa a Frase.


    O Mikel, simpaticamente, nomeou o meu blogue para participar num desafio. Enfim, os desafios têm sido mais que muitos nas últimas semanas. Por respeito e consideração a quem mos atribui, acabo por participar. Até gosto. Já referi. É um sentimento meio despropositado, quem sabe, mas fico sempre agradecido por se lembrarem de mim. 
     Basicamente, temos de completar as frases que se seguem com, e cito, «a primeira coisa que nos vier à cabeça». Uma publicação para descontrair, que adivinho semanas jurídicas e politizadas por aqui.

Sou muito... complicado;

Não suporto... ser contrariado;

Eu nunca... me sinto verdadeiramente bem;

Já me zanguei... com algumas pessoas, e por motivos fúteis;

Quando era criança... era extremamente possessivo com os meus brinquedos, com a atenção dos adultos; embirrante, mimado e chato;

Morro de medo... de perder a razão, com a idade, ou de ficar muito só;

Sempre gostei... de ler, de escrever, de procurar saber mais;

Se eu pudesse... voltaria atrás e mudaria muito;

Fico feliz quando... o que é isso?;

Se pudesse voltar no tempo... teria convencido a mãe a tomar umas decisões...;

Quero viajar para... uma imensidão de países que não conheço;

Eu preciso... de paz;

Não gosto de ver... gente estúpida. Provoca-me ansiedade;

      Não irei passar o desafio, como é habitual. E tenho ideia de que já correu a maioria dos blogues que consta da minha lista. Quem quiser, pois que pegue, e faça. :)

12 de janeiro de 2016

David Bowie (1947-2016).


     O mundo acordou, ontem, com a estranha notícia da morte de um dos maiores vultos do mainstream. David Bowie falecera após dezoito meses de luta contra um cancro. O obituário é inusitado. Ninguém sabia que Bowie estava doente, muito doente. Que a enfermidade maligna corroía o seu corpo. Bowie, entretanto, sabia-o.

   Falar de David Bowie reveste-se de certa dificuldade adicional quando não somos fãs confessos e seguidores atentos da sua carreira. Encaixar-me-ei, como a maioria, no lote extenso de homens e mulheres que admiravam o homem enquanto artista que se reinventava, que despudoradamente enfrentou os preconceitos da sua época; um cantor, compositor e actor que embebeu tendências e fases, o que lhe valeria, para a posterioridade, a alcunha de camaleão.

      Bowie negou-nos a despedida. Não pudemos vê-lo ir partindo, como sucedeu com Freddie Mercuy (1946-1991), com quem fez uma das célebres parcerias da história da música. Impossível esquecer Under Pressure (1981). Até a sua morte foi arte. Todo ele era arte. Três anos depois de nos ter presenteado com The Next Day, surgia Blackstar, o último álbum, lançado no mercado meros dois dias antes do seu falecimento. No single "Lazarus", Bowie dizia-nos adeus através da expressão corporal de sofrimento, dos objectos carregados de simbolismo, do negro e das sombras predominantes no vídeo que acompanha a canção. A cama de hospital, a debilidade física, o cadáver em decomposição que surge num rompante enquanto David se encontra à secretária e a morte espreita por baixo da cama, após ele mesmo ter estado deitado no seu leito. O conteúdo da letra completa a mensagem evidente. Um álbum aclamado unanimemente pela crítica, e que pretendo adquirir o quanto antes.

     O legado de David Bowie é uma evidência. De Madonna a Lady Gaga, muitos foram os que se inspiraram na obra musical e estética do artista que agora nos deixa. Desde o seu primeiro trabalho discográfico, de 1967, de título homónimo, Bowie, primeiramente David Jones, o seu sobrenome legal, que refutou para evitar confusões com outro colega, percorreu cinco décadas de criação incessante de personagens e estilos, sem que nunca tivéssemos a oportunidade de o encontrar desprovido de inspiração, mergulhado no tédio ou na apatia até expectáveis em carreiras tão longevas. O sentimento de orfandade, que resta, é uma certeza.

        Até sempre, David Bowie!

10 de janeiro de 2016

As Presidenciais (III).


   Estamos a exactamente quinze dias das eleições presidenciais. Os debates televisivos, por sua vez, já começaram. Muitos se têm acusado, mutuamente, de «falta de coerência». Como pauto a minha conduta pela coerência, disse-o, há uns tempos, num artigo também sobre estas eleições, que a disputa é entre os candidatos Marcelo Rebelo de Sousa, Sampaio da Nóvoa e Maria de Belém. Nesse sentido, foi a estes debates que assisti e é sobre eles que venho falar. Os demais, se é que os houve, presumo que sim, e com todo o respeito pelas pessoas envolvidas e pelos partidos que representam, são meros fait divers. As eleições não se ganham nos extremos; ganham-se ao centro.

   Não querendo que pareça um ataque pessoal, que não o é, é natural e até saudável que tenhamos candidatos que caem no nosso apreço e outros que são alvo das nossas críticas políticas. Já o disse, não o queria repetir: conheço pessoalmente o Senhor Professor Marcelo Rebelo de Sousa, tenho sincera estima e consideração por ele. Mais, certamente, do que muitos dos que dizem que o defendem e apoiam. Discordo do Senhor Professor politicamente. Estamos em campos diametralmente opostos. Não releva se é católico, se é conservador. Lido bastante bem com isso. Tenho familiares conservadores, estudei em estabelecimentos conservadores, formei-me numa faculdade conservadora, contacto diariamente com pessoas conservadoras. Quem é convicto nas suas posições, não teme o confronto. Nunca fui aluno do Senhor Professor, nunca assisti a uma aula sua, já tive alguns momentos de cavaqueira com ele, como outros alunos. Tão-pouco estudei pelos seus manuais. Fui aluno, em contrapartida, de um Professor de Direito Constitucional ainda mais religioso. O mais conservador daquela instituição de ensino superior. Um dos meus maiores mestres, posto que o Direito Constitucional é uma das minhas áreas, ex aequo com o Direito Penal (que vira a seguir), dilectas. Guardo maravilhosas recordações desses tempos. Que eu sei fazer as necessárias distinções.

      O aparte está feito, e não tornarei a tocar no assunto. Centremo-nos nos debates. Assisti a três debates muito crispados. Houve o que é lamentável: ataques pessoais. Falou-se muito no passado e pouco no futuro. No debate entre Sampaio da Nóvoa e Marcelo Rebelo de Sousa, é inevitável fazermos a comparação entre um académico brilhante, político, e um académico com alguma consideração no meio. Dei por mim, frequentemente, a anuir perante as afirmações do Senhor Professor. Sampaio da Nóvoa revelou uma certa desorientação quanto às competências do Chefe de Estado no ordenamento português, ao demonstrar querer ser um Presidente com um pseudo-programa de Governo (cito: «Eu não vou deixar a política em Portugal nas mãos dos mesmos»). Não pode. Não deve. Um Presidente não governa. Clara de Sousa, moderadora, alertou-o. Sampaio da Nóvoa esteve mal aí, e o Senhor Professor, ademais constitucionalista, deu-lhe algumas lições. Fatalmente, Sampaio da Nóvoa aludiu às contradições do Professor Marcelo, que são várias, e às quais eu também teci comentários. Por seu lado, um Presidente não carece necessariamente de ser um político. O Professor valeu-se de alguma experiência política, de ter estado no centro político de decisão em determinados momentos da sua vida, para, munindo-se disso, diminuir o seu adversário perante o eleitorado. Ora, eu diria que os portugueses querem menos políticos e mais pessoas creditadas. Terminando, Sampaio da Nóvoa mencionou os ex-Presidentes que o apoiam. Era evitável. O Professor respondeu-lhe, e bem, que estava sozinho na campanha, pese embora o apoio de bastidores do PSD e do CDS, como o Professor Sampaio tem do PS, maioritariamente. Conselhos de ex-Presidentes, a meu ver, não legitimam candidatos. Sampaio da Nóvoa deveria furtar-se às sucessivas referências a uma facção de "tempo novo", que anuncia, contra o "tempo velho". Se vier a ser Presidente, sê-lo-á de todos os portugueses, dos que têm determinada orientação política e dos que têm outra. Deve gerar uniões, consensos, e não divisões.

       No segundo debate, a intriga agudizou-se. Marcelo Rebelo de Sousa e Maria de Belém conhecem-se dos tempos em que ambos participaram activamente na vida política, quer no Governo, quer na oposição, e tivemos conhecimento, todos, dos esquemas que estiveram na base, nomeadamente, da aprovação de determinados Orçamentos de Estado. Adiante. Ambos perderam demasiado tempo com as tricas políticas, o estilo pessoal de cada um. Num insólito, analisaram-se psicologicamente.
      A Dra. Maria de Belém é uma senhora. Educada, sóbria, com sentido de Estado. Tem o tal passado político que tanta confusão, a sua ausência, aliás, causa ao Professor Marcelo. É uma senhora de causas. Minou um pouco as suas intervenções no debate com o diz-que-disse, o que a terá prejudicado. Tem apoiantes no Partido Socialista. Não do Presidente do seu partido, Carlos César. Ainda assim, determinada, avançou. Não gostei nada, repito, nada, do tom arrogante com que o Senhor Professor se referiu às «notinhas» da sua opositora no debate. Cada um tem o seu estilo, e são sobejamente conhecidas as capacidades do Senhor Professor. Maria de Belém mostrou trabalho, afinco, dedicação. Preparou-se, esquivando-se apenas ao confronto espontâneo, conforme o circunstancialismo, no qual o Professor é mestre. De igual modo, a ida de Marcelo Rebelo de Sousa ao Hospital de São José, aquando da morte do jovem por falta de equipa de neurocirurgia, pareceu-me claramente uma instrumentalização, como o foi a sua entrevista na Faculdade de Direito, a que já fiz referência em outro artigo. Não vejo, ainda, a necessidade que o Professor tem de, simultaneamente, associar-se ao anterior executivo, quando lhe é útil, e distanciar-se, quando lhe é igualmente útil. Recorda-me da sua dificuldade em assumir-se como político, no início da saga presidencial; agora, inversamente, critica quem não é político. Contradições. Maria de Belém tem a sua candidatura, não fracturou o PS. Fez bem em propor-se aos portugueses. E o Professor quis dinamitar a candidatura da Dra. Maria de Belém pela ex-Ministra não reunir em si o apoio entusiástico do Partido Socialista. Esteve mal, quando se proclama um candidato independente.

         O terceiro debate foi mais regrado. Ambos, Sampaio da Nóvoa e Maria de Belém, reconheceram que o seu principal adversário é Marcelo Rebelo de Sousa. A Dra. Maria de Belém expôs as suas causas, o seu pretenso conhecimento das instituições e da realidade do país. Por sua vez, foi confrontada por Sampaio da Nóvoa por, alegadamente, ter duvidado da capacidade do PS em conseguir acordos com os partidos à sua esquerda, ficando associada à anterior liderança de António José Seguro. A admitir essas afirmações como verdadeiras, não vejo em que termos poderá a candidatura de Maria de Belém ficar ameaçada de falta de independência. Em sentido inverso, não ter o apoio maioritário do PS fortalece-a. Trouxe-se novamente à colação o "tempo novo" de Sampaio da Nóvoa e a sua ausência do debate político por décadas. Temo que o intervencionismo desmedido, que prevejo numa Presidência de Marcelo Rebelo de Sousa, possa também ter lugar se Sampaio da Nóvoa vencer o acto eleitoral. Há alguma confusão entre estar presente e ingerir no quotidiano político do país. Mais contido, Sampaio da Nóvoa procurou evitar revelar esse intervencionismo, que salientou no debate com o Professor Marcelo. O cumprimento da Constituição foi um tema muito presente. Maria de Belém não vê lugar para se ser um ou uma Presidente diferente com esta Lei Fundamental que temos; Sampaio da Nóvoa defende-se, dizendo que o que pretende trazer para a Presidência da República é exactamente o que a Constituição prevê. Recusa a omitir-se dos seus deveres se for eleito. Nóvoa lembrou ainda que Maria de Belém não pediu a fiscalização sucessiva, ao Tribunal Constitucional, do Orçamento de Estado de 2012. Teme, portanto, nas suas palavras, que Maria de Belém, Presidente, deixe nas mãos de outros o que lhe compete fazer. Sampaio da Nóvoa tem o apoio do LIVRE, do MRPP e de boa parte do PS. No entanto, frequentemente relembra a independência da sua candidatura, procurando impor na Dra. Maria de Belém o ónus de demonstrar que a sua, efectivamente, por ser militante do PS há mais de quarenta anos, é independente. A dela, que nem reúne consenso. Depois, limitaram-se a trocar as boas intenções quanto à luta contra a precariedade, a pobreza infantil, e ao estímulo ao emprego e ao desenvolvimento científico, com críticas de Maria de Belém a declarações de Sampaio da Nóvoa que visaram, em 2011, a actuação de Mariano Gago, já falecido.

       Em boa medida, o exercício do cargo de Presidente da República, sem prejuízo dos poderes que a Constituição lhe atribui, evidencia uma magistratura de influência que o titular não deve descurar. E se o Presidente não deve intrometer-se no panorama político-legislativo, pode sempre exprimir uma palavra quando achar oportuno fazê-lo. O actual Presidente cessante foi omisso quando, pelo contrário, todos esperavam da sua parte uma postura firme.

         Os debates tiveram, quanto a mim, uma utilidade: reforçaram os motivos que de sempre avancei para não votar em alguns candidatos, e suscitaram dúvidas em relação a outros. Ainda não decidi. Mas defini o meu leque, que já havia delimitado, a bem ver. Digamos que os próximos dias revelar-me-ão em quem votar.
         Não sei se voltarei a escrever sobre as Presidenciais. Talvez o faça num apelo ao voto. Entretanto, achei oportuno publicar esta análise, pedindo desde já desculpas pela extensão da mesma.

6 de janeiro de 2016

A fuga dos hebreus no Êxodo.


   Recordo-me, em menino, de os pais me ofertarem um atlas das múmias. Era enorme, quase da minha altura. Dispunha-o ao longo da cama, sentando-me de lado. Com cuidado, folheava as páginas duras de cartão colorido. Ainda o tenho, guardado algures pela arrecadação da avó. Não fiquei apaixonado pelo Antigo Egipto, não tanto quanto pelas Idades Moderna e Contemporânea, mas curioso o suficiente para me interessar.

    Ramsés II foi um dos maiores faraós do Novo Império. Filho de Seti I, casou com a magnífica Nefertari. Ficou associado, indelevelmente, ao episódio bíblico do Êxodo, segundo o qual Deus - o Deus de Abrãao, de Isaac e de Jacob - prometeu a Moisés (príncipe do Egipto, colhido das águas do Nilo pela filha de Ramsés I, Bithia), no Monte Sinai, libertar o povo hebraico do jugo egípcio. O coração do Faraó mostrou-se endurecido pelo Senhor, que o sujeitou às famosas dez pragas, sendo que, à última, - a morte dos primogénitos - Ramsés, O Grande, viu-se obrigado a deixar partir Israel.

     Não há qualquer prova arqueológica que demonstre, sem equívocos, que Ramsés II foi, de facto, o homem que liderava os destinos do Egipto aquando da libertação dos hebreus. Todavia, ficou para a posterioridade, e muito para tal ajudou Hollywood, relacionado ao Êxodo judaico.

      Já no Monte Sinai, Moisés subiu ao Senhor e recebeu as Tábuas do Testemunho - os Dez Mandamentos, a meio de leis que regularam as condutas do povo e de instruções várias, incluindo a feitura da Arca do Testemunho, que viria a desaparecer, pelos séculos, após permanecer em mãos dos sacerdotes e dos inimigos de Israel. A Arca continha as Tábuas da Lei, primeiramente, a vara sagrada de Aarão, irmão de Moisés, objecto que serviu de intermédio para que o poder de Deus se manifestasse através deste último, e demais utensílios.

       Vendo, pois, que Moisés tardava, o povo obrigou Aarão a fazer para si um bezerro de ouro. O Senhor não consumiu o povo a pedido de Moisés, que, descendo, destruiu o ídolo e mandou executar os idólatras. Ulteriormente, Moisés receberia de Deus novas tábuas.


      Numa análise pelo Pentateuco, não é difícil perceber que Deus manifestava ira, arrependimento, cólera. Não diria que era vingativo - quem sou eu para sondar os Seus desígnios?, mas um Deus diferente daquele que nos trouxeram os Evangelhos e as Epístolas do Novo Testamento. O Deus de Moisés revela-se perante um povo obstinado, «inclinado ao mal», nas palavras de Aarão (Êxodo 32: 22).

       O maior legado do Êxodo foi, certamente, o Decálogo, inspirando as leis dos homens nos milénios seguintes.

2 de janeiro de 2016

Dois em um.


    O início de 2016, ontem, coincidiu com as comemorações do trigésimo aniversário de adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia. Junto a Espanha, o nosso país completou a sua integração no conjunto europeu, num processo desencadeado em 1977, três anos após a Revolução de Abril. Era, com efeito (e até os GNR o cantavam), o culminar de uma transfiguração de país rural, com elevados índices de analfabetismo e de mortalidade infantil, para uma nação «da Europa», de primeiro mundo. A assinatura do Tratado de Adesão teve lugar em 1985, no Mosteiro dos Jerónimos. No Primeiro de Janeiro de 1986, Portugal amanhecia na CEE.

      Trinta anos volvidos, não podemos ignorar as vantagens que representou. Nos anos seguintes, Portugal conheceu um desenvolvimento notório, quer ao nível das infraestruturas, quer na melhoria das condições de salubridade; no acesso aos cuidados de saúde, com repercussões no aumento da esperança de vida; na área da educação, sem descurar o desenvolvimento económico. Dez anos de crescimento, que proporcionaram a Cavaco Silva duas maiorias absolutas. Não obstante, o que subjaz à construção europeia, o espírito de cooperação e de solidariedade entre os Estados-membros, perdeu-se na letra dos Tratados que regulam a UE (surgida apenas após 1992, com o Tratado de Maastricht). Presentemente, a União Europeia serve propósitos duvidosos. Desconhece-se o equilíbrio, a igualdade entre os Estados. Há um domínio visível do norte sobre o sul; de potências como a Alemanha, sobretudo, que lidera os destinos da União, enfraquecendo as instituições europeias, como o Parlamento ou a Comissão, cujas competências cedem aos interesses de Berlim.
       O caminho que a União tem percorrido nem sempre tem sido o mais justo. Começou-se, erradamente, a meu ver, pela união económica, mais tarde monetária, preterindo-se a união cultural, afectiva. A Europa, após trinta anos, ainda se assemelha a uma realidade distante. Não há sentimento de pertença. Portugal, e Espanha também, não deve ficar refém dos parceiros europeus. Temos um legado cultural pelo mundo. Podemos cimentar plataformas adicionais com a América e com África, sem receios. Como venho defendendo, talvez aí esteja a resposta que nos liberte deste impasse, do marasmo, mantendo-se, claro está, a participação activa na União. Muito do que somos é devido, mal ou bem, à UE.


     Não queria começar o ano abstendo-me de uma palavra quanto à designada Lei do Piropo. Uma designação que, presumo, surgiu na tendenciosa e populista Comunicação Social, induzindo os cidadãos em erro. Importa adicionar certos esclarecimentos. O que temos desde Agosto, com o aditamento ao artigo 170.º e o aditamento e agravamento da moldura penal no artigo 171.º do Código Penal, é uma criminalização/agravação dos comentários/propostas que contenham teor obsceno, lascivo, de importunação sexual, passando a tentativa a ser punível se a importunação incidir sobre um menor de 14 anos, inclusive. Sequer temos uma tipificação autónoma. 
    Ora, tudo isso está em causa aqui. Temos bens jurídicos com dignidade penal, a liberdade e a autodeterminação sexual, e comportamentos claramente desvaliosos, exigindo-se uma tutela penal que proteja a livre realização da personalidade de cada um dos indivíduos. A lei existe para mulheres e para homens, considerando que a mulher é, de facto, a maior visada com esta decisão do legislador ordinário. E o crime de importunação sexual já existia.
      Quando soube deste aditamento e do agravamento, fui contido e evitei perfilhar qualquer uma das orientações: as favoráveis e as desfavoráveis. Enquanto penalista, não posso, em caso algum, ceder ao populismo de quem defende a intervenção do direito penal por bagatelas; todavia, analisando o objecto da lei e observando a ratio do Direito Penal, concluo que o legislador esteve bem, pelos motivos que enunciei acima. Comentários e propostas com determinado teor podem, efectivamente, provocar constrangimentos; atentar contra a liberdade das pessoas, a sua segurança, o seu livre desenvolvimento. Tenho reservas, isso sim, quanto à adequação. Será que conseguiremos prevenir as condutas agora criminalizadas? Por outras palavras, terá a lei força suficiente para desmotivar os potenciais autores? Tenho reservas quanto a saber se a sanção penal conseguirá fazer cumprir as políticas de prevenção.

       Posto isto, o galanteio, o comentário educado, simpático, minhas senhoras e meus senhores, é livre. Ninguém tem nada contra os meandros de sedução, que sempre existiram e continuarão a existir. O que se deixou de permitir são precisamente as condutas desvaliosas que lesem determinados bens jurídicos protegidos. O conselho que posso dar: sejam educados. Que a consciência sirva de guia. O velhinho dito do: " Não faças aos outros o que não gostarias que te fizessem a ti. ", continua a ser um excelente limite à nossa acção.

* Houve criminalizações autónomas e aditamentos ao Código Penal e a demais legislação extravagante, o que não é oportuno tratar aqui por versarem sobre matérias distintas.