26 de fevereiro de 2022

Crónica de uma guerra anunciada.


   Nada me leva a favor dos EUA e do seu imperialismo sobre várias nações do planeta. Sabemos que ambos, quer os EUA quer a Rússia, se comportam da mesma forma de há várias décadas a esta parte. Movimentando-se na cena política internacional apoiando líderes simpáticos à sua causa ou ideologia e ditaduras conservadoras ou socialcomunistas, criando alianças militares, intimidando países terceiros. O fim da Guerra Fria trouxe um desanuviar de tensão entre as potências hegemónicas, porém, passámos de duas para uma, e os EUA puderam reafirmar a sua superioridade militar, económica, política, cultural. A Rússia passou a um papel secundário, ou menos ainda, com a ascensão da China. Nunca o encarou bem, e todas as tentativas americanas de estender a sua influência no leste europeu foram encaradas como uma ameaça pelos russos. Para os americanos, mais do que se defenderem da Rússia, procuram defender-se do Irão e da Coreia do Norte, criando escudos antimísseis nos países aliados da OTAN/NATO. Às portas da Rússia, portanto.

    Há um princípio basilar do direito internacional público que é o da soberania estatal. Afastando-nos dos propósitos e expectativas de americanos e russos, todos os países são, ou deveriam ser, livres para conformar o seu destino como queiram, firmando as alianças que queiram. Se ocorrem golpes de Estado, são questões internas de cada Estado soberano, e devem ser resolvidos pelo seu povo. Portugal teve um golpe de Estado em Abril de 1974, EUA e a Espanha franquista cogitaram invadir o país temendo que os marxistas tomassem o poder e creio que ninguém hoje apoiaria essa solução. É exactamente o que se passa no leste europeu: há, na Ucrânia, um governo desfavorável aos russos, há o problema da aproximação da Ucrânia ao ocidente, e a Rússia, numa intimidação absolutamente inaceitável, não o permite, ou seja, a soberania dos países do leste europeu é uma farsa. O ascendente da Rússia mantém-se e a política de intimidação não chega sequer a assumir um carácter moderado, dissimulado. Ontem mesmo a Rússia ameaçou contundentemente a Suécia e a Finlândia com consequências militares caso adiram à NATO. Já não falamos de ex-repúblicas soviéticas. Ainda que o fossem.

   Ideologias de lado, só há um caminho que me parece correcto, respeitador da soberania do povo ucraniano e do direito desse mesmo povo de viver em paz e de poder decidir sobre o seu futuro. É nisso que consiste a autodeterminação dos povos. Tudo o que se afaste um milímetro destes princípios não atende à vontade do povo ucraniano, justifica a guerra sem o aval das Nações Unidas (no fundo, apoiando agora o que anteriormente se criticou nos EUA) e abre o precedente de que qualquer Estado pode intimidar ou inclusivamente invadir outro se considerar que há razões que o justifiquem. É um atropelo ao direito internacional, é o caos nas relações entre os Estados.

24 de fevereiro de 2022

A guerra.


   Afinal, as fontes de informação que nos davam conta de um ataque iminente estavam certas. Putin invadiu realmente a Ucrânia, dando início a uma guerra desproporcional, injusta e ilegítima, que viola e integridade territorial e a soberania internacionalmente reconhecidas de um Estado soberano e compromissos que a Rússia firmou, como em 1994, em Budapeste, comprometendo-se a respeitar a soberania ucraniana em troca do envio para Moscovo do arsenal ucraniano herdado da União Soviética.

    O senhor Putin representa uma ameaça à paz na Europa e à humanidade, dado que não sabemos onde isto irá terminar e quais os seus diabólicos planos. Minorias étnicas e linguísticas russas há-as em vários países da região, inclusive nos países bálticos. Um deles activou mesmo um dos artigos da OTAN/NATO. Temos a guerra à porta das nossas fronteiras, tomando-as como as da UE, um espaço de livre deslocação de pessoas, e importa saber qual será a posição assumida pela União Europeia se o senhor Putin tiver outros objectivos para além do controlo político das regiões separatistas do leste ucraniano. Mas ainda considerando a própria Ucrânia, gostaria de saber se conseguiremos conviver com a fragmentação de um Estado soberano como os nossos -e aqui falo como europeu e cidadão da UE- que desde 2014 vê a Rússia a invadir o seu território, apossando-se dele (Crimeia) sem que nada fosse feito.

  Lamento profundamente que tenhamos chegado a este cenário de confronto directo em que inevitavelmente os que mais sofrem são os menos implicados em todas estas questões: a população civil e, dentro dela, as pessoas mais fragilizadas. É já há vítimas civis, ainda agora a guerra começou. Simultaneamente, repudio em absoluto o apoio manifestado por alguns grupos de cidadãos simpatizantes de Putin e/ou do seu estilo de governação, num insensível desprezo pelo sofrimento do povo ucraniano.

17 de fevereiro de 2022

Despertaram para um problema social e cultural.


   Eu tenho sido, nas minhas redes, das vozes mais activas das que conheço que se manifestam sobre o flagelo social e cultural que é a violência doméstica, machista e sexista. Em Espanha, inclusive, fazem uma distinção, que em Portugal não se faz, entre violência doméstica e de género, e posso-lhes dizer que a sociedade espanhola está bastante mais atenta às situações de violência infelizmente tão comuns em países do sul da Europa, católicos, que passaram por ditaduras conservadoras. Nesse sentido, quando vejo que há uma multidão que se insurge quando sabe de casos mediáticos, revolta-me. Durante uns dias, não se fala doutra coisa, até que sabemos de mais uma mulher agredida, abusada sexualmente, mutilada, assassinada, incrementando umas estatísticas vergonhosas com as quais, aparentemente, convivemos bem.

   O caso em concreto não me merece comentários. Não vejo trash tv, nem em Espanha, o que se dirá de Portugal. Recebo ecos do que se passa em Portugal uma vez que subscrevo jornais digitais portugueses. Continuo a ser português e a interessar-me pelo meu país. Não sei se agrediu, se não agrediu, vi umas imagens deploráveis, e o que me ocorre dizer é o seguinte: que se persigam, de uma vez por todas, os agressores, os que convivem bem com o machismo e a submissão da mulher ao homem; o sexismo encapotado que continua a julgar os comportamentos da mulher, o que faz, com quem vive, quantos parceiros tem, o que veste. É necessário corrigir condutas, todos os dias, educando, denunciando, abordando o fenómeno. Uma voz que se levanta de tempos a tempos é uma voz que compactua nos períodos de silêncio.

16 de fevereiro de 2022

O Mar, O Mar.


    Terminei de ler O Mar, O Mar da bem-sucedida escritora irlandesa Iris Murdoch, uma das maiores romancistas em língua inglesa do século XX, de quem li O Sino há muitos anos, tantos que praticamente não me lembro de nada da estória. Tinha uns dezasseis, e fora-me oferecido pelo meu pai anos antes. Quando somos muito jovens, e eu era-o, ou as coisas nos marcam ou passam por nós sem deixar rasto, como um pássaro que cruza o céu, traçando uma rota, sem que ninguém o observe. Creio que também nos falta maturidade para entender as mensagens subliminares. A adolescência é um período sobrevalorizado.

    Pois bem, voltemos ao mar. A estória passa-se no rural costeiro inglês. Um actor que se reforma e que escolhe a placidez de umas paragens remotas, onde redescobre um amor antigo, justamente da adolescência (falávamos dela), desenvolvendo uma obsessão por recuperá-lo. Murdoch substituiu-se à sua personagem principal, Charles Arrowby, que nos relata o que se passa em estilo de narrativa directa, um diário seu, onde expõe as suas inquietações e mais diversas teorias sobre o presente e o passado.

   A obra de Murdoch é o retrato de um homem vaidoso, egoísta, que presume que as suas vontades devem ser atendidas, que utilizou as mulheres na satisfação das suas necessidades, sem que haja uma tomada de consciência disso a nenhum momento. Arrowby não é um homem mau. É um homem com um ego extraordinário, que oscila entre o autoconhecimento e a ilusão. Um velho actor solitário, meio antissocial, que desenvolveu inconscientemente outra obsessão, a de superação do seu primo James, a quem invejou durante todo o período da infância de ambos.

    Murdoch faz com que as demais personagens surjam no contexto de Arrowby quase como invasores da sua tranquilidade, da serenidade da narrativa e dos seus pormenores caseiros, às vezes como expiando os seus pecados, como pequenas vozes que se assomam para o fazer recordar dos seus erros, de como brincou com sentimentos, servindo-se de outros, sobretudo das mulheres, que teve várias, para depois as descartar ao não conseguir, ou não querer, construir algo mais sólido com qualquer uma delas. As personagens do sexo masculino são amigos que não o são. Rivais, admiradores implícitos, jovens que procuram uma figura paterna. Arrowby é um ídolo para tantos, e no fim de contas não o consegue ser para si próprio, frustrando-se-lhe os planos, meros caprichos, afinal.

     Um livro que nos fala de neuroses e defeitos comuns, e o mar, constante, que leva e traz, regenera.

14 de fevereiro de 2022

Curva da vida.


   O Lobo, que voltou sob outra capa, é um dos bloggers mais dinâmicos da blogosfera. Andou por aí muito tempo, depois desapareceu, e agora voltou num momento em que a blogo é um cadáver. Ele tinha sempre ideias para desafios, passatempos, eventos (os calendários, os oscars da blogo, e por aí), e desta vez fez a sua curva da vida, propondo-nos que também nós a fizéssemos. Eu vou elencar os melhores e os piores anos da minha vida. Tenho uma memória prodigiosa, e lembro-me de praticamente tudo, mais ou menos pormenorizadamente, desde os três anos. Anos felizes, felizes, nunca tive até sair de Portugal, verdade seja dita, mas houve uns piores.

1996: o ano em que mudei de colégio, passando a conviver com miúdos mais velhos. Foi a partir deste ano que comecei a sentir verdadeiramente os efeitos da discriminação e da ignorância, ainda que antes, onde vivia, já fosse discriminado por ser mais feminino;

2004: foi um ano terrível. O meu pai sofreu um AVC, que felizmente não lhe deixou sequelas graves, mas tudo aquilo perturbou imenso as minhas rotinas e a minha estabilidade emocional;

2005: o segundo ano da pior tríade da minha vida. Houve uma série de problemas pessoais que tornaram o ano horrível;

2006: o meu annus horribilis. Os meus pais separaram-se, a minha mãe conheceu outra pessoa e passou a viver com ela, o meu pai também saiu de casa. Passei por um processo de transformações e mudanças que me beneficiariam a médio prazo, mas na altura foi tudo um terramoto. Sofri o pão que o diabo amassou;

2010: foi o culminar de um processo de lenta recuperação iniciada em meados de 2007. Entrei na faculdade e isso abriu-me os horizontes;

2015: mais um ano de mudanças, não positivas, mas a partir de 2006 comecei a desvalorizar o que de mau me sucedia, tendo em conta aquilo por que passei naquele período;

2018: um ano muito mau na sua segunda metade, por uma notícia devastadora;

2020: a grande mudança. Sair de casa, do país, constituir família, adoptar um animal. Aconteceu tudo demasiado rápido. Foi o melhor ano que tive desde que nasci;

2021: um ano que vem no seguimento do anterior, muito positivo, com alguns acontecimentos inéditos pelos quais ansiava há muito tempo;

   Se fizesse um gráfico, veriam que, desde que vim ao mundo, estaria praticamente tudo abaixo da linha. Houve, sobretudo, anos maus, e outros igualmente maus que foram a continuidade uns dos outros. Foi quase tudo mau na minha vida, digo-o sem medos, e o bom tem sido uma excepção.

11 de fevereiro de 2022

Escalada de tensão.


   Embora a União Soviética se tenha desmoronado há 30 anos, a sua sucessora, a Rússia, nem por isso perdeu o interesse no leste europeu. Não foi com agrado que viu os países do leste europeu a aderir à NATO, à União Europeia; mantém relações privilegiadas com a Bielorrússia, e muitos daqueles países necessitam dos russos para o abastecimento de energia. No fundo, a tutela que a União Soviética mantinha, a Rússia julga que deve manter. Isto por um lado. Pelo outro, os EUA, como sempre, acicatando a desconfiança que já existe entre muitos daqueles povos e os russos, pelo passado recente, e procurando estender a sua influência às portas do seu tradicional arqui-inimigo. Tratando-se de um país de dimensões continentais, o maior do mundo, com energia atómica, um status de potência, evidentemente que a Rússia não vê com bons olhos a aproximação do leste europeu ao ocidente.

   Há ainda a questão das minorias étnicas russas em vários daqueles países. No caso da Ucrânia, e desde logo assumo que pouco entendo da matéria, sei que há uma forte presença russa sobretudo na parte oriental do país, e o russo é bastante falado. Na Crimeia, a maioria da população é de origem russa. Para nós, portugueses, é-nos uma realidade estranha, uma vez que etnicamente somos todos portugueses e falamos todos, ou quase, a mesma língua (há a questão do mirandês, que é uma falsa questão para aqui). O mesmo não ocorre noutras zonas do globo. Em Espanha, onde resido, as questões socioculturais já se fazem sentir no quotidiano político do país e inclusive nas relações que se estabelecem entre os diferentes povos, sempre marcadas por alguma tensão. No leste europeu, sucede o mesmo. Nem sempre as fronteiras dos Estados respeitam as nações, e nem sempre as nações constituem um Estado, e ainda não raras vezes algumas nações, ou parte delas, são incorporadas em Estados limítrofes. Quando a U.R.S.S se desmembrou, aqueles novos Estados continuaram com a configuração que assumiam durante o período soviético, enquanto repúblicas soviéticas. Desde a constituição do Estado socialista até à sua queda, mediaram várias décadas, e imagino que tenha havido movimentação de povos dentro das fronteiras internas, com predominância dos russos como maioria étnica, dominante demográfica e politicamente.

  Não acredito num conflito que comprometa a paz mundial, mas, sim, acredito em pequenas escaramuças e nas tentativas de intimidação da Rússia. A Europa é uma região pautada regularmente por conflitos -embora seja um continente pequeno, é-o diverso-, e a recordação das guerras nos territórios da antiga Jugoslávia ainda estão presentes.

9 de fevereiro de 2022

Budapeste (parte VI).


   Será quiçá a última publicação sobre Budapeste, ou talvez não. Hoje dir-vos-ei as minhas impressões gerais sobre a cidade e os húngaros. Começando pela cidade, é lindíssima. Adorei conhecê-la, provavelmente não repetirei porque tão-pouco é uma grande metrópole que deixe muito por visitar em cinco dias, que foi precisamente a duração da nossa estadia. Vimos tudo o que havia para ver. Conseguimos cumprir com o roteiro a que nos propusemos. Aproveitámos bem o tempo que tínhamos. Budapeste é uma cidade funcional, com bons transportes públicos, segura, não demasiado extensa, tranquila. O húngaros, pois...

   Os povos são todos distintos, em razão do percurso histórico, do clima, da cultura. Eu não esperava que os húngaros fossem calorosos na recepção aos turistas como os espanhóis, os italianos, os portugueses. O que esperei, sim, é que fossem educados no trato, cordiais, sobretudo os que lidam com os turistas, e a experiência demonstrou-me o contrário. A minha e a de outras pessoas que escolheram a Hungria como destino de ócio, que nos demos, eu e o M., depois do regresso, ao trabalho de ler opiniões em sítios na internet dedicados a viagens e turismo. Há demasiadas opiniões semelhantes à nossa.

  Logo à chegada, a polícia, ainda no aeroporto, foi extremamente agressiva com os turistas que chegavam. Falaram-nos num tom autoritário, brusco, quase ameaçador. Pareceu-me que estava a entrar num estado ditatorial nos anos 70. No mesmo dia, repetiu-se o sucedido à entrada do parlamento. Os seguranças manifestaram os mesmos modos. Nos locais de comércio e restauração, também não temos nada de agradável para dizer: agressividade, má cara, desconfiança. Já sabia que os húngaros tinham elegido a extrema-direita, o Fidesz, um partido eurocéptico e anti-imigração, mas nós éramos turistas. Contribuímos para a riqueza interna do país, para o seu desenvolvimento. Com um leque tão vasto de escolha, decidimo-nos pelo seu país, e isso ao menos merecia que nos tratassem com outra consideração. À saída, no aeroporto, uma vez mais, e talvez para manter a coerência (risos), assistimos a mais episódios desagradáveis com os turistas.

   Importa referir que muitos dos casos foram observados por nós e ocorreram com outras pessoas. Não se trata de uma experiência nossa, isolada. Inclusivamente, comentei-o com o M., durante uma visita guiada, e uma portuguesa que estava de visita, ouvindo-nos, deu-nos razão. 

  A Hungria pertence à UE desde 2004. Budapeste é uma das cidades mais visitadas da Europa. Esperava-se que lidar com o turismo já fosse uma prática rotineira para os húngaros, e a impressão com que fiquei é a de que não gostam de estrangeiros. Há uma profunda desconfiança com quem não é de lá. Ainda que quisesse voltar, que não quero, não o faria. Há povos que são abertos ao mundo, receptivos aos outros, e há outros que não. As coisas são assim. 

   O que referi aqui não implica que a vossa experiência tenha de ser igual à nossa. Budapeste é realmente uma cidade que merece ser visitada. No entanto, eu aconselhar-vos-ia a refrear o ânimo quanto à receptividade dos húngaros, que deixa a desejar.

8 de fevereiro de 2022

Budapeste (parte V).


   O regime comunista desintegrou-se, na Hungria, em 1989. Caiu de forma pacífica, como de resto em todos os países do antigo bloco soviético, à excepção da Roménia, que executou o seu líder, Ceausescu, após um julgamento sumário. À época, as praças de Budapeste estavam todas elas repletas de estátuas e símbolos do comunismo. Com a transição para a economia de mercado, retiraram-se aquelas estátuas das praças públicas e chegou-se a cogitar a sua destruição. O bom senso imperou e, em 1993, inaugurou-se um parque a cerca de 12km de Budapeste, um descampado, como que um cemitério onde depositar aquelas enormidades de bronze sem ferir susceptibilidades e comprometer o novo rumo político pró-ocidental que se almejava.


Lenine, o grande líder e fundados da União Soviética


  Chama-se Memento Park, e a sua construção não se deu ao acaso. Arquitectonicamente, tudo foi idealizado para lhe conferir um simbolismo. A entrada, por exemplo, parece-nos sumptuosa, reportando-nos a um templo clássico, mas depois, quando passamos a porta, vemos que se trata de um terreno amplo, seco, desértico, com as estátuas dispostas aqui e acolá. É uma alusão ao comunismo, um modelo de regime que promete muito, sem que, no fim, se cumpram as expectativas. Estávamos em 1993, e ainda não lhes podia ser exigido aos húngaros que fizessem leituras apolíticas da sua história recente. Fora do parque, no lado oposto à entrada, vemos as botas de Estaline sobre um pedestal. Sobejaram apenas as botas. A estátua foi destruída integralmente numa revolta contra o regime comunista em 1956, que o Exército Vermelho sufocou imediatamente. Tal não sucedeu às de Lenine. Temos uma no pórtico da entrada, gigante, e outra no recinto do parque. Até ao dia de hoje, o fundador da U.R.S.S goza de mais prestígio e consensualidade do que Estaline.


Monumento à República Socialista Húngara (1969)


   Lá dentro, e depois da compra do bilhete, encontrarão não só elementos soviéticos como húngaros, e inclusive um Monumento aos Combatentes Húngaros das Brigadas Internacionais de Espanha, que foram -sem querer abordar muito a história espanhola nesta publicação- unidades militares que lutaram ao lado da República durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), contra Franco, do bando dos nacionalistas. Como acabou, vocês já sabem.

    Têm à disposição ainda uma pequena loja que vende recuerdos do recinto.

Todas as fotos foram captadas por mim. Uso sob permissão.

7 de fevereiro de 2022

Budapeste (parte IV).


   Budapeste é conhecida pelas suas termas. É uma cidade termal, famosa na Europa. Quis o destino que eu vivesse na capital termal da Galiza e de Espanha, Ourense, mas nunca cheguei a ir às termas daqui. Antes de me mudar para o rural, vivi umas semanas em Ourense. Tudo coincidiu com o início da pandemia, pelo que a ida às termas ficou adiada indefinidamente. Proporcionou-se fazermos termas em Budapeste. A cidade dispõe de dois balneários: um mais antigo, Gellert, e outro mais moderno, Széchenyi, que foi a nossa opção. Fica perto da Hösök tere, na linha M1, na estação homónima.


Sabe tão bem


  O balneário dispõe de várias piscinas, umas interiores, outras exteriores. Ficámos sobretudo nas exteriores. Estavam 5ºC, e dentro de água 29ºC. A sensação de variação térmica é impressionante e extremamente agradável. E depois há aqueles esguichos de água quente tão reconfortantes nos músculos e ossos. No caso do M., que sofre um pouco da coluna, além do agradável que são, ajudam-no a relaxar e a eliminar as dores. Um conselho: levem chinelos e touca. Se não o fizerem, poderão adquirir estes produtos numa loja dentro do recinto das termas. São obrigatórios. Ah, e a toalha de banho (ou um robe, melhor, porque no Inverno faz muito frio). O balneário tem instalações para que troquemos de roupa e, no final, nos duchemos.


O Balneário de Széchenyi


    Dependendo do tempo que disponham em Budapeste, aconselho a que passem pelas termas.


Todas as fotos foram captadas por mim. Uso sob permissão.


5 de fevereiro de 2022

És maricas?


   Um breve hiato nas publicações de Budapeste para um desabafo. Uma publicação intimista. Não surge por necessidade de catarse, mas explica, de certo modo, o porquê de, depois de uma breve incursão à direita, ter percebido onde realmente pertenço, e certos comportamentos.

   Como muitos meninos, eu também fui vítima de anos de preconceito, ignorância e ódio. Quando ouço falar em sair do armário, a expressão soa-me a algo incompreensível. Eu consigo perceber o que é chegar-se à beira de um pai ou de uma mãe e contar-se o que se é e se sente; comigo nada se passou assim. Eu nasci sem um armário. Era demasiado evidente, para mim e para os outros, que era um rapaz diferente. Ser mais delicado no trato, gostar de brincar com as meninas e com brinquedos de meninas não necessariamente teria de determinar a minha sexualidade. Entretanto, foi assim que o entenderam. Desde os cinco anos, sensivelmente, comecei a ser alvo de piadas e ridicularizações, primeiro no bairro em que vivia, depois no colégio. Naquela época (inícios dos 90), a juntar-se ao preconceito estava a ignorância. Parece inacreditável, mas os miúdos não sabiam bem o que eu era. Perguntavam-me se era homem ou mulher, se tinha vagina, se o meu pai também era assim como tu. Havia um desconhecimento gritante. Foi-o assim durante anos. Anos, dia após dia, sujeito às mesmas perguntas, às mesmas perseguições. Não podia falar daquilo com ninguém. Ninguém o entenderia ou estava capacitado para me ajudar. Por umas quantas vezes queixei-me aos meus pais dos maus-tratos de uns miúdos, que ligavam para o colégio, falavam com os directores e tudo ficava igual. Quando me refiro a maus-tratos, refiro-me a piadas e insultos. Até ao dia de hoje, nunca fui agredido fisicamente ou violentado sexualmente por ser gay.

   Esses anos transformaram-me decisivamente. Estou convencido de que me moldaram a personalidade. Como amar se nunca soube o que essa palavra significava? Como respeitar se nunca me respeitaram? Em casa era querido, sim, porém não chegava. Faltava ser aceite lá fora, pelos outros. Ser tratado como uma pessoa digna de consideração como qualquer outra, e sobretudo num período tão delicado como o é a infância, e mais tarde a adolescência. É impossível crescer-se com uma cabeça sã naquelas circunstâncias. Alguma repercussão havia de ter. No meu caso em concreto, tornei-me numa pessoa com falta de empatia pelos demais, desconfiada, que alimenta sentimentos de vingança contra quem me fez mal. Podia, realmente podia, ter transformado os traumas em mais uma bela estória de superação que se expõe nas redes sociais e todos batem palmas. Não foi assim. Admiro quem o consegue, a sério que sim. É bom, é excelente, conseguir pegar nas nossas fraquezas e dar-lhes um rumo positivo, inspirador.

  Naturalmente, a sociedade, a mesma que me fez mal (e, é provável, a alguns de vocês) não se compadece das nossas debilidades. Exige-nos o mesmo. O mesmo equilíbrio, a mesma ponderação, os mesmos sentimentos altruístas. Exige-nos, no fundo, um percurso irrepreensível como o dos demais. Julgam-nos por quem somos sem a menor preocupação com o nosso historial. Quando começamos a revolver o passado de alguém, podemo-nos deparar com surpresas, algumas chocantes, outras nem tanto, mas seguramente com muitas explicações.

  Então, como estar do lado dos meus verdugos? Como, inicialmente por me rever num patriotismo disparatado que exalta a história de Portugal e as suas velhas glórias coloniais, começar a fazer propaganda unindo-me àqueles cujo percurso em nada foi semelhante ao meu? Foi a análise que me fiz, e ao meu procedimento, e percebi que estava no caminho errado. Também percebi que o meu passado pode explicar quem sou, mas não deve determinar sempre o que faço, e que me cabe a mim distinguir o bem do mal, resistir às minhas inclinações para o mal. Não deixar que o que me fizeram me destrua como ser que tem a capacidade de, pelo menos, imitar os outros observando como fazem. E, acima de tudo, não fazer com ninguém o que me fizeram a mim. Seria dar-lhes a vitória, e eu não quero que eles ganhem.

4 de fevereiro de 2022

Budapeste (parte III).


    O Castelo de Buda pode levar-nos ao engano pela designação. Não se trata de um verdadeiro castelo. Na verdade, é um palácio, que tão-pouco visitamos como tal. Alberga dois museus de Budapeste: o museu de belas-artes e o museu de história. Nas imediações, encontramos o Bairro do Castelo de Buda, que junto a este, às margens do Danúbio e à Avenida Andrássy, são Património da Humanidade pela UNESCO desde 1987. É precisamente neste bairro do castelo que se situa a Igreja de Matias, de estilo neogótico, que vale a pena visitar, e o Bastião dos Pescadores, onde encontrarão um miradouro magnífico sobre a cidade. Relembro-lhes apenas que todos os monumentos em Budapeste, incluindo a maioria das igrejas e catedrais de relevo, são de visita paga. Decidimos visitar o Museu de História de Budapeste, dar um passeio pelo entorno, pela igreja e pelo bastião, naturalmente. Para subir ao castelo, poderão fazê-lo a pé (um pouco custoso), ou através de um funicular, que estava em manutenção no dia da nossa visita.


As vistas desde o Monte Gellért


   Entretanto, antes disso subimos ao Monte Gellért para poder desfrutar de umas vistas privilegiadas sobre Peste (que fica na outra margem do Danúbio). Esta subida sim pode custar-lhes um pouco, como nos custou a nós. Felizmente vamo-nos podendo sentar nuns bancos providencialmente instalados ao longo da encosta.


O Bastião dos Pescadores


   Pela noite, recomendo-lhes uma passagem por uma das cafetarias (dizem os entendidos) mais bonitas do mundo. Chama-se New York Cafe, e realmente tem uma decoração prodigiosa para a sua finalidade. Os preços, claro, são impraticáveis. A cidade não é mais barata, como se julga quando imaginamos que vamos recheados de euros a trocar por florins. A facilidade com que o dinheiro húngaro nos desaparece das mãos é impressionante. As taxas de câmbio também nos prejudicam, e nós levámos florins de Espanha (fizemos o câmbio aqui). Não chegou, claro. 


Deixa-nos sem palavras


  Antes de regressar ao hotel, fomos ver o parlamento de noite. Budapeste é conhecida pela sua luminosidade nocturna.


A cúpula do Castelo de Buda

Todas as fotos foram captadas por mim. Uso sob autorização.

3 de fevereiro de 2022

Budapeste (parte II).


   A Sinagoga de Dohány fica no bairro judeu. São outros dois locais que merecem uma visita atenta e demorada. No caso da sinagoga, é muito especial. É a segunda maior sinagoga do mundo e a maior da Europa. Como referi, situa-se no bairro judeu, que ainda hoje preserva as marcas dos bombardeamentos durante a invasão da Hungria, em 1944. Esta sinagoga reúne traços curiosos na sua arquitectura, daí que desperte o interesse de judeus oriundos de várias partes do mundo. Não é uma sinagoga comum. Tem características das igrejas católicas e uma forte inspiração andaluza. Damo-nos conta dessas influências só ao observá-la. Em todo o caso, se optarem pela visita guiada, como nós (há-as em vários idiomas durante todo o dia), dir-lhes-ão isto e muito mais.


Budapeste ainda tem os caricatos trolleys, que eu me recordo de ver no Porto, nos idos anos 90


   Outro dado interessante é que no terreno da sinagoga estão sepultados, em valas comuns, corpos de vítimas do nazismo. Nenhuma sinagoga encerra em si sepultamentos, à excepção desta, que esteve prestes a ser destruída pelos nazis. Não o foi, mas viu-se fortemente afectada na sua estrutura durante os bombardeamentos. Alguns dos corpos foram identificados, outros nem tanto. Nos seus jardins encontrarão ainda um memorial às vítimas dos alemães, incluindo do corpo diplomático. Constam nomes portugueses e espanhóis.


A Ponte da Liberdade, da que muitos húngaros ainda não gozam, infelizmente


   À tarde, seguimos no nosso passeio pela cidade. Passámos pela Basílica de Santo Estêvão, pela Ponte da Liberdade e pelo mercado da cidade. Não são locais de interesse que estejam perto entre si, mas o percurso faz-se a pé, para quem goste de caminhar, ou então poderão optar pelo transporte público de Budapeste, que como lhes disse na publicação anterior, é rápido e eficaz. Num país com um nível de vida (ainda) inferior ao português, e que portanto julgamos com menos meios, estão dotados de bons autocarros e de um metro que funciona muito bem. Budapeste é, assim me pareceu, uma cidade que, sendo capital de Estado, não é excessivamente grande. Percorremo-la bem.


Uma praça com elementos que imediatamente nos reportam à arte do leste europeu 


   Começando a anoitecer, passámos pelas imediações do Castelo Vajdahunyad, que fica logo atrás de uma das praças mais emblemáticas da cidade, a Praça dos Heróis (Hösök tere, em húngaro). É um espaço lindíssimo decorado com estátuas dos monarcas húngaros.

Todas as fotos foram captadas por mim. Uso sob permissão.

1 de fevereiro de 2022

Budapeste (parte I).


    Partimos de Barajas às 7h da manhã, aterrámos em Ferenc Liszt pelas 10h e pouco. O aeroporto húngaro foi assim rebaptizado em homenagem ao famoso compositor Franz Liszt, húngaro, personalidade destacada no país dos magyares.

  A capital húngara está extraordinariamente bem servida de transportes públicos, quer autocarros, eléctricos, trolleys ou inclusive o metro. Apanhámos o autocarro que faz o trajecto entre o aeroporto e o centro da cidade (não convém utilizar os táxis; podem cobrar valores abusivos - nada que não suceda em Lisboa aos turistas, e às vezes até a quem não o é...). Demorou cerca de meia hora. Não fomos imediatamente fazer o check-in. Quisemos explorar a cidade, levávamos apenas umas mochilas (pouco peso, portanto) e havíamos comprado os bilhetes para uma visita guiada ao parlamento húngaro -o que muitos que visitam a cidade desconhecem, que há que comprar os bilhetes antecipadamente pela internet- às 13h e pouco.


As vistas desde Buda a Peste (sim, eram duas cidades) são um espanto


  O parlamento húngaro é um verdadeiro encanto, quer exteriormente, quer no seu interior. A visita guiada está mais do que justificada, de resto porque é a única forma de podermos lá entrar. É o segundo maior parlamento do mundo, data do século XIX, foi construído no estilo barroco com influências neogóticas e é o edifício mais emblemático de Budapeste. Um conselho: se quiserem ter uma visão panorâmica do parlamento, saiam na estação de metro Batthyány tér (todavia, se quiserem visitar o parlamento, terão de sair na estação Kossuth tér). Ambas pertencem à linha M2 (a vermelha).


É tão sumptuoso


   No mesmo dia, ou seja, o primeiro (chegámos bastante cedo), aproveitámos para ver a Ponte das Cadeias, que está neste momento em obras, e passear na baixa comercial da cidade, conhecida como Váci Utca. Fizemos o percurso a pé desde o parlamento até esta zona. Pelo meio, visitámos o célebre memorial às margens do Danúbio, conhecido por Sapatos do Danúbio, onde jazem sapatos de metal homenageando as vítimas judias do Holocausto, gente que, aquando da ocupação da Hungria pela Alemanha, em 1944, já na fase final da II Guerra Mundial, foi executada e atirada ao rio, sendo que os seus sapatos ficaram na margem. 


Nalguns sapatos, vemos velas, flores e inclusive pequenos escritos


    Anoitecendo cedo e antes de nos recolhermos ao hotel, porque estávamos cansados, jantámos comida tradicional húngara e terminámos a desfrutar de um bom chocolate quente (vão agasalhados que a cidade é fria no Inverno!) numa cafetaria histórica, ali mesmo na zona comercial, chamada Gerbeaud.

Todas as fotos foram captadas por mim. Uso sob autorização.