Em Abril, escrevi sobre o primeiro dos monarcas da terceira dinastia portuguesa, inaugurando uma série de três dissertações sobre os Filipes, reis non gratos em Portugal. Não o serão com total justiça. À distância de tantos e tantos séculos, é impossível saber-se com rigorosa exactidão o que sentiam por Portugal, acreditando, eu, que amavam este pequeno e belo reino à sua maneira.
Filipe III de Espanha (II de Portugal) nasceu no dia 14 de Abril de 1578, filho de Filipe II de Espanha e de D. Ana de Áustria, por sua vez neta de Carlos V do Sacro Império e de D. Isabel de Portugal. Não se esperava que o pequeno e enfermo Filipe alcançasse a Coroa. Não era o herdeiro. Tornou-se com a morte trágica dos seus irmãos mais velhos, um após o outro, não fugindo à terrível mortalidade infantil da época. Dos cinco filhos de sua mãe, só Filipe sobreviveu.
Filipe, como disse, era muito débil física e mentalmente. Consta-se de que Filipe II, seu pai, terá dito: "Dios, que me ha dado tantos reinos, me negó un hijo capaz de gobernarlos". O império em que o sol nunca se punha, de facto, se somarmos ao extenso império espanhol o império português.
Filipe II, cujas crónicas da época o dão como bom e devoto, alheando-se de assuntos políticos, foi aclamado rei de Portugal a 23 de Setembro de 1598. Além de rei de Portugal e de Espanha, aqui como Filipe III, era rei de Nápoles, da Sicília, rei titular de Jerusálem, rei da Sardenha, duque de Milão, conde de Artois, de Borgonha e de Charolais, fora as possessões ultramarinas ibéricas. Um deus na terra.
Entregou o poder ao famoso duque de Lerma, homem naturalmente ambicioso, que afastou o novo rei dos assuntos portugueses, para perplexidade dos súbditos lusitanos.
Em 1598, casou com Margarida da Áustria. Do enlace nasceram oito filhos, incluindo o sucessor, que viria a ser Filipe III (IV de Espanha). Filipe, todavia, continuou a demonstrar apatia e carácter fraco para as enormes responsabilidades que tinha.
Se o duque de Lerma governava toda a Espanha, conhecendo-se das limitações do rei para assumir as rédeas do poder, em Portugal, por volta de 1600, substitui-se o colégio de governadores escolhidos por Filipe I, que estavam envelhecidos e de quem se questionava as vantagens, por um vice-rei, Cristóvão de Moura, membro do Conselho de Estado e elevado a marquês de Castelo Rodrigo.
Os problemas em Portugal agudizavam-se, e as reacções contra Espanha também. Diante das fomes de 1600/01, escreveu ao rei, Filipe II, declarando estar com problemas de liquidez para cobrir as despesas. Há muito que não eram pagas as tenças da casa real, o dinheiro mal chegava para sustentar a Ribeira das Naus, podendo despoletar a qualquer instante uma crise no comércio marítimo português. Como Cristóvão de Moura foi percebendo, a grandeza de Espanha contrastava com o tratamento desigualitário que Filipe II dava a Portugal. Aos poucos, afastava-se das promessas do seu pai, Filipe I, em 1581, nas Cortes de Tomar. Ousou colocar três magistrados castelhanos na Junta da Repartição dos Contos, enquanto por Lisboa havia arruaças entre soldados portugueses e espanhóis. Não sentindo resultados palpáveis dos seus apelos, pediu a demissão. Foi substituído por D. Afonso de Castelo Branco, aos oitenta e um anos de idade. Relembro que só portugueses poderiam ser vice-reis. Depressa subiu ao poder o terceiro vice-rei, D. Pedro de Castilho, bispo de Leiria, inquisidor-geral e fidelíssimo à causa espanhola. Note-se a promiscuidade entre religião e política... A sucessão de vice-reis não terminaria. Cristóvão de Moura regressa para segundo mandato, a 23 de Outubro de 1607. Este morreria em 1613. Suceder-se-iam mais uns quantos vice-reis até... Filipe II nomear um espanhol, repito, um espanhol, Diogo da Silva y Mendonza para o cargo, uma afronta para os portugueses, muito embora o novo vice-rei tivesse ascendência portuguesa.
O rei estava em Espanha, com Corte em Valladolid, por estes anos. Portugal seguia numa crise económica aguda, a que se somava os ataques de corsários à nossa costa indefesa, com períodos de fome e impostos pesadíssimos, engrandecendo as hostilidades entre portugueses e espanhóis.
No ultramar, os territórios portugueses eram presa fácil para holandeses e franceses. O governo filipino ia, progressivamente, perdendo o encanto aos olhos dos portugueses. A derrota dos franceses, no sonho de erguer La France Équinoxiale, foi conseguida em 1614, impondo-se um armistício a La Ravardière. A maior ameaça, contudo, seria dos holandeses, quando criaram a célebre Companhia das Índias Ocidentais para comercializar com as terras brasileiras.
O império português da época, nas Índias, estendia-se pela costa oriental de África, Arábia, Industão, Malabar e demais territórios circundados pelo Índico. Na costa oriental africana, tínhamos fortalezas na costa moçambicana, em Sofala, Mombaça e em Melinde. Na Arábia, Mascate e Ormuz pertenciam-nos. Através de Manila, nas Filipinas, território espanhol, Filipe II tentava estimular contactos comerciais com a Ásia, embora nunca os espanhóis tenham estabelecido uma base como os portugueses tiveram em Macau. Claro que tirou partido do nosso vastíssimo império oriental, vendo-se obrigado a respeitar, claro está, a autonomia do império português face ao congénere espanhol.
Acabámos expulsos de Adém, Mascate, Ormuz, Ceilão e Aboíno, devastados pelos holandeses. Perdemos ainda as Molucas. Caía assim o poder português nas Índias. Filipe II não tinha meios para defender o império português. Envia uma frota de catorze navios que consegue segurar Goa, mas os vexames sucediam-se a Oriente.
No reinado de Filipe II (III), já pela Espanha, o prestígio do país vizinho começava a mergulhar nas trevas. Agora como na altura, Espanha não era una e a Monarquia Hispânica, com Portugal, revelava fragilidades insanáveis. A derrota da Armada Invencível, em 1588, foi apenas o princípio do fim do "Século de Ouro" espanhol. E com Espanha, Portugal. O reinado de Filipe II marcou um período de inversão da economia espanhola, ressentindo-se da quebra do influxo de metais preciosos vindos da América. A autonomia da Flandes, conferida ainda por Filipe I, começou a causar transtornos. O exército espanhol era mal visto na região e foi derrotado em Nieuport, em 1600. A trégua alcançada em Haia, em 1609, expirou três anos depois e não mais foi renovada, caindo por terra o objectivo de Filipe de derrotar o protestantismo, enaltecendo a hegemonia espanhola sobre a Europa.
E visitar o reino português? Desde o início do reinado que Filipe II revelou intenções de querer conhecer Portugal. Aquando do nascimento do príncipe herdeiro, em 8 de Abril de 1605, ocorreram por todo o país manifestações de júbilo, com festas e procissões. A Câmara de Lisboa apelava para que o rei viesse e da Corte, em Espanha, chegavam notícias de sucessivos adiamentos, ou pelas doenças do pequeno príncipe ou pela morte da rainha. Até que, em 1619, Filipe II vem, por fim, a Portugal. A comitiva pisou solo português a 9 de Maio, entrando por Elvas e Estremoz. Chegado a Évora, esperava-o um opulento auto-de-fé, a seu pedido, onde doze pessoas foram queimadas vivas. Em Lisboa, a festa de recepção teve lugar na sala grande do Paço da Ribeira. Filipe II prestou o juramento inaugural do seu reinado e prometeu, como o seu pai fizera décadas antes, respeitar os foros portugueses. Durante o início de Setembro, muitas touradas no Terreiro do Paço em honra do rei. O rei visitaria ainda Palmela, Almeirim e Santarém, mas, invocando razões de Estado, abreviou a estadia em Portugal - o ambiente que se vivia não era propício à manutenção da Corte por cá. Entre os dias 18 e 23 de Outubro, rumou de Tomar a Badajoz.
A vinda do rei foi um fracasso e as diferenças entre portugueses e espanhóis acentuavam-se a cada dia. O rei partiu e deixou o reino entristecido. Demonstrou frieza para com a nobreza portuguesa, não concedendo mercês e não se ocupando da fidalguia lusa. Culpava-se os ministros. Do rei, a impressão que o acompanhara a vida inteira mantinha-se: era um homem bom. A hegemonia espanhola começava a desvanecer-se.
Como referi anteriormente, a rainha faleceu numa das inúmeras vezes em que se especulava a vinda de Filipe II a Portugal, em 1611. O rei era-lhe fiel e não conheceu outra mulher após a morte da tão amada esposa. Havia descendência segura, logo, outro casamento não era necessário. Passou a desfrutar da companhia dos filhos, combatendo assim as saudades. A melancolia, que nunca o abandonara, perturbou-lhe o espírito de modo que começou a ter visões e a ouvir vozes quando caminhava no seu palácio.
Ao deixar Portugal, em 1619, o rei sente-se indisposto após comer umas empadas. Adoeceu gravemente e nunca mais recuperou, morrendo a 31 de Março de 1621, com quarenta e três anos de idade e vinte e dois de reinado. Vários mitos surgiram em torno da morte do rei: desde o calor de um braseiro, que lhe provocou um ataque de erisipela, até suspeitas de envenenamento.
A morte do monarca foi conhecida, em Portugal, a 6 de Abril. No dia 18, seria feito o juramento e levantamento do novo rei, Filipe III (IV de Espanha), proclamado por procuração passada ao vice-rei, o marquês de Alenquer, iniciando-se assim o último reinado filipino no nosso país. Atribulado. Ficará para o próximo capítulo.