Como se sabe, o famoso programa televisivo Quem Quer Ser Milionário voltou ao pequeno ecrã. Não saber seria impossível. A RTP fez questão de bombardear tudo e todos com o regresso do seu formato por excelência ao horário nobre. Desta vez, com um detalhe especial: o concurso não viria sozinho; com ele, Manuela Moura Guedes, o rosto afastado, censurado, banido de uma estação sensacionalista, especificamente de um noticiário mesquinho e de parca credibilidade. Convém referir de que nada tenho contra a Manuela Moura Guedes. Nada contra, nem nada a favor. Retenho uma das suas afirmações pós-saída da TVI: o jornalismo tem de ser contra poder. Ora eu que nem estudo jornalismo, mas que por acaso até nem me importaria nada de seguir uma carreira nessa área (aliás, penso nisso), fiquei, digamos, perplexo. Querida Manuela, o jornalismo não tem de ser contra poder, a favor do poder, ou seja lá o que for: o jornalismo tem de ser imparcial. A menos, claro, que nos refiramos à TVI ou aos falecidos 24 Horas / Tal & Qual. Vá, convenhamos, seria uma ofensa para o bom jornalismo que por cá se faz.
Gosto de concursos. Já miudito, testava os meus conhecimentos neste tipo de programas em que a RTP aposta de quando em vez. Têm interesse. Agora até poderia dizer que acerto em cerca de oitenta por cento das perguntas, mas não o irei fazer. Chamar-me-iam convencido e o elogio em causa própria é do pior que há. Participar também está fora de questão. Aparecer na televisão será a apresentar um noticiário ou um qualquer programa das tardes ou das manhãs. Sim, talk-shows incluídos, não me importo nada! Ganha-se bem, trabalha-se pouco (falar, fazer umas palhaçadas, não é trabalhar) e ainda se tem uma notoriedade incrível. Ah, e dá sempre para impressionar miúdas, han.
Damos por barato de que há todo um processo rigoroso na escolha das perguntas, acreditando mesmo que são dados garantidos, e o contrário nem nos passará pela cabeça. Estaremos certos?
Não vejo televisão, contudo, o interesse pelo programa levou a que fosse pesquisá-lo no sítio da RTP na internet (agora está na moda ser-se contra os estrangeirismos, sobretudo os anglicismos, qual febre pela pureza linguística). De uma assentada, vi todos os episódios, ou melhor, vi até ao penúltimo porque perdi a vontade de assistir ao último. O que se passou? Resumidamente, uma participante estava a jogar para a oitava pergunta, de dois mil euros, que era a seguinte:
"Complete o provérbio: Dezembro frio, calor no... A: domicílio; B: aconchego; C: abrigo; D: estiLo"
Nunca fui bom em provérbios. Ao ler a pergunta e as quatro opções, o estilo realmente dizia-me algo. A senhora fez um raciocínio lógico: domicílio não seria porque, à partida, os provérbios são o expoente da sabedoria popular que não costuma passar da simples gíria; abrigo remetia-a para os 'abrigos' dos Aliados na II Guerra Mundial (posição da qual discordei porque abarca também outro significado: o de abrigo propriamente dito, algo contra o frio onde nos 'abrigamos', passo a expressão); estilo não fazia qualquer sentido, logo, decidiu-se pela hipótese B, aconchego. Errou, claro. A resposta correcta foi a D, estilo, ganhando quinhentos euros.
Fiquei com cócegas cerebrais e fui investigar junto da avó, que me disse imediatamente: "Dezembro frio, calor no ESTIO". Pesquisei na net e vi uma série de pessoas, indignadas, que reclamam junto da RTP para que corrija o enorme erro que cometeu, dando de novo uma oportunidade à concorrente injustamente afastada. Estio significa quente, calor; neste caso, Verão. Mais ridícula do que a situação em si foi a explicação de Moura Guedes perante a admiração da senhora e de um membro do público: estilo porque significa escolher a indumentária (vocábulo utilizado pela apresentadora, correcto, mas que numa situação desta natureza ainda torna tudo mais cómico) para... o frio. Então, não deveria ser algo relacionado com o calor? A expressão corporal de Manuela Moura Guedes, que acredito agora de que cedo se apercebeu de tudo, ainda é mais hilariante. Como se costuma dizer: se não fosse tão infeliz, teria piada.
Não é algo inédito ali para os lados do Cabo Ruivo. Aqui há uns anos, a estação cometeu um erro semelhante numa das edições do, imagine-se!, mesmo programa, em que uma concorrente foi induzida em erro com a seguinte pergunta: "Qual das seguintes personagens de banda-desenhada foi mais vezes recriada no cinema? A: Zorro; B: Super-Homem; C: Tarzan; D: Batman." A senhora escolheu a resposta C, Tarzan, no entanto, o programa diria que era a resposta A, Zorro. Deu em chatices. A senhora estava convencida da resposta, a qual sabia efectivamente, comprovando-se de que a opção correcta era a C. Entrou na justiça com um pedido de indemnização. Eu sei disto porque fiz um caso prático na faculdade a propósito desta situação verídica. Resultado: o STJ, salvo erro, num acórdão extenso, considerou de que se tratava de uma mera obrigação natural, acrescida de um termo de participação que todos assinam antes, ao que parece. Baseando-se no artigo 1245º do CC, que nos diz que as apostas e os jogos não são contratos válidos nem constituem fonte de obrigações civis, com remissão para o 402º CC, que enuncia expressamente que as obrigações naturais fundam-se em meros deveres de ordem moral ou social, não sendo - e isto é muito importante - judicialmente exigíveis. Fez-se uma ressalva ao mero 'dever de justiça' que consta na última parte do artigo, o que não teve força por si só. Julgou-se a acção improcedente.
Lamentável. Um erro igual nos mesmos moldes. Há quem não aprenda. Melhor, para quê emendar? A lei dá cobertura, inclusive...
Pensem duas vezes antes de concorrer a isto.