28 de novembro de 2016

Fidel (1926 - 2016).


   Fidel morreu. O timoneiro, o revolucionário. A personagem apaixonante, que despertou, pelas décadas, a admiração e o respeito de muitos e o ódio de outros. Fidel, entretanto, consegue reunir algum consenso na hora da morte, e a evocação da sua figura tem-se sobreposto aos pecados do regime cubano. Fidel, contrariamente a Estaline ou a Mao, paira entre nós como o homem destemido, obstinado, que enfrentou a superpotência que mora ali ao lado, que discursava por horas, envergando a farda militar, que nos últimos anos deu lugar aos fatos de treino.

   Fidel foi, em síntese, o símbolo do anti-imperialismo, da vontade de rumar em sentido inverso ao que seria esperado. Quanto tomou o poder, em 1959, Cuba era o que se poderia chamar um casino royal dos EUA, onde proliferava todo o tipo de negócios, servindo a administração cubana como mera cortina de fumo. Após a conquista do poder por Castro, acompanhado pelo lendário Che Guevara, Cuba tornar-se-ia o bastião socialista no Golfo do México. O pequeno estado insular esteve no epicentro da famosa crise dos mísseis, de 1962, que por pouco não despoletou o terceiro conflito armado de dimensões mundiais. Fidel já havia consolidado o seu poder, com a vitória face à tentativa estadunidense de reverter a Revolução, no célebre episódio da invasão da Baía dos Porcos, em 1961. Com a derrota frente ao exército estadunidense, em 1898, Espanha viu-se expropriada da sua ilha, e a influência dos EUA manifestar-se-ia por décadas, pelo que Fidel e a ascensão do socialismo representavam uma ameaça a escassos quilómetros da Florida, intolerável em contexto de Guerra Fria.

    O apoio político e logístico da União Soviética permitiu contrabalançar o embargo económico imposto sobre a ilha pela administração Eisenhower. O bloqueio e o corte de relações diplomáticas, só restabelecidas em 2014, encaminharam o país para o isolamento, situação que agudizaria com a queda do bloco soviético, em 1991. Cuba ficou conhecida pelo surpreendente nível de bem-estar e de desenvolvimento, ainda que com todos os reveses. Nos domínios da saúde e da educação, Cuba posiciona-se em lugares cimeiros, havendo procura internacional pelos avanços na investigação a determinadas enfermidades do foro neurológico, designadamente.

    O longo período em que Fidel esteve na liderança dos destinos da nação cubana não foi imune a erros. A repressão, a tirania e a intolerância foram uma constante pelos anos, e os exilados políticos nos EUA não hesitam em relatar as atrocidades cometidas pelo regime. Fidel foi perseverante nas suas convicções políticas; parafraseando Maquiavel, um líder deve ser temido, mais do que amado. Enquanto político, a minha vénia. Sobreviveu a tudo, inclusive ao ostracismo internacional, à dissolução da URSS, às investidas dos EUA, aos opositores e críticos, à crença no seu suicídio político despojado do suporte soviético. Só a morte o derrotou. Esta é a evidência incontornável. E em quem governou por tanto tempo em ditadura, é curioso assistir ao vazio que a sua partida nos deixa.

25 de novembro de 2016

A Teoria do Bem Jurídico.


   O conceito de bem jurídico foi teorizado por jurisconsultos das mais diversas escolas legalistas. Encontra previsão constitucional no artigo 18.º, número 2 da Constituição da República. Primeiramente, tem de haver um bem digno de tutela penal. Aos juízes está o dever de não aplicar qualquer norma que considerem inconstitucional, no sistema de fiscalização difusa prevista no nosso ordenamento. Uma norma que não seja aplicada por três vezes, por ser considerada inconstitucional, queda banida do ordenamento jurídico.

    A pergunta que se impõe: e que bens serão dignos da tutela penal? Pegando num exemplo aleatório, no artigo 247.º do Código Penal, verificamos que o legislador previu a criminalização da bigamia. Alguém que contraia casamento, sendo previamente casado com outra pessoa, é punido com determinada pena de prisão ou pena de multa. O legislador quis, com esta norma, proteger os direitos do cônjuge de boa fé, ou dos cônjuges de boa fé, sem motivações morais subjacentes. Noutro exemplo, o direito penal não criminaliza o incesto. O direito penal, em suma, não se imiscui nos valores morais, mas sim nos direitos concretos do indivíduo. É um direito de ultima ratio, utilizado quando o confronto entre o Estado e o indivíduo não é mitigado pelo direito civil ou por outro ramo do Direito. Para se tornar mais compreensível, proponho um terceiro exemplo: se alguém entra numa loja e parte artigos de propósito, há dano, há responsabilidade penal; entretanto, se o fez sem dolo, há dano, mas a responsabilidade é meramente civil.

     Para Johann von Feuerbach (1775 - 1833), o crime consiste  na violação de um direito subjectivo (tem de haver um agente que viole o interesse, o direito de outrem). Há um cunho vincadamente liberal. O Estado intervém o mínimo possível, na salvaguarda do interesse do indivíduo. Antes de bem jurídico, falava-se em direito subjectivo. Era este o termo usado pelos grandes penalistas até ao século XIX. O conceito de bem jurídico foi teorizado por Birnbaum (1792 - 1877). No pensamento deste autor, o direito penal caracterizava-se pelas infracções que lesassem o objecto dos nossos direitos, diferentemente da lesão dos direitos subjectivos. Houve deslocação da tónica de uma perspectiva mais subjectiva para uma mais objectiva. A lesão do direito subjectivo  implica uma relação ofensor - ofendido, ao passo que a ofensa ao objecto dos nossos direitos observa mais para a consequência, permitindo destacar o objecto dos sujeitos. Pelos finais do século XIX, Karl Binding (1841 - 1920) adoptou a teoria de Birnbaum na sua obra clássica - Das Normas e da sua violação (1872). Dava-se o apogeu do positivismo. Na corrente positivista, o legislador decide o que é e o que não é crime, cabendo ao cidadão a obediência. Tão-pouco se discute se serve ou não os fins do Estado. É ao legislador que compete definir o que é o bem jurídico. « O Direito molda o mundo. »  É normativo. Cria os valores, dita os que são mais importantes e os que devem ser respeitados ou sacrificados.

      Franz von Liszt (1851 - 1919), inspirado pelos dados empíricos da Escola Positiva Italiana, contrariou tudo. No entendimento deste autor alemão, não é o legislador que conforma o mundo. Ele apenas resolve os problemas que surgem, daí a divergência de direitos nas várias sociedades.

      Nem tudo é relativo. As culturas e as ideologias vigentes influenciam determinantemente. Os crimes mais graves nem sempre foram os que são considerados como tal nos dias que correm. No nosso Código Penal há hierarquia de crimes: os crimes contra as pessoas surgem primeiro, todavia, no liberalismo do século XIX e nas primeiras codificações, os crimes contra o Estado assemelhavam-se como os mais graves que poderiam ser cometidos.
       O artigo 291.º do Código Penal enuncia a pena aplicável a quem conduzir veículo rodoviário sem condições de o fazer ou oferecendo perigo pela violação grosseira das regras da circulação rodoviária; o artigo 292.º do mesmo código pune a condução em estado de embriaguez; o artigo 137.º pune o homicídio por negligência. Suponhamos em alguém que matou preenchendo todos os requisitos dos artigos. No caso do artigo 292.º, há protecção contra os acidentes da mesma forma que nos demais artigos. Estamos perante uma situação de concurso. Quero chegar apenas aqui: não se pode punir o indivíduo duas vezes pelo mesmo facto típico e ilícito.

       Knut Amelung, jurista, professor de direito penal alemão falecido recentemente (1939 - 2016), defendia que os bens jurídicos têm de se identificar com o dano que causam à sociedade. Protege-se, dessa forma, a interacção entre as pessoas, visando a que as suas condutas não molestem a sociedade em que estão inseridas. Temos de atender aos comportamentos que põem a sociedade em crise de valores. Niklas Luhmann (1927 - 1998), por seu turno, entendia que a sociedade é um sistema que desempenha determinadas funções. O Direito seria um meio de estabilizar conflitos dentro do sistema. Günther Jakobs (1937), ilustre jurista alemão, defende um entendimento muito curioso e até polémico: efectivamente só há um bem jurídico, que é a norma em si, uma vez que a norma contém o que deve ser respeitado,

       Do outro lado do oceano, nos EUA, surgiu uma doutrina revolucionária. A teoria das Broken Windows. Esta teoria diz o seguinte: as pessoas interiorizam que as normas são para cumprir, ou não, o que nem sempre é benéfico, porque o Estado não consegue perseguir todos. Sucintamente, o Estado tem de fazer com que as pessoas interiorizem as normas. No limite, esta concepção pode acarretar o fim da capacidade crítica de cada um. Também tem implicância com o fim das penas, na medida em que se defende, implicitamente, que é preciso aplicar as penas porque senão as pessoas deixariam de acreditar no Direito.

      Terminando o périplo pelos autores, Figueiredo Dias, o pai do nosso Código Penal, argumenta que não conseguimos ir buscar à Constituição, na maioria dos casos, os bens jurídicos. Para o Professor, há uma relação de analogia substancial do quadro de valores constitucional do Estado de Direito para consagrarmos as opções correctas. Não é preciso haver uma relação directa com a Constituição para daí extrairmos o bem jurídico. Ou seja, passo a explicar: a Constituição não contém injunções expressas de criminalização. Não se retira autonomamente do facto de haver tutela da vida humana para o homicídio ser considerado crime pelo legislador.

       O conceito de bem jurídico envolve potencialidades: um guia para o legislador, um guia para o intérprete aplicador da norma e tem ainda uma função crítica: o intérprete pode sindicar a opinião do legislador e recusar a sua aplicação.
       Terá o bem jurídico uma função crítica? Vejamos o exemplo do capítulo V do Código Penal, que versa sobre a liberdade sexual, a autodeterminação sexual. Artigo 169.º, Lenocínio. Há várias formas de preencher este artigo, com o proxeneta, com, eventualmente, a dona da moradia em que se realizam as práticas sexuais... E havendo acordo livre entre a prostituta e a dona da pensão? Será imoral? A moralidade pública não é um bem jurídico. Nesse sentido, surgiu uma ideia fundada no princípio do dano, vinculada à faceta liberal de John Stuart Mill: a punição de alguém está relacionada a haver um dano cometido sobre outrem. E a legitimidade da punição está na lesão a outrem. Esta ideia ganhou receptividade em Inglaterra, no final dos anos sessenta do século anterior. Não trouxe esta teoria inocentemente. Foi um rebuçadinho para quem se deu ao trabalho de ler o artigo jurídico até ao fim. A teoria demonstrou que não se deveriam punir a homossexualidade ou a prostituição apenas porque ofendiam, na época, a moralidade pública.

       Para não mais me alongar, o Direito Penal deve tutelar valores vitais para o desenvolvimento, em liberdade, da sociedade humana, e não os nossos valores morais.


18 de novembro de 2016

A aliança luso-inglesa.


   O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, reuniu-se com a Primeira-Ministra britânica, Theresa May, e com a Rainha Elizabeth II, ou Isabel II, como preferirem; eu, em determinados casos, evito as traduções, sobretudo de nomes próprios, que não devem ser traduzidos (permitam-me um aparte, que me ocorre de momento: jamais me esquecerei do quão fulo ficava com a adaptação para o castelhano, por parte de uns amigos espanhóis da mãe, do meu segundo nome próprio).

    Esta visita vem ao encontro de um anseio de Marcelo. Pelo que pude perceber, há algum tempo que o Chefe de Estado português desejava encetar uma visita de Estado ao velho aliado britânico. Encontrar-se com Theresa May ajuda a apaziguar os receios da comunidade portuguesa no Reino Unido, assustada, e muito naturalmente, com as nefastas consequências da saída do país da União Europeia, que está à distância da invocação da respectiva cláusula do Tratado de Lisboa por parte do executivo britânico. Marcelo, entretanto, veio a público acalmar os mais cépticos, assegurando que transmitiu à líder do governo britânico os receios dos portugueses emigrados em terras de Sua Majestade. E seria com a Rainha que Marcelo trocaria umas palavras tornadas públicas através do site da Presidência da República. Elizabeth, que tem aquele semblante austero e compenetrado, não resistiu ao charme do Presidente português, sorrindo e admirando-se com a historieta contada, da presença de Marcelo aquando da sua chegada e da comitiva britânica a Lisboa, em 1957, pelo Terreiro do Paço. Filho de uma figura do Estado Novo, Marcelo, qual privilegiado, pôde assistir de perto à entrada triunfal de Elizabeth na capital portuguesa.

    Portugal tem uma relação histórica com Inglaterra que remonta ao século XIV, mais concretamente a 1373, com o Tratado de Londres, que estabeleceria as bases do convívio entre os dois reinos até à actualidade. Foi, aliás, no contexto desta aliança que Inglaterra ajudaria o Mestre de Avis, o futuro D. João I, na batalha de Aljubarrota, uma das mais decisivas e significativas vitórias de Portugal frente a Castela, permitindo a consolidação da nossa independência. No ano seguinte à batalha, em 1386, a aliança seria consolidada com o Tratado de Windsor - ainda em vigor, e que alteraria para sempre a história de Portugal. Sustentando-se na aliança, Inglaterra ajudaria Portugal na Guerra da Restauração, entre 1640 e 1668; pediria a participação de Portugal ao seu lado na I Guerra Mundial; pediria para usar a base dos Açores na II Guerra Mundial, o que seria aceite por Portugal, neutral no conflito; e, mais recentemente, na década de oitenta do século passado, invocaria ainda a aliança para poder voltar a utilizar a base dos Açores durante a guerra pela recuperação das Falkland, invadidas e anexadas por ordem do regime militar da Argentina. Portugal, entretanto, muito embora o apoio inglês tenha sido fulcral para sobreviver às investidas castelhanas e, posteriormente, espanholas, viu-se traído pela velha amiga na questão do Mapa Cor-de-Rosa, quando pretendeu unir Angola e Moçambique através dos territórios entre ambos, e, na década de sessenta do século anterior, ao pedir auxílio por ocasião da anexação do Estado Português da Índia pela recentíssima União Indiana, a mando de Nehru. Pelos séculos, a aliança foi sendo confirmada sucessivamente em diversas datas, tendo também estado suspensa durante o obscuro período da incorporação de Portugal na Monarquia Católica dos Habsburgo, entre 1580 e 1640. Não nos esqueçamos, merecendo um destaque especial, que a aliança levou a que Portugal não aderisse ao Bloqueio Continental decretado por Bonaparte ao Reino Unido, o que arrastou Portugal para um flagelo que teve repercussões por todo o século XIX.

     A aliança é evocada em praticamente todos os actos oficiais que envolvem Portugal e o Reino Unido. Há quem aluda a subserviência portuguesa - é uma retórica observada nos espanhóis, por manifesto despeito e desconforto, e em alguns sectores da sociedade brasileira, provavelmente pelas remessas de ouro enviadas para Londres. Eu diria, pondo de lado os preconceitos de uns e de outros, que a aliança, não obstante o preço alto que teria para Portugal, surgiu no momento certo, e desengane-se quem crê que Portugal foi ingenuamente ludibriado pelos ingleses. Portugal precisou da aliança, tanto quanto os ingleses, que nunca quiseram uma Espanha forte. Ambos sabiam-no, o que justifica a sujeição, principalmente da parte mais fraca, Portugal, que sem o apoio inglês certamente seria, hoje, a décima oitava autonomia espanhola.  Em suma, a aliança representa uma sábia decisão estratégica do último monarca da Dinastia de Borgonha, O Formoso D. Fernando, e dos seus sucessores pelo tempo. Pombal foi-lhe crítico. O Tratado de Methuen, do reinado de D. Pedro II, estagnaria a manufactura têxtil portuguesa e atrasaria o desenvolvimento do reino, e não pode ser compreendido sem atendermos ao antigo vínculo, mesmo sob um olhar do século XVIII. Com a manufactura, foram Tânger e Bombaim, foi o ouro, a que já aludi, restando a soberania.

       Nos dias que correm, Portugal e o Reino Unido estão inseridos em estruturas internacionais, das quais enumero duas das mais relevantes, a União Europeia e a Organização do Tratado do Atlântico Norte, pelo que a aliança vem perdendo a pujança de outrora. Quedou-se como um resquício histórico, que convém lembrar em situações formais, honrando a história e os laços seculares. Mas ela está em vigor, e o futuro, incerto, num mundo perigoso e volátil, poderá proporcionar a sua reactivação desde o Arquivo Nacional...

13 de novembro de 2016

A Rapariga Dinamarquesa.


   Bem sei, bem sei, o filme estreou há cerca de um ano, sensivelmente. Não sendo um apaixonado por cinema, por mais estranho que pareça, espero que os filmes sejam emitidos nuns canais premium que assinei. Gosto de ver uma boa obra à noite, munido de uma chávena de chá ou de leite quente. Aguardar impacientemente por uma estreia sucedeu pouquíssimas vezes. A última deu-se com o Maleficent, em 2014, portanto, e foi uma decepção na história, compensada pela actuação magnífica da senhora Jolie.*

    Mas estou aqui para falar noutro filme. O título, em si, pouco me disse. Considerei simplista - desconhecia que era biográfico. Na medida em que não presto atenção, tão-pouco sabia sobre o que versava a história. Ontem, verificando os filmes que foram exibidos durante a semana, dei com este, e resolvi ir ler a descrição. Pensei: "Bom, todos já o viram, deixa lá perder aqui duas horas".

     Entediante no início, fui começando a intuir o desenvolvimento. Um jovem garboso, pintor, casado com uma rapariga, lá está, dinamarquesa. Veste-se de mulher para posar para a esposa, e ganha-lhe o gosto. Okay, muito giro. Não, não tão banal. O filme aborda a transexualidade nos anos vinte do século passado, com tudo o que acarreta, como a cirurgia de redesignação sexual - a primeira, mal sucedida, num experimento absurdo com as limitações científicas e médicas da época. Há, a meio, um amor impoluto e sublime que sobrevive a tudo, até à evidência de que não estamos perante um casal composto por um homem e por uma mulher, com o manifesto sofrimento que essa constatação provoca. As derradeiras cenas, impactantes, alternam entre a beatitude e a tragédia. Imagino que os meus leitores são bastante mais atentos e interessados do que eu, estando, então, à vontade para discorrer sobre o argumento.

       Recomendar um filme, que depreendo conhecido por todos, não faz grande sentido. Ainda assim, para quem não viu, veja. Os actores principais saíram-se bem, com interpretações magistrais. O enredo tem aquela veracidade tão estimulante, se tanto para mim. Fica a sugestão.

* Errata: Vi o filme "O Meu Nome é Alice", entretanto. Presumo que foi a minha última estreia.

9 de novembro de 2016

Trump, o dia seguinte.


     Em rumo contrário ao que a maioria das sondagens anunciava parcas horas antes, Donald Trump conseguiu ser eleito o quadragésimo quinto Presidente dos Estados Unidos da América. A sua principal oponente, Hillary Clinton, colheu os frutos de uma campanha que não convenceu o cidadão médio estadunidense, ou norte-americano. O êxito, é importante que sublinhemos, não é inteiramente de Trump. Há demérito da candidata do Partido Democrata, que representou o sistema e que sofreu o impacto do descontentamento dos seus compatriotas. Em artigos anteriores, eu enunciei o que penso de Trump, pelo que me escusarei a repeti-lo. Estudar o fenómeno Trump fora dos EUA seria importante, uma vez que o candidato republicano granjeou simpatia entre todos os que procuram uma política externa dos EUA menos intervencionista. No seio do seu país, acredito que as medidas proteccionistas - e populistas - de alguém que não possui a experiência política de Hillary, que jogou contra si, levaram os estadunidenses a optar pelo que lhes parece ser o mal menor.

     O mapa dos EUA com os votos contabilizados é peremptório: Trump ganhou, e fê-lo também em tradicionais bastiões democratas, como o Wisconsin e New Hampshire. Um enorme mapa vermelho cobre o território dos EUA. Na Nova Inglaterra, tradicionalmente democrata, Hillary manteve o status do seu partido. Mais abaixo, assegurou a Virgínia, onde se temeu o descalabro. Na costa ocidental, por seu turno, Oregon e Washington ficaram a azul. Na Flórida, um dos estados decisivos, Trump saiu vitorioso, impondo-se gradualmente como o futuro líder. Ao princípio da manhã, era evidente a vitória de Trump, ainda que a confirmação final não passasse de mera formalidade. Ohio rendeu-se, o Michigan também, e a partir daqui sabíamos o desfecho. Os estados do sul, rurais, que são historicamente republicanos, completaram a noite de sucessos para Donald Trump. No cômputo final, Hillary conseguiu obter mais votos populares, o que, todavia, não se reflectiu em assentos no colégio eleitoral, em virtude de o sistema estadunidense prever o sufrágio indirecto. Trump obteve 289 assentos - bastando para ser eleito 270 - e Hillary ficou-se pelos 218. Amarga derrota, que nem as populosas Califórnia e Nova Iorque, fiéis ao Partido Democrata, conseguiram contrariar. De modo similar, no Senado e na Câmara dos Representantes - o Congresso - Trump governará com apoio, tendo conquistado a maioria nas duas câmaras.

      Donald Trump afigurou-se como o candidato do homem branco, rural, trabalhador assalariado, que cativou, nas urnas, hispano (os republicados perderam no Novo México, entretanto) e afro-americanos e as mulheres, muito embora se tenha dirigido a todos nos termos mais reprováveis e indignos. O discurso odioso que propagou tornou-o, para muitos, um fait-divers, um entertainer de mau gosto, alguém vindo do social com aspirações pouco credíveis e levianas. Eu alertei, e fi-lo nomeadamente no último artigo em que opus Trump a Hillary, para o perigo de subestimar a ameaça Trump, máxime atendendo à deriva à extrema-direita a que vamos assistindo (cuide-se a França, e a Europa, com Marine Le Pen). No momento certo, com o aumento da tensão com a Rússia e com a desconfiança dos estadunidenses quanto ao seu futuro, quanto à política de emprego e quanto à deslocalização das grandes empresas, Trump proferiu as palavras que os cidadãos quiseram ouvir, ainda que tenham preenchido o boletim de voto com uma nuvem de incertezas pairando sobre as suas cabeças. Hillary representaria a continuidade, e tão-pouco foi uma figura imune a escândalos e a mexericos. Enquanto Secretária de Estado, estimulou conflitos em determinados pontos do globo, tornando-se numa mulher susceptível de gerar opiniões contraditórias e inimizades, não só entre os seus compatriotas como por quem não é cidadão estadunidense e não habita nos EUA. Eu diria que, por cá, pela Europa, e pelo Médio Oriente, houve quem suspirasse de alívio com o falhanço de Clinton.

        No púlpito, entre aplausos entusiastas, Trump foi mais comedido nas palavras, agradecendo à sua adversária e proclamando-se o presidente de todos os americanos. Será impossível passar um pano sobre a propaganda mal intencionada e xenófoba que fomentou. Em boa verdade, a realpolitik não se compadece de palavras vãs; Trump terá de trabalhar com mexicanos, com mulheres, com africanos, e estas primeiras afirmações vão ao encontro dessa postura mais conciliadora. A polarização, contudo, é inevitável. Uma parcela significativa de estadunidenses não se revê em Trump, e certamente não concordará com a administração emanada desta nova ordem.

        Não confio num Trump menos interventivo. A política belicosa dos EUA não dependente inteiramente do Chefe de Estado e de Governo que reside na White House, pois o intervencionismo estadunidense perpassa presidentes democratas e republicanos. Nas décadas recentes, Clinton ingeriu nos assuntos internos de outros Estados, Bush idem. A indústria de armamento envolve milhões e gera muitos interesses. Aliás, julgo ser pertinente o equilíbrio de forças na Europa, quando assistimos à reafirmação de uma expansionista Rússia, o que é diferente da afronta e da provocação gratuita. Para Portugal, a vitória de Trump não acarretará câmbio algum; Portugal foi um dos primeiros países a reconhecer a independência dos EUA logo no século XVIII e é membro fundador da OTAN. A menos que Trump, o que duvido, ponha em causa a estabilidade da aliança atlântica, tudo se manterá como está.
       Num exercício hipotético, possuindo a cidadania dos EUA, neste momento estaria preocupado com as medidas que Trump prometeu implementar, particularmente na saúde, com a revogação dos planos da administração cessante. A saúde continuará a ser fonte de negócio por lá, e o acesso universal aos seus cuidados estará comprometido, afectando milhões de pessoas carenciadas.

        Como observador e, se me permitem, cronista, estou expectante com os primeiros meses de governo Trump. Cederá o Presidente eleito ao establishment, ou, pelo contrário, revolucionará a nação estadunidense tal qual a conhecemos?

6 de novembro de 2016

Moments.


    As últimas semanas têm sido aborrecidas. Aproxima-se o período do ano que mais prazer me proporciona - o Natal. A bem ver, dou por mim a perguntar-me quanto ao que ainda me faz brilhar os olhos na quadra, se a iluminação, se o espírito da época, se as guloseimas. É provável que seja uma combinação. Em termos estritamente familiares, foi-se o tempo em que havia verdadeira comunhão e alegria. Os velhos, mais velhos estão, e os novos seguiram as suas vidas. Assisto à progressiva deterioração da saúde física e mental da avó, que desde a morte do avô nunca mais recuperou. A depressão tem-na acompanhado pela vida. Há dias, fui com ela ao especialista em saúde mental. Sublinhou a sua lucidez, a riqueza do discurso, mas diagnosticou-lhe uma depressão profunda. O remédio é sair de casa, espairecer. Tento sair com ela, levando-a a tomar um chá, a passear um pouco. Custa-lhe a caminhar. A sua magreza é deplorável. Alimenta-se pouco. Como diz o Herman José, envelhecer não tem realmente nada de bom. Para quê contornar o irrefutável? Envelhecer é um horror, e acompanhar o processo dos que nos são afectivamente mais próximos é angustiante.

    A meio destes pequenos dramas pessoais, ando à minha procura. Julgo-me perdido algures por aí. Ou talvez nunca me tenha perdido. Árduo trabalho ser adulto, sobretudo num mundo sacana. Estamos sós neste invólucro de matéria perecível. Viver não é bom, não é agradável. É um desafio, sem escolha prévia, que uns ganham e outros perdem. O equilíbrio de cada um ajuda a suportar melhor ou pior as evidências. Bem-aventurados os que atravessam a vida na ignorância ou no optimismo. São ambos uma bênção.