28 de novembro de 2013

À noite na cidade.


  Passei a tarde do último sábado a estudar. Fiz o exercício que me foi pedido e organizei a matéria para o próximo mini-teste a determinada disciplina. Mini na nomenclatura, visto que se trata de uma clara subversão ao sistema. Terá apenas duas perguntas que valerão por quatro ou seis. É uma boa piada para contar aos alunos do primeiro ano, não a mim. Às tantas, já não podia ver os apontamentos e os livros. Espetei com aquela tralha numa gaveta e saí. Tentei limpar o meu disco rígido. Que raio!, quando sempre disse a mim mesmo que jamais me renderia à trampa da faculdade, vejo-me na iminência de me tornar um verdadeiro autómato como muitos que por lá andam.

   Apanhei o metro e saí no Marquês. Desci tudo até ao Rossio. Enquanto caminhava, observei grupos de jovens, uns mais novos, outros da minha idade, razoavelmente, e ainda mais velhos, animados. Aparentavam, se tanto. Um rapaz mexia compulsivamente no telemóvel. Saíra do MacDonald's, a farda não enganava. Eis ali um trabalhador precário, futuro jovem desempregado, quiçá, alegre e sorridente. Quantos dirão que o futuro nada de bom lhe trará? A verdade é que sorria, sorria desalmadamente. Provavelmente teria a namorada à espera, ou o namorado, para uma noite de copos e folia. O nono ano de escolaridade poderá não lhe proporcionar tempos risonhos, mas a felicidade estampada no rosto, essa, certamente não seria da responsabilidade de um quarto ano de Direito com expectativas reais e muito concretas de um mestrado promissor.

   Não me agasalhei o suficiente. O princípio de constipação que se iniciara no dia anterior, intensificava-se com o avançar das horas. Entrei na Rua do Ouro. Já são visíveis os postes das luzes natalícias, armados, embora desligados. Na escuridão da rua, atenuada pela passagem dos veículos e por algum comércio que resiste ao frio e às vinte e uma e trinta, um edifício sobressai. A sede de um banco, de estilo neoclássico, todo iluminado, resplandecendo como um único halo brilhante. Do lado oposto, num degrau baixo, um rapaz apoiava um caderno de folhas brancas, de desenho, sobre a mochila e o seu colo. Estava a desenhar o prédio e a iluminação circundante, atraído pela cor e pela luz. Atentou em mim. Retribuí o olhar. Um súbito pé de vento revolveu-me o cabelo. A garganta doía mais e mais. Já sentia os gatinhos a arfar nos pulmões. 
  Invejei-lhe a destreza e a liberdade. Ali estava ele com o seu bloco, desenhando ao relento.

 Quis parar. Não parei. Só um louco dirigiria a palavra a um estranho. Sabe-se lá de onde é, o que faz, que história tem. O carácter não se vê no rosto, na expressão, que me pareceu dócil. Oh, mas o que me levaria a falar com aquele rapaz, não, não, não! Retomei o passo que abrandara. Quis olhar para trás, não o fiz. Chegando à Praça, senti-me só.

Que louco falaria com um estranho?

   Um louco que se aventurasse na calada da noite, que ousasse desafiar a lógica e a razão. O louco que nunca fui. E por isso tenho os livros.

22 de novembro de 2013

Assistente.


      Neste último Verão, foi aprovado o novo regulamento de avaliação. Se a figura das aulas plenárias já existia, embora informalmente, foi repristinada. As aulas práticas mantiveram-se inalteradas - e bem. Não há jurista sem o caso concreto. Diria mais: o que importa é entender e problematizar. Resolver também, como é evidente, mas o universo de novas questões suscitadas é muito aliciante.

    As aulas práticas têm o pendor de exigir uma participação activa dos alunos. O novo regulamente veio atribuir a essa componente um peso significativo. Ora eu não gosto muito de participar. Não por timidez. Não é esse o caso; nunca fui tímido. Não gosto de o fazer porque prefiro estar sossegado. Falo quando acho que devo falar e pouco mais. Até então, analisando os três anos precedentes, a parte oral sempre foi o meu calcanhar de Aquiles. Um por outro assistente referiu isso, não muitos, até porque a parte escrita compensava, e como, modéstia à parte, essa lacuna. Todavia, valoriza-se imenso, demasiado, a meu ver, a oralidade. Falam dos tribunais, da argumentação - e têm razão. Quanto a mim, como não pretendo exercer, não vejo vantagens ou qualquer problema por não me esforçar minimamente em falar e falar. Sento-me na segunda fila, de quatro, a meio, sensivelmente, e por lá fico. Ouço atentamente as resoluções dos casos, emendo quando tenho de corrigir algo, e é este o meu método. Posso dizer, mais das vezes, que as minhas resoluções estão quase sempre certas, não inteiramente, porque sempre falta algo. Nisso eles são terrivelmente chatos. Acaso participasse, sair-me-ia bem, mas não quero porque não quero. É ponto assente.


     Este ano, para minha pouca sorte, dei com um determinado assistente que não me deixa em paz, permitam-me a expressão. Não há aula em que não refira o meu nome. Fá-lo para me fazer perguntas e, quando assim não é, para se meter ostensivamente comigo. Na segunda, disse, em plena aula:

- Mark, está a dormir?

     Todos os colegas olharam para mim, ou quase. Eu não estava 'a dormir'. Pelo contrário, estava atento e a tirar tópicos de correcção do caso. Não gostei e fiz questão de o demonstrar com a expressão facial. Na terça, devido à falta do senhor professor, ficou incumbido de dar a aula teórica. Pois bem, lá sorriu, sarcasticamente, para mim. Virei-lhe a cara. Na quarta, de novo numa aula prática, pediu-me, simpaticamente falando, ou, em linguagem corrente, 'é melhor fazeres ou lixas-te', para resolver um caso prático, o número 7, que é enorme! Em princípio, resolvê-lo-ia como sempre faço. Agora, contudo, tenho essa obrigação. Ah, claro, já me esquecia, para a próxima segunda-feira, na aula, e em voz alta. Basicamente, tenho de me levantar, ir ao quadro, virar-me para a excelsa plateia e começar a falar. Aposto que o fez para me provocar, para testar a minha paciência.

    Eu tenho uma opinião sobre isto: uma vez que ainda não tivemos nenhum elemento escrito de avaliação, graças a este regulamento em vigor, o senhor deve pensar que sou burrinho. Como não abro a boca nas suas aulas, como não tem qualquer dado de cômputo quanto a mim, provavelmente é o que pensa. Entretanto, há mais alunos que nunca participam e ele nada faz. Não me faltava mais nada!

    Já disse à mãe: se tiver de ir a método B, ou seja, o método para quem não consegue nota de avaliação contínua, pois bem, irei. Será a primeira vez, mas não me importo. Quanto à tarefa, nem sei se farei o caso. Vou pensar. Admitindo que o faça, dir-lhe-ei que não. Não quero falar, muito menos porque faz parte de um mero capricho seu, uma birra comigo, qual menino birrento. Para mimado basto eu. Se persistir, deixo de ir à sua disciplina, faço no tal método e pronto. Se tiver de ir a oral de passagem, a primeira, irei também. Não há-de ser mais teimoso.

       Sinceramente? Já não o posso ver.

16 de novembro de 2013

Guerra Luso-Holandesa (1600 - 1663)


   Não seria excessivo designar a guerra entre as duas potências marítimas europeias como a verdadeira - e legítima - Primeira Guerra Mundial. Envolvendo mais do que Portugal e os Países Baixos, participaram ainda ingleses, dinamarqueses, espanhóis, japoneses, congoleses, persas, indonésios, cambojanos... Em boa verdade, o impacto provocado pelas baixas foi significativamente menor no conflito que se travou por mais de metade do século XVII, todavia, a população mundial era inferior. Que não se duvide da escala mundial do conflito: desde os campos da Flandres ao mar do Norte, passando pelo estuário do Amazonas, o interior de Angola, a ilha de Timor e a costa do Chile, as armadas dos dois países travaram importantes e decisivas batalhas que marcariam a geopolítica do planeta.

    Quando os Países Baixos se rebelaram contra a Espanha na Guerra dos Oitenta Anos pela sua independência, as possessões portuguesas foram o principal alvo da cobiça neerlandesa. O cravo-da-índia e a noz moscada das Molucas, a canela do Ceilão, a pimenta do Malabar, o ouro da Guiné e de Monomotapa, o açúcar do Brasil e os escravos da África Ocidental aguçaram a vontade holandesa em dominar o comércio que ao longo do século anterior tinha sido exclusivo de Portugal.
   As populações dos dois países eram relativamente idênticas em número, na proporção de um milhão e quinhentas mil pessoas nos Países Baixos para um milhão, duzentas e cinquenta mil em Portugal. Não terá sido esse o factor determinante para o sucesso inicial da investida holandesa. A disciplina, o porte físico, a alimentação e o poderio naval, superiores na contraparte, explicam a demora portuguesa em lograr sucesso, inicialmente, face aos sucessivos ataques aos seus domínios.

    Importa fazer um enquadramento. Nos finais do século XVI, Portugal encontrava-se num posição delicada, unido que estava à poderosa Espanha. Tratando-se de uma mera união pessoal, em Filipe II (I de Portugal), à semelhança da Escócia e da Inglaterra desde Jaime VI (I de Inglaterra), Portugal era a parte mais débil da união ibérica, o que resultou numa maior facilidade dos Países Baixos em atacar as possessões lusas. Por outro lado, a vantagem de atacar as potências ibéricas nos territórios de onde extraiam as riquezas para financiar a guerra fez todo o sentido. Desde o início da dinastia filipina, Portugal sentiu que a união com Espanha seria desastrosa. Efectivamente, não sem algum exagero, um dos motivos preponderantes que levou às ofensivas holandesa e inglesa, também, às possessões portuguesas, foi a união política com Espanha. Guerra que teve o pendor religioso próprio da época, na medida em que os portugueses, católicos apostólicos romanos, e os holandeses, calvinistas, se consideravam como os legítimos representantes da verdadeira religião. Demonstrando o conflito religioso, um cronista português do século XVI escreveria: "Os holandeses são apenas bons artilheiros, só são bons para ser queimados como heréticos inveterados (...)".

    À medida em que o tempo passava, os holandeses procuravam dirigir os seus ataques às colónias portuguesas na África, Ásia e América, litorais e costeiras, que eram de fácil penetração se comparando às vice-realezas espanholas do México e Peru.
      A expansão holandesa nos mares teve tanto sucesso quanto o início dos descobrimentos portugueses um século antes. Não seria justo negligenciar o facto de os neerlandeses atacarem também os domínios espanhóis. Em simultâneo com um ataque ao Brasil em 1624 - 1625, uma frota de onze navios e perto de dois mil homens navegou para o Pacífico através do estreito de Magalhães e atacou vários entrepostos do Peru e do México. Além disso, enquanto lançavam meios contra as colónias portuguesas asiáticas, não deixavam de investir nas Filipinas, domínio castelhano.


     O conflito luso-holandês começou com os ataques a São Tomé e ao Príncipe entre 1598 e 1599 e terminou com a conquista das colónias portuguesas no Malabar, em 1663. A paz com os holandeses só seria firmada seis anos mais tarde, em 1669, em Lisboa e Haia. Até 1640, os portugueses e os espanhóis lutavam contra um inimigo comum; a partir desta data, e dada a Restauração portuguesa, os lusos tiveram de lutar contra Espanha, na península, e contra a Holanda, no ultramar. O resultado final foi contundente: uma vitória holandesa na Ásia, um empate luso-holandês na África Ocidental, e uma vitória portuguesa no Brasil.

   As razões para a vitória dos holandeses na Ásia podem ser brevemente reduzidas a três motivos fundamentais: recursos económicos superiores, número de homens e poderio marítimo. O padre António Vieira, num escrito da época, relatou que os Países Baixos dispunham de catorze mil navios que podiam ser utilizados como barcos de guerra; Portugal não possuía nem treze navios da mesma categoria. Um censo de 1620 apurou apenas seis mil duzentos e sessenta marinheiros para tripular uma frota; em 1643, soube-se de que não havia em Lisboa um número significativo de homens que pudesse dirigir quaisquer navios até à Índia. Os neerlandeses, entretanto, tinham mais conhecimentos de estratégia naval do que a maioria dos vice-reis portugueses de Goa. Um dado curioso importa ressalvar: os portugueses contavam quase exclusivamente com fidalgos e senhores de linhagem para chefes navais e militares, ficando em desvantagem face aos holandeses que, acertadamente, apostavam mais na experiência e competência profissional. A burocracia já se fazia sentir naquela época. Um comandante português escrevia, desde a costa do Malabar, o seguinte: "Qualquer capitão holandês tem plenos poderes e muito dinheiro para utilizar em qualquer altura (...) Quanto a nós, temos de conseguir o beneplácito de uma autoridade superior (...)".

      O físico e a alimentação, já citados, constituíram outra desvantagem para os portugueses. Se os holandeses já naqueles tempos se queixavam da qualidade das suas rações, um soldado português escrevia, em 1644: "Estamos tão magros e tão esfomeados que nem três de nós se equiparam a um holandês (...)". A falta de disciplina e a excessiva autoconfiança ajudariam na vitória holandesa pela Ásia. Francisco Rodrigues da Silveira (1558 - ?), autor do manuscrito Memórias de Um Soldado da Índia, escreveria, em 1595, de que a maioria dos soldados de Ormuz dormia e habitava regularmente fora do castelo e, atente-se!, vinha fazer sentinela duas horas atrasados e, já atrasados ao serviço, mandavam à sua frente dois escravos para lhes transportarem as armas. Relatos da época dão-nos a conhecer de que em 1649, quando alguns marinheiros holandeses desembarcaram em Damão, não foram interpelados e nem encontraram qualquer sentinela porquanto toda a população dormia profundamente durante a sesta do meio-dia até às quatro da tarde. Maravilhoso! Há também referências à falta de munições por parte das tropas portuguesas e às armas enferrujadas e não utilizáveis.

    Considerando todas as vantagens de que os holandeses dispunham, poder-se-ia perguntar, então, qual o motivo que os levou a perder a guerra em Angola, São Tomé e Príncipe e no Brasil, depois de terem levado uns meros seis anos a destruir todas as praças portuguesas, uma por uma, na Ásia. Pode-se mencionar um: se bem que os homens holandeses eram, biologicamente, mais fortes do que os portugueses, e melhor alimentados, os portugueses estavam melhor aclimatados aos trópicos. Isso explica a vitória portuguesa no Brasil, nas célebres batalhas dos Guararapes em 1648 e 1649. Mas já no Ceilão, também ele tropical, os portugueses não conseguiram levar a melhor.

      Excluindo estas considerações, a razão básica que explicará o facto de Portugal ter conseguido manter uma parte tão extensa do seu império, mesmo após todas estas décadas de conflito, é a de que os portugueses, mal nutridos, preguiçosos, tudo isso e muito mais, ganharam nas raízes profundas enquanto colonizadores. Os holandeses não eram indiferentes a isto. Antonio van Diemen, governador-geral, escrevia, em 1642: "A maioria dos portugueses da Índia considera esta região o seu país-natal. Já não pensam mais em Portugal (...)". O cabo holandês Johann Saar acrescentaria: "Seja onde for que cheguem (...) os portugueses pensam estabelecer-se aí e nunca mais pretendem voltar a Portugal (...) Um holandês quando chega à Ásia pensa: quando o meu serviço militar de seis anos acabar, volto para a Europa (...)".

      Mutatis mutandis, a colonização do Brasil durante os efémeros anos de ocupação holandesa foi uma árdua tarefa. Maurício de Nassau, governador no Brasil holandês, avisou por diversas vezes os seus superiores em Haia e Amesterdão de que, a menos que enviassem holandeses, escandinavos ou até mesmo alemães para se substituírem ou misturarem com os colonos portugueses, estes manter-se-iam portugueses de coração para sempre. Regressando à Índia, relatos dão conta de que os indianos preferiam mil vezes negociar com os portugueses do que com os holandeses. Outro motivo de ordem social está directamente relacionado: os portugueses envolviam-se com indianas em muito maior escala do que ingleses ou holandeses, mais preocupados com a pureza de sangue. O catolicismo e as missões religiosas ajudaram a cimentar a posição portuguesa nestas terras longínquas. Embora coercivamente, os portugueses conseguiam implementar a sua religião, e língua, de modo mais fácil e profundo. Antonio van Diemen diria: "Os missionários portugueses são muito superiores e os seus padres papistas mostram muito mais zelo e energia do que os nossos pregadores leigos (...)". Mesmo nos locais dominados pelos holandeses, frequentemente as populações se esquivavam aos ritos protestantes e seguiam algum padre português às escondidas, rezando a missa e baptizando os seus filhos.

     Na língua, os portugueses levaram a eterna vantagem sobre os seus rivais. Uma vez que começaram primeiro os descobrimentos, os portugueses levaram a sua língua através dos mares, da América à Ásia, passando por África. O português tornou-se a primeira língua franca do comércio e dos negócios ou, em alguns casos, uma adaptação do idioma, que originaria os diversos crioulos. Na altura em que foram substituídos pelos holandeses em diversos domínios, a língua portuguesa já estava de tal forma implementada e enraizada que os holandeses não conseguiram erradicá-la. Durante os vinte e quatro anos de ocupação holandesa no nordeste brasileiro, a população local recusou-se obstinadamente a aprender o holandês. Em Angola e no Congo, a maioria dos escravos manteve a língua de Camões, não fazendo qualquer esforço para aprender a língua dos seus senhores. Ironia das ironias, a supremacia da língua portuguesa sobre a de Vondel é observada na Batávia, a capital colonial holandesa. Os portugueses só aí estiveram como prisioneiros de guerra, contudo, um dialecto crioulo português foi introduzido por escravos e criados domésticos a ponto de ser aprendido pelos próprios holandeses que consideravam uma honra saber falar outro idioma. A cultura do povo holandês assim o explica. Cultura essa que jogou contra eles neste aspecto. Aliás, o português influenciaria o idioma africânder na África do Sul, língua de origem maioritária holandesa.

11 de novembro de 2013

Sunday morning.


   Pela manhã, abrindo a janela do quarto, descobri um sol bastante auspicioso. Um quarto, meia hora mais tarde, as nuvens encobriam-no, revelando uma claridade acinzentada, própria do Novembro. De temperatura amena, concordei quando optou que o nosso encontro ficasse marcado para o domingo. Aos sábados, está com a mãe, dá-lhe atenção, escuta-lhe as maleitas, conforta-a. Estuda, sai, caminha sozinho como gosta. Não sendo o que se chamará de prioridade, continua a gostar de estar comigo e, neste jogo de dá-recebe, todos ficam a ganhar.

   Não o via há três semanas. Semanas que pareceram meses e que, ou muito me engano, são um prenúncio. Achei-o um tanto ou quanto irónico, meio que despregado. Como sempre, anda aceleradamente, contudo, não mais acompanha o meu passo. Desvendei-lhe o primeiro sinal.
   Decidimos, na noite anterior, ir até ao Museu da Cidade. O jardim, agradável, propicia boas conversas. Os bancos, verdes, de uma madeira pintada até à exaustão, não poderiam ser maiores, aumentando a distância entre nós. Falou-me dos trabalhos, do curso, uma vez mais, do jantar de turma e, veja-se, de uma possível ida a um bar com colegas. As pessoas, de facto, são uma caixinha de surpresas. À minha constatação do frio que se fazia sentir, repentino, surgindo com um vento, não demonstrou qualquer preocupação. Resolvemos entrar no museu. Valeu a pena.


   Conhecendo-o de uma ponta à outra, nunca me canso de revisitar a história de Lisboa, os seus rostos por séculos. Num dia particularmente estranho, o semblante de D. Maria I, a minha monarca favorita, trouxe-me algum alento. Uma mulher inteligente, perspicaz, religiosa demais, talvez, crescendo num período difícil de grandes mudanças sócio-políticas. Não conseguiu, ou não soube, adaptar-se aos revezes da vida, caindo num longo quadro psicótico de vinte e quatro anos. Pobre D. Maria!

   Aconselho vivamente. Além de abordar a cidade desde os seus primórdios, passa pela Idade Moderna, pelo terramoto, claro está, e pelo liberalismo (século XIX) até à I República. Numa maquete, vê-se claramente as diferenças arquitectónicas entre a Lisboa medieval e a cidade nova que nasceu com o engenho e a astúcia de Pombal. Não fosse a catástrofe e, hoje, o que teríamos? Ruas estreitas, prédios inclinados, um palácio da Ribeira, paço da Corte, cheio de tesouros incalculáveis, mapas dos descobrimentos e uma biblioteca riquíssima que sucumbiu nos escombros. Estou de mal com o terramoto. Ao menos poupou-nos o Aqueduto, os Jerónimos e a Torre de Belém, malandro.


   Foi uma visita curta, tão curta quanto os olhares que trocámos. Deu para pegar nuns ramos de umas árvores e explicar-me acerca dos frutos, das flores, das pragas, dos bichos todos e mais alguns, indiferente a mim, à minha presença. Voltámos a ser dois estranhos. Sei, porque sei, que não é nada pessoal. Ele é assim, arredio. É dele. Não sabe o que quer. Acredita, provavelmente, que casará, terá filhos, será muito feliz. E espero que o seja. Mas que não deixe a mulher, de noite, e os filhos, dormindo, enquanto se perde em escapadinhas fortuitas nas camas de outros homens, cuja carne devora sofregamente. Ou pior, que se torne um decrépito homem, só, abandonado, dando o seu corpo em troca de prazer fugaz. Eu não estarei lá para ele.

    Despedi-me com um aperto de mão e virei costas. Não olhei para trás. Pela primeira vez.

5 de novembro de 2013

Encanto.


    A faculdade, à noite, tem vida. Até uma determinada hora. Assistir às aulas do quarto ano / turno da noite tem sido compensador. Mudam os professores, muda o ritmo e a sequência programática, completando-se assim algumas lacunas que fiquem. O anfiteatro está aberto e a entrada é livre. A mãe fica possessa pelas horas que passo por lá. Estou feito bicho universitário no melhor dos sentidos. Há quem o seja noutros. Salvo a honra do convento pela necessidade.

    Estabeleci um objectivo concreto: superar-me a mim mesmo. Tenho de ter a melhor média, dos quatro anos, neste ano. Quero subir e, não o fazendo agora, chapéu. E como chapéus há muitos, já dizia o saudoso Vasco Santana, eu não quero pertencer a esse grupo alargado de chapéus. De preferência, um dos modelos únicos.

   Claro que há sempre tempo para descontrair e até navegar pela net, não sujeito que estou a atenção constante. Isso já o faço de dia. Consigo direccionar a atenção para onde quero. É uma qualidade, mais que defeito. Num desses momentos monótonos, à noite, assisti a uma cena que muito me agradou. Nada comigo, é certo, mas evidencia uma realidade que cada vez mais é perceptível.


    Na bancada em que estava, no sentido oposto, um rapaz olhava constantemente para outro, imediatamente abaixo. Em bom rigor, observava-o enquanto este mexia no tablet, assim pensei eu. Todavia, insistindo, cedo me apercebi de que havia algum interesse. Por vezes, do tablet o rapaz passava para o cabelo do outro, e para o peitoral, e para os braços, e era todo um olhar enternecedor de alguém que estava visivelmente interessado. O segundo rapaz teve noção de que alguém olhava com insistência para si, não para o seu tablet, e não demonstrou qualquer incómodo. Na verdade, já o conhecia não só de o ver nas aulas nocturnas, como também do metro, visto que sai na mesma estação que eu. É elegante, alto, entroncado.
   Assim passaram os cinquenta minutos, um jogando, fingindo-se de parvo, e o outro apreciando e apreciando. O que achei mais engraçado foi ao olhar do primeiro rapaz, de uma ternura apaixonante pelo segundo. Acredito que já o andasse a rondar. No final da aula, o rapaz do tablet saiu e o primeiro, atrapalhado, levantou-se num ápice e até deixou resvalar a mochila para o chão. Não contive uma risada silenciosa e discreta. Tive imensa curiosidade em saber o que estaria a acontecer lá fora.
       Tudo isto foi há dias.


       Ontem, passando pelo bar da faculdade para comprar um sumo, vi-os a entrar, sorridentes.

    É de momentos como estes que o mundo precisa. De pessoas que se conhecem, se dão e trazem algo consigo. Fiquei feliz por aqueles dois rapazes, colegas, que não conheço e com quem nunca falei. Feliz porque assisti ao nascimento de qualquer coisa, o que eles quiserem, o que pretenderem construir, seja o que for.