Hoje, depois do almoço, detive-me a ler um daqueles jornais sensacionalistas que não primam pelo rigor, nem pela discrição. Há quem lhes chame tablóides, eu prefiro designá-los por incendiários. Dão ao povo o que ele quer: crimes, mexericos e intrigas de quintal, alimentando uma parcela da população que mal tem a antiga quarta classe dos nossos avós.
Entre um assassinato, um assalto e uma modelo com as mamas de fora, li a declaração da chefe de governo alemã, Angela Merkel, relativamente à alegada futura adesão da Turquia, dizendo que «a democracia era inegociável». Ora, eu não sou conhecido por concordar com a senhora Merkel, nem por discordar, mas esta sua afirmação pareceu-me totalmente assertiva. Não gosto da UE, nunca gostei, e duvido que venha a gostar. Já referi por aqui os motivos umas milhentas vezes e não os pretendo repetir. Todavia, se há algo de que me orgulho na organização internacional travestida de confederação com propósitos federalistas é precisamente a liberdade, o respeito pelos direitos humanos. Salvo raras e salutáveis excepções, o Velho Continente ainda é um dos melhores sítios para se viver, e dos mais seguros e respeitadores da dignidade da pessoa humana (não, não é uma redundância - pessoa humana. Explicarei numa outra ocasião, mas posso adiantar de que épocas houve em que nem todos os humanos eram pessoas. É menos complicado do que parece).
A Turquia não preenche, de forma alguma, os requisitos que permitem a sua adesão à UE, conquanto ainda seja considerado um país europeu. Não o digo pela sua posição geográfica (Israel não é europeu, de todo, e participa na Eurovisão). Quem estabelece os critérios são as pessoas. Também não me causa espécie alguma por ser um país maioritariamente islâmico, pese embora laico na sua Constituição e na organização do Estado. Aliás, relembro a polémica surgida em 2003/04 aquando da famosa (por péssimos motivos) Constituição Europeia. Quiseram incluir uma menção ao papel do Cristianismo na construção da Europa e muitas vozes se insurgiram, num fanatismo laico que não lembra à Revolução Francesa. Já na altura, novito que nem uma andorinha saída do ninho, no início da minha adolescência, entendi que essa menção, existindo, seria mais do que justa. De facto, o Cristianismo desempenhou um papel notável na formação da Europa. Veja-se, a Santa Sé era a entidade que reconhecia formalmente a existência dos Estados. Só por aí... Vislumbro até uma Turquia europeia de pleno direito com um preâmbulo exaltando os ideais cristãos. Não é por aí. O que não posso consentir, enquanto europeu, é a entrada de um país que viola sistematicamente os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, maquilhando o seu regime com truques de baixo ilusionismo, como o foi a abolição da pena de morte. Um passo importantíssimo, por certo; não chega. E duvido que a Turquia esteja empenhada nesse sentido.
A actuação da União é também ela criticável. O estado turco formalizou o seu pedido de adesão em 1987 (!) e, em Outubro de 2005, iniciam-se formalmente as negociações de adesão. Convém aqui referir que, desde 1996, há uma união aduaneira com a Turquia.
É reconhecido de que os líderes europeus não querem a Turquia no seio da União, contudo, não têm coragem de o afirmar peremptoriamente, arrastando a situação por décadas. Há relativamente pouco tempo, li um texto que abordava precisamente o crescente desinteresse do povo turco, e a consequente perda de esperança, no sonho europeu.
Sonho que em tudo fez lembrar o não menos famoso american dream, mas que cada vez mais se assemelha a um pesadelo... para todos.