28 de setembro de 2020

Não deixar que o medo nos domine.

 

   Desde o início da actual conjuntura de pandemia que me recusei a ser tolhido pelo medo. Praticamente não fiz quarentena. Não incumpri com as recomendações (imposições) das autoridades, mas arranjei sempre uma forma de sair, nem que fosse ao supermercado da esquina para comprar pão. Pelo meio, adoptei o Diesel, passando a ter de o acompanhar nos passeios diários. Posso-lhes dizer que, se fiquei dois dias sem pôr o pé na rua, foi muito.

    De momento, em meio de uma, dizem eles, segunda vaga, pondero viajar até ao norte da Europa, e só não o farei se não mo permitirem, que é o mesmo que dizer se suspenderem os vôos, se encerrarem os serviços, se fecharem as cidades ou se surgir outro impedimento alheio à crise sanitária. Para mim, sempre foi ponto assente. Protejo-me e protejo os outros, entretanto, não deixarei de viver, de sair, de me divertir, se for caso, para ceder a um medo que me parece em tudo irracional. Pandemias, sempre as tivemos; de doenças respiratórias, sempre morremos. Mais, eu tenho sido bastante atormentado com síndromes respiratórias, sendo asmático, desde que me conheço. Teria um motivo acrescido para ceder completamente e, ao invés, longe de desafiar o vírus ou me expor inconsequentemente a uma infecção, procuro fazer uma gestão equilibrada de uma situação insólita a que não estamos acostumados.

   Temos ponderado as consequências que as nossas escolhas terão na vida das crianças e dos idosos, sobretudo? Enclausuramos pessoas que estão no ocaso das suas vidas dentro de suas casas, sob o pretexto de as proteger. É este o final de vida digno que lhes damos?

    Assim como me parece leviano e quiçá mesmo criminoso negar-se o vírus, e tem havido quem o faça, insisto, e isso tenho defendido, na gestão equilibrada, repito, da conjuntura de pandemia. Continuemos a viver. Façamo-lo com responsabilidade, precaução, realismo. Todos estamos expostos ao vírus. Quando se proporcionou viajar a Portugal no mês passado, ponderámos todas as possibilidades, e decidi-me a ir ver a minha mãe, com quem não estava há meio ano. Viajei de transportes, fiz transbordos, sozinho, e felizmente nada de mau ocorreu. A outra hipótese seria a de não a ver. Deixar de estar com ela, de aproveitarmos alguns momentos. Não permitam que o medo lhes roube vivências, experiências, qualidade de vida, vida.

10 de setembro de 2020

Kafka à beira-mar.

 

   Antes de viajar para Portugal de férias, dei por terminada a leitura de mais uma saga de Haruki Murakami, Kafka à beira-mar, que me ocupou por alguns dias. Este livro é o segundo do autor que leio, depois de, no ano passado, ter terminado O Impiedoso País das Maravilhas e o Fim do Mundo, que me vi necessariamente obrigado a conjugar com leituras jurídicas visto estar em época de exames. Este ano, não foi o caso.

   Kafka à beira-mar, à semelhança da obra que lera de Murakami, aborda estórias entrecruzadas, no universo surrealista que envolve o emaranhado de relações que se estabelecem nos seus romances. Desta feita, temos um jovem de quinze anos que foge de casa, afligido por um complexo de Édipo mal-ultrapassado, e um velho que sabe falar com gatos antropomorfizados. O que os une, nunca chegamos a perceber, intuindo, em contrapartida, que as suas vidas se cruzam no deslindar de segredos e suspeitas. O velho, Nakata, é das mais enternecedoras personagens que encontrei em ficção, pela candura e ingenuidade. É provável que tenha vindo preencher uma lacuna que guardo em mim; quiçá o ternurento avô que nunca tive, ou, pelo contrário, porque não mais é possível encontrar-se alguém assim, tomando como certo de que ainda subsistem pessoas como Nakata. No que respeita ao rapaz, a mãe, que desaparecera, é objecto de afeição e desejo, a que se soma uma culpa que lhe é imputada pelo pai, um sujeito vil e odioso. Um fardo pesado num rapaz de tenra idade, que se abstrai em leituras e no culto de um corpo forte, capaz de resistir a todas as intempéries pessoais.


    

    O que há, de resto, em todos é a solidão. Nos dois livros de Murakami que li, há uma solidão presente em cada personagem, nos seus momentos a sós e com terceiros. As existências conjugam-se, mas, no fim, o que resulta é a própria condição humana, o vaguear na incerteza e no infortúnio.