30 de agosto de 2015

A Mulher.


    Se atentarmos à fisionomia de cada um dos géneros que compõe a espécie humana - e a maioria das espécies do reino animal - constataremos que não é igual. O homem tem características que a mulher não tem, e vice-versa. O património genético que herdamos, não fosse o cromossoma 23, é exactamente o mesmo. Podemos, então, concluir que as nossas diferenças residem num único cromossoma, o suficiente para que tenhamos sexos distintos, a começar no imediato pela genitália, e características secundárias que também elas nos dão a clara certeza (darão?) de que estamos perante um homem e/ou uma mulher.

      Não sou sociólogo, logo, escusar-me-ei a considerações que nos remetem à origem da crónica dicotomia homem vs mulher que tem originado, por tantos milénios quantos tem a espécie humana, a discriminação social entre os géneros. Não será difícil imaginar como terá começado. Sendo o homem, regra geral, fisicamente mais forte do que a mulher, porque a Natureza assim quis, ter-se-á ocupado das tarefas mais perigosas e que exigem maior dispêndio de forças, como a caça a animais de grande porte, a pesca. A mulher, até pela maternidade, ficou-se pelo trabalho doméstico, pela árdua tarefa de amamentar, cuidar dos filhos. Pelo tempo, as naturais apetências de cada um originaram uma supremacia de um dos géneros sobre o outro, ficando a mulher totalmente à mercê do pai, em primeiro, mais tarde do marido. E tem sido assim, de uma ou de outra forma, o percurso que temos feito.

       As Revoluções Liberais quase nada fizeram pela mulher. O voto não lhe foi permitido. A sua posição, desde Roma, em que tão-pouco era considerada cidadã, sofreu parcas alterações. O lar. Obedecer, casar, dar continuidade à espécie, com raras excepções a esta linha mais ou menos óbvia. Houve mulheres que pela sua firmeza, coragem e bravura se distinguiram. Cleópatra VII, Joana D'Arc; Isabel, A Católica; Maria Stuart, A Sanguinária; Isabel I Stuart, A Rainha Virgem; Catarina, A Grande, entre tantas outras. Por cá, D. Leonor Teles, a odiosa esposa de D. Fernando, mulher firme, o que tal má fama lhe granjeou...; D. Catarina de Áustria, esposa d' El Rei D. João III, regente do reino na menoridade do futuro D. Sebastião, espanhola, senhora de fibra; D. Maria I, primeira Rainha de jure, por direito próprio, filha de D. José e herdeira legítima do trono; e por que não referir D. Maria II, nossa segunda monarca senhora, de vida cujo desfecho foi algo dramático. Ainda assim, D. Maria I necessitou que defendessem a sua causa, o seu direito a reinar, porquanto muitos teriam preferido ver sentado no trono, em seu lugar, o seu filho primogénito, José (em homenagem ao avô). Consta-se, aliás, que esse teria sido o desejo do falecido D. José, seu pai, e do próprio Pombal.  A vida destas mulheres, embora agraciadas pelo facto de terem podido exercer com influência os anos que o destino lhes permitiu, não foi imune a invejas, a vilipêndio. O preço a pagar por se competir com homens.

      Foi o século XX que, efectivamente, trouxe à mulher o reconhecimento dos seus inalienáveis direitos. As sufragistas por isso lutaram - e conseguiram. Um pouco por todo o planeta, a mulher foi alcançando o direito de voto e, lentamente, demais direitos, consagrados em leis fundamentais e em diplomas ordinários: direito ao trabalho, igualdade salarial, protecção jurídica nos casos de violência conjugal, doméstica, acesso a cargos até então vedados e a profissões tidas como exclusivamente masculinas, como os corpos de segurança, possibilidade de progressão na carreira. Em Portugal, a Constituição de 1976 consagrou, em definitivo, a igualdade formal e material entre o homem e a mulher. No ano seguinte, em 1977, o Código Civil conheceu uma reforma profundíssima que lhe expurgou as normas, ou as reformulou, que continham qualquer menção discriminatória quanto à mulher (Decreto-Lei N.º 496/77 de 25 de Novembro). Nesse sentido, livros como o Livro IV da Família e o Livro V respeitante ao Direito das Sucessões foram os principais visados pelo diploma. Dois anos depois, em 1979, o Decreto-Lei N.º 392 de 20 de Setembro veio eliminar as demais barreiras que se erguiam à mulher no mundo laboral.

     Todas estas alterações legislativas acompanharam, mutatis mutandis, a evolução social que se efectivou em relação à mulher e à injustiça que presidia à continuidade de tão desigualitário panorama legal. Nos intermináveis anos da Guerra Colonial, como acontecera anteriormente, lá fora, com a Segunda Grande Guerra, as mulheres viram-se obrigadas a tomar as rédeas das fábricas, das oficinas, dos postos que pertenciam aos seus maridos, dada a mobilização destes para as fileiras.
      Muito há ainda por fazer. Sabemos que as leis de nada valem se não forem cumpridas. E para as fazer cumprir, exige-se uma fiscalização rigorosa e perene.

       Desta vez, decidi guardar o que seria uma introdução para o fim. Deu mote a esta excursão um diálogo que ouvi entre pai e filha, há dias, enquanto caminhava. A menina, de tenra idade, uns seis anos, andava atrás do pai, ignorando a advertência deste para que se mantivesse em casa, junto à mãe. Perante a insistência da filha, e enquanto se dirigia ao capot de um carro, exprimiu todo o seu preconceito naquele lugar-comum que já ganhou uma certa, como direi, comicidade: «Isto não é trabalho de mulheres!» Surpreso ficaria, o senhor, com a quantidade apreciável de senhoras motoristas, polícias, e por aí. Quem sabe e não estimula, com a sua atitude, uma afirmação da filha? Prevê-se uma dor de cabeça. Para ambos.

24 de agosto de 2015

O Comboio da Esperança.


    É assim que lhe chamam os milhões que atravessam a Europa em busca de um sonho, um sonho de ventura, da bonança que os esperará quando avistarem, ao longe, o cume da Torre Eiffel, o Coliseu de Roma, o Portão de Brandemburgo. Para isso arriscam as suas vidas. A terra natal está lá atrás, onde ficaram os pais, os avós, as brincadeiras de criança, de barriga vazia e pé descalço, na tranquilidade só perturbada quando ao clima de paz se sucediam levas de conflitos com Estados vizinhos ou guerras civis.

     Percorrem quilómetros a pé, e por quantas vezes atravessam o Mediterrâneo em embarcações de papel, frágeis, lotadas, naufragando os desejos e os seus corpos exangues. Chamam-lhe refugiados. Os mais distraídos preferem a designação imigrantes ilegais. São tudo e são nada. Apenas pessoas sem nome, de história que ninguém quer saber. Filhos da tragédia. Por agora, tudo o que querem é deixar a Grécia, viajando pela República da Macedónia e conseguindo passar a fronteira da Sérvia. Depois, o medo do desconhecido não consegue superar o entusiasmo. E é isso que vemos nos seus rostos: a alegria, as risadas de contentamento quando conseguem obter um lugar disponível no comboio que lhes promete uma nova vida na terra das oportunidades, a velha Europa. Nem o calor que se faz sentir nos vagões cheios os demove. Enfrentam, em condições sub-humanas, a dor, a fome, as ordens de policiais que os acompanham. Aos que não conseguem, o que resta é esperar nos campos de acolhimento, instalados nas imediações das linhas ferroviárias, sujas, de cheiro nauseabundo, repletas de lixo.

    Para os líderes europeus, não passam de números. Números que engrossam as estatísticas. A Convenção de Genebra, de 1951, define o seu estatuto, os seus direitos. A generalidade dos Estados europeus é signatária. Cumprir, todavia, com os preceitos da Convenção torna-se mais complicado. Teme-se que levas de refugiados inundem a Europa sem que os Estados receptores reúnam os requisitos mínimos para os acolher. Com efeito, aumenta-se o controlo fronteiriço, inclusive nas fronteiras marítimas, mas o que fazer quando famílias inteiras com mulheres e crianças pequenas conseguem entrar no território de um Estado? Criar condições para que aí se fixem, possam estudar, trabalhar, seguir as suas vidas calmamente, longes do cenário de instabilidade que os trouxe. Sem embargo, há que olhar para o tecido económico e social do Estado receptor. Não é censurável que definam numerus clausus, negando-se a aceitar todos os refugiados que ultrapassem essa barreira legal imposta.

    A política dos homens e das mulheres poderosos pouco importa a quem nada tem, excepto uma força que germina e que os impele a procurar por uma existência mais digna.

21 de agosto de 2015

Dandy.


     Sem que o percebesse, pouco falta para a rentrée. O regresso ao trabalho, às aulas. E em nenhum ano quis tanto ter de novo uma rotina. Pouco aproveitei destas férias. 
     Fui uma só vez à praia. Bebi mais cafés do que os que devia, fui sedentário até à exaustão, quebrando uma vez por outra com uma ida ao museu, uns passeios pelos jardins da Gulbenkian ou até mesmo pela Baixa, que nunca me seduziu por aí além.

     Entretanto, vou ficando uns dias por outros em casa do amigo. Damos umas voltas, jantamos fora, vemos filmes. Acompanhamo-nos mutuamente, que sempre ajuda a passar o tempo e a colmatar alguma carência.
     Descobri que detesto o calor. Recordo-me, em pequeno, de ansiar pelo Verão, pela roupa curta, pelas idas à praia. De momento, foi-se o que restava. Que chegue logo o tempo cinzento, o frio, a chuva.

      De há uns dias a esta data tenho andado mais melancólico. Não sei bem definir. Um estado de apatia. Às vezes dou por mim a querer chorar no meio da rua. Lá ponho os óculos de sol para que ninguém veja. Algumas lágrimas escapam por trás das lentes. Nada que uma mão ágil não resolva. Não gosto que me vejam triste, detesto que tenham pena ou que fiquem muito sensibilizados. Pouco me importa se mal dissimulo a fraqueza - não tenho problemas com isso; apenas creio que é enfadonho passar a vida a lastimar e a ser conhecido por se estar triste ou por se ser uma pessoa especialmente instável emocionalmente. O que se quer é alegria, é conviver com quem nos possa divertir. Como pouca alegria transmito, prefiro isolar-me. Antes assim.

       Não obstante a melancolia, certa fúria consumista apoderou-se de mim. Tenho comprado este mundo e o outro. Nada muito dispendioso. Uma mochila nova, alguma roupa, um relógio - o maior devaneio. Raro é o dia que chego a casa sem um saquinho. Sei lá, apetece-me. O que não quero é pensar. Tenho os neurónios em água. Comprar é do mais simples: chego, escolho, pago. Simples. Sento-me no último piso do ECI, bebo um chá, como uns scones, penso no que compro a seguir. Um tanto ou quanto dandy. Depois, vou alternando entre sorrisos de saquinho na mão e lágrimas, como se o mundo fosse acabar. Não, não sofro de qualquer distúrbio de humor. Isto deve ser mais complexo do que isso. Já pensei em ir ao psicólogo - a avó paterna tem consulta no psiquiatra daqui a uns meses (uma senhora com quase noventa anos), mas não tenho paciência para tanto bitaite e laracha. Os dois dedos de testa que tenho dizem-me para poupar dinheiro em experimentos e procurar um livro qualquer de auto-análise. 
      O pai já vai na meia-idade e começa a ficar insuportável: excede-se, irrita-se com facilidade. É mal de família. Se uns temem acabar calvos, barrigudos, sentados no sofá em frente à caixa mágica; eu, muito provavelmente, acabarei a recitar tomos e mais tomos disto e daquilo, senil, num qualquer hospício perto de si, com bastante cabelinho, de preferência. Brinco (ou não).

       Por ora, preciso de me entreter para pensar o mínimo. E é isso que vou procurando, mal ou bem.

17 de agosto de 2015

Neblina.


     Nada como a tempestade para nos fazer sentir pequenos. Metaforicamente. O desconforto interior, os anseios de vaidade. De que discurso superior vale? Dura realidade. O trilhar em direcção ao vazio, observando quem vem e vai em percursos rotineiros, certeiros, verdadeiros. Quem sou, para onde vou, como estou. Quem me quis, quem me diz o que fiz.

     Mamã, conforta que o mundo é mau. Ela sabe. A manhã dói, a dor maior, que a tarde traz o sol que aquece a pele, negrume corrói. Perdi-me de mim, dos sonhos que não vivi, feitos de cetim, da cor de carmim. Que aroma a alecrim!

    Se um dia cá voltasse, reescreveria as linhas do tempo. Dir-lhes-ia o momento, construiria cada fragmento, contornaria o mal por dentro. Sair-me-ia bem em tudo quanto fizesse, assim o quisesse. Alegria que nunca aparece.

        Sorriria todos os dias, se Mo permitirias. Correria pelo prado, oh meu triste fado!, que ser inacabado.

        E a ilusão dissipou-se no ar. Acordem-me quando ela voltar.

11 de agosto de 2015

A cobiça pela Al-Andalus.


     O autoproclamado Estado Islâmico, sem qualquer reconhecimento internacional, nunca me mereceu a menor atenção. Mais um grupo jihadista, fundamentalista, pronto para propagar e fazer impor pela força as suas convicções, na lógica da linha a que organizações terroristas como a Al-Qaeda nos vêm habituando. O que, todavia, distinguirá este grupo é a sua bem sucedida campanha militar, aproveitando conflitos armados e cenários de instabilidade política para ir conquistando, cidade em cidade, reduto em reduto, parcelas de território pelo Iraque e pela Síria.

      A intolerância religiosa, que é tónica em organizações desta índole, sobressai no designado Estado Islâmico. Minorias católicas são perseguidas, convertendo-se forçadamente ao Islão, sob pena de morte. Também minorias dentro da grande família islâmica, como os xiitas, são alvo fácil da repressão e do extermínio. E se a igualdade entre o homem e a mulher não passa de uma miragem na generalidade dos países de maioria muçulmana, não laicos, nas áreas controladas pelo Estado Islâmico as mulheres estão subordinadas às estritas e rigorosas leis da Sharia, agravadas, recrudescidas, sujeitas a todo o tipo de humilhações e sevícias, inclusive sexuais, vítimas de estupros e de sequestros.

    Tão-pouco o património cultural do Iraque escapa à fúria jihadista. Monumentos são destruídos impiedosamente, em tentativas de fazer sucumbir as idiossincrasias de um povo.

      A comunidade internacional apaticamente vem reagindo, com declarações superficiais, carecendo de efectivos esforços na luta contra tamanha barbárie.

      Como todos os grupos que defendem a conquista de um espaço vital, agora como no passado, também o Estado Islâmico faz referência, frequentemente, ao que designa como o seu califado. Amplos territórios que englobam todo o Médio Oriente, Magrebe e ainda um bom pedaço da África ocidental, central e oriental; a Ásia Menor e boa parte da Europa de Leste, bem como Estados a sul da Rússia, outrora pertencentes à União Soviética; e... a Península Ibérica, ou a Al-Andalus, como a denominam, na senda dos seus antepassados.

       Não somos povos estranhos aos muçulmanos. Pelo contrário, surgimos, portugueses e demais povos da Hispania (hoje espanhóis), nas guerras pela reconquista peninsular, desde a conquista islâmica iniciada em 711 e só travada por Carlos Martel em 732, na Batalha de Poitiers. Durante séculos, debatemo-nos na reconquista cristã, logrando nos nossos intentos e fazendo o território da Al-Andalus diminuir, progressivamente, à medida em que os muçulmanos iam perdendo o Algarve (conquistado por D. Afonso III em 1249), Córdova, Sevilha e, por fim, Granada, em 1492, o que veio permitir apenas uma reunificação tardia das Españas, porém sem Portugal. Desde então, a reocupação da península paira como um desejo ardente em algumas facções islâmicas extremistas, incorporadas pelo actual Estado Islâmico, que adoptou esse objectivo nas suas intenções.

       Incauto será aquele que procurar subestimar a capacidade do Estado Islâmico em conseguir provocar o pânico e até, levando vantagem, poder perturbar os nossos Estados democraticamente constituídos, assentes em sociedades plurais e livres. As alianças que firmámos poderão não ser suficientes para suster a ameaça. Não temos um longo oceano que nos proteja, como os E.U.A, e nem os Pirenéus a servir de barreira. Agora como dantes, o estreito de Gibraltar não é entrave.

        Desdenhar do adversário tem provocado sérias derrotas ao longo dos tempos. Precaução, alianças, visando um entendimento e consensos estratégicos, particularmente entre Portugal e Espanha, os alvos, mas também alargados, com a Europa - que é parte interessada (não podendo esquecer que a cobiça estende-se à Europa de leste), são indispensáveis para podermos falar de algum grau de segurança e de tranquilidade que perdure.

6 de agosto de 2015

Nuno.


   Nascido nos anos '70, a infância de Nuno tinha tudo para ser passada na aparente tranquilidade de uma década que mudaria os destinos do país, absolto que estava de alimentar as fileiras de uma guerra injusta e perdida. Filho primogénito por ambos os progenitores, nos primeiros anos oscilou entre o carinho da mãe e da avó materna, brasileiras, e do pai e dos seus avós paternos, portugueses. Aos cinco anos, Nuno teria um irmão menor, um brinquedo para si, passando de alvo das atenções para pequeno guardião do novo tesouro que embevecia a sua família.
 
   A infância seria marcada por algum alheamento do pai, um distanciamento entre o papel que deveria desempenhar e a figura paterna que, com efeito, surgia diante do petiz. A mãe, por seu turno, via-se obrigada a ausentar-se por noites a fio, restando ao menino quedar-se no aconchego do colo de sua avó, que de si cuidava, junto com o irmão, nos períodos em que nem sombra dos pais se avistava. A aparente harmonia, muito embora disfuncional, seria quebrada com a separação dos seus pais, nos primeiros anos de oitenta, acentuando um afastamento do pai e induzindo a mãe a procurar um futuro que a garantisse e aos seus filhos.
 
   Desprovido de ambiente familiar minimamente são, o jovem, agora nos anos difíceis de uma juventude atribulada, procurou conforto em amigos circunstanciais, os que fez ao longo do tempo, sem supervisão alguma de quem o pudesse aconselhar, pobre avó que a idade e a doença pouco mais lhe permitiam. Surgia-lhe, assim, um caminho de aventuras, de perigo constante, em que o que estava em causa era a sua vida, o seu futuro. Numa das suas vivências irreflectidas, foi pai precocemente.
 
    Com um pequeno bebé em braços, e já tomado por uma dependência que determinaria os seus dias a partir de então, procurou apoio nos pais, que entretanto reconstruíram as suas vidas. Nuno não mais era (algum dia o foi?) o objecto das preocupações. Erraticamente passava os dias. Mergulhara num mundo em que o retrocesso exige mais do que boa vontade, onde não há lugar para afagos, êxitos, família ou amor. Afastara-se gradualmente de todos e a imagem do rapaz alto, louro, de faces rubras e traços delicados só raramente despontava, talvez nos seus momentos de lucidez.
 
     A década seguinte traria a completa decadência humana, física, psicológica. A degradação maior.
     Terminaria os dias só, para exalar o último suspiro num hospital, longe do olhar dos seus pais, omissos, dos avós, negligentes, e da filha, ainda pequena, que via à distância para que nunca restasse a seus olhos imagem tal de declínio.

      Se seguimos vivos entre quem nos amou, Nuno persiste em sentimentos de remorso, por uns, e saudade, em todos.
 

2 de agosto de 2015

Anos de Repressão.


    O historial da generalidade dos Estados que vieram suceder às antigas províncias ultramarinas portuguesas em África tem sido marcado por convulsões políticas que se seguiram às respectivas declarações de independência, na maioria dos casos, mergulhando os recentes países, ainda de débeis contornos políticos, em guerras civis que se prolongaram pelo tempo. Enquanto que na Europa a história recente ensina-nos de que a uma guerra se seguem períodos relativamente estáveis de prosperidade e acalmia, Angola apenas conheceu, e recentemente, uma afirmação das suas inegáveis potencialidades, conquanto persista, dentro das suas fronteiras, um regime inominável.
 
    Angola enquadrar-se-á nas chamadas ditaduras modernas, mascaradas, até numa análise pelo seu ordenamento jurídico, de democracias plurais, com a tónica nos direitos humanos. O que vemos, contudo, na excursão pela Lei Fundamental angolana, de dois mil e dez, é uma cópia dissimulada de ordenamentos que verdadeiramente cumprem, mal ou bem, os seus preceitos constitucionais. Diz-nos a Constituição da República de Angola, no seu artigo 21.º, alínea b), que é tarefa do Estado, e transcrevo, «assegurar os direitos, liberdades e garantias fundamentais». À frente, prosseguindo, encontramos, no título respeitante aos direitos e deveres fundamentais, o rol de direitos de que os cidadãos, na letra da Lei, se podem munir diante da opressão estatal, e são eles, a liberdade de expressão e de informação, no artigo 40.º; a liberdade de imprensa, no artigo 44.º, e a liberdade de reunião e de manifestação - por quantas vezes violado - no artigo 47.º, os que nos interessam por ora. Os recentes casos de repressão policial a activistas e manifestantes que apenas denunciam as arbitrariedades do governo angolano, clamando por uma maior abertura do regime, inclusive no cumprimento da sua lei máxima, à qual o Estado se subordina, demonstram o total desrespeito dos dirigentes angolanos pelos direitos que fizeram aprovar em Assembleia Nacional. As detenções e prisões arbitrárias sucedem-se impunemente, à revelia da lei, que no artigo 56.º da Constituição, uma vez mais, obriga o Estado a reconhecer como invioláveis os direitos e as liberdades fundamentais consagrados na Constituição. Não será difícil de prever que, munindo-se de um hipotético, mas pouco convincente, perigo para o Estado, as autoridades angolanas procurem restringir os direitos dos cidadãos ao abrigo de dispositivos legais e constitucionais que o permitem, alegando fundamentos manifestamente desfasados da realidade, que é a de pessoas que se manifestam, que reivindicam, no pleno uso dos seus direitos.
 
     Ana Gomes, eurodeputada e membro de uma subcomissão de Direitos Humanos - e também, diria eu, como cidadã portuguesa - que a posição de Portugal, aqui, não pode ser neutra, ainda que respeitando a autodeterminação do povo angolano e a independência do país, alerta para situações de claríssima violação de direitos basilares do indivíduo. Alguma Comunicação Social angolana, que não é difícil presumir fortemente condicionada no exercício da sua função - que é exactamente a de denunciar abusos por parte de autoridades estatais - intimida, criticando num tom desproporcional, quando o que está em causa são direitos concretos do povo angolano que sistemática e impunemente são desrespeitados.
 
     Por seu lado, a Constituição angolana, a par dos direitos que enuncia, reforçou, sobremodo, os poderes presidenciais. O Presidente da República de Angola, no novo quadro constitucional, é o primeiro nome da lista partidária das legislativas, que acumula, dessa forma, com a chefia do Governo. Os seus poderes, neste regime ultrapresidencialista, quedam reforçados ao limite. O Presidente da República é Chefe de Estado e detém o poder executivo. Se o que indigna não é tanto o carácter presidencialista, que encontramos noutros Estados, já o mesmo não poderá ser dito da sua eleição em listas partidárias para a Assembleia Nacional. É uma manifesta deturpação da teoria da separação de poderes, imprescindível em qualquer Estado de Direito, onde o poder executivo e legislativo se emaranham.
 
     É revoltante perceber que a comunidade internacional vê a realidade angolana com um olhar de relativa indiferença, sem prejuízo de quem, por vezes em perigo para a sua vida e integridade física, continua a difundir o que se passa dentro daquelas fronteiras.  Compete-nos, pelos laços históricos e  culturais que nos unem a Angola, manter especial atenção e proximidade, contribuindo, no que nos for possível, para a democratização premente daquele país.