31 de dezembro de 2012

2013.


   A primeiríssima sensação que tenho ao aproximar-se o fim de mais um ano civil é a de que o tempo começa a ganhar velocidade. Os meses sucedem-se rapidamente. Perdi a percepção que tinha de momentos e lugares. A par disso, a vida torna-se comezinha, fustigada pela rotina e pelos hábitos que ganham poeira. Cessaram as novidades - ou estão interrompidas - havendo pouco para desbravar. Os caminhos decisivos, já percorridos, abrem-se a novos bandeirantes, ávidos pela procura.


   Não tenho lista de resoluções, nem planos. Consigo ver o próximo ano relativamente bem, isto é, num esboço geral. Excluem-se imprevistos. Quando assim o é, quando a vida se torna previsível, pouco haverá a acrescentar. Contudo, a centelha da mudança reside em mim. Designá-la-ão de sonho ou vontade que germina. Não poderia concordar mais.

   A todos vós, os votos de um próspero 2013.




Por vezes, invejo a Ariel. :$

27 de dezembro de 2012

Ao cair do pano.


   Aguardando por um afago na madrugada, olhando insistentemente para o relógio-despertador antigo, visível pelo luar. Os ponteiros correspondem à ansiedade e movimentam-se com pesar. Discernir entre o amor e a dependência não é fácil, apesar disso, exige-se que os sentidos mantenham o alerta. Quem diria que aqui terminaria mais um dia, quente, contrariando a norma?

   Observando de longe, olhar baixo, vontade que impele e força a cabeça a erguer-se de novo. Impossível encontrar uma palavra que defina com exactidão o que se sente.
   De certa forma, aconteceu. A incredulidade precedeu as sensações outrora boas, ocas, que ficam, quando os minutos se extinguem e ele vai. Aprendera a viver degustando as migalhas que alguns deixaram para trás. Com elas, alimentou-se um coração sedento de amar, conformado, vive assim.

   Irónico como a chuva que cai depois de um anúncio formal do céu límpido, o encontro dos corpos que se repelem, investidos pela vergonha e pelo asco, o prazer inebria.
  A verdade, clara, diante de ambos, enjeitada. A coragem que cai perante um sussurro, exalado, palavras que se dizem ao desbarato.

   A esperança que vive de sobras, deixá-la fraquejar por entre o desejo e o sonho.
   Enquanto houver noite, a janela manter-se-á aberta. A peça ainda não terminou.





24 de dezembro de 2012

Feliz Natal


   O Natal faz parte da cultura cristã. Deste modo, crentes ou não, todos somos influenciados pelo espírito da época. A comemoração consegue unir os homens, por alguns momentos, em torno de costumes partilhados pela sua imensa maioria.





   A todos, indiscriminadamente, desejo um Feliz Natal.



lots of love,

                                                                          
                                                                                                               Mark

22 de dezembro de 2012

A cidade do Natal.


   A mãe não saía antes do almoço. Viagens pela manhã, não, certamente, porque dormir mais um pouco, sobretudo podendo, era um luxo que não deveria ser desperdiçado.
   Claro que o descanso era permanentemente interrompido pela minha ansiedade, pulando na sua cama até sentir os pés quentes sobre a colcha madrepérola. Tudo acabava, inevitavelmente, com um ataque de beijos. Oh, e que agradável era o seu perfume!

   A irrequietude, própria da infância, não havia lá por casa. Demasiado formal, apenas me excedia quando a excitação ruborizava o meu rosto. Nesses casos, dificilmente se evitaria um choro, por vezes prolongado, pedindo uma palmada que nunca conheci.

   Aprendi a dizer à mãe para ligar os faróis de nevoeiro. Rindo-se do conselho, cantarolava comigo algumas músicas natalícias. Quando, cansada, mergulhava no silêncio eterno dos adultos, ligava o rádio e, aleatoriamente, ouvíamos o que passava. A sua melancolia não me era indiferente - sabia que sentia a falta dos filhos mais velhos que, por decisão das partes, ficavam com os outros progenitores. Percebendo que melhor seria aproveitar o tempo que dispúnhamos, cuidava de mim como se pudesse perder-me a qualquer instante. Ganhou medo às separações - algumas assemelham-se a partos. Há cordões umbilicais que nunca se talham.




   O carro entrava nas muralhas medievais e adivinhava o destino, agora diante de nós. Via, invejando, a sua destreza em manobrar o veículo por entre as ruas de paralelepípedo, estreitas, mediadas por casas típicas e regionais. Não havia sentimento de pertença, apenas o confronto anual com uma realidade distinta da vivida até então. O tempo, em tenras idades, passa a um ritmo diferente, lento. O suficiente para o esquecimento incompreensível anos mais tarde.

   As luzes que iluminavam a praça principal eram pequenos pirilampos, estáticos, enfeitando os aros metálicos que uniam fachadas dispersas ao longo das avenidas. Pelo destaque na cidade pequena, dificilmente teriam o seu brilho eclipsado como ocorria na capital.
   Os meus olhos, impressionáveis, aprenderam a relativizar. Ano após ano, as luzes ficaram menos nítidas.
   Fundira-se a cidade do Natal.

19 de dezembro de 2012

Dear Santa Claus.


Lisboa, 19 de Dezembro de 2012


Querido Pai Natal,


Em primeiro lugar, como estás desde o ano passado? Redimo-me da falta de atenção, pois geralmente, a esta altura, a carta com os pedidos e os desabafos já foi enviada há muito. Contudo, tenho motivos aos quais, de certeza, não ficarás indiferente.
Em primeiro lugar, a faculdade tem me ocupado o tempo "quase" todo, deixando-me totalmente absorto com as expectativas que depositam em mim. Não lastimo o trabalho, as horas mal dormidas, o cansaço; pelo contrário, sinto-me gratificado quando ouço os elogios por parte dos professores. No que à faculdade concerne, sinto-me totalmente realizado. Em todo o caso, visto que estás em permanente contacto com Deus, agradece-Lhe a inspiração que me deu.
Depois, por vezes temo que me tomes como um jovem-adulto imaturo que nada mais tem a fazer. Quando os homens crescem e perdem os sonhos, deixam os velhos hábitos para trás. São tomados por uma necessidade quase imperativa de manter a seriedade a todo o custo. Ora, essa postura rectilínea e madura é incompatível até com as pequenas brincadeiras de crianças, onde se inclui a crença em ti. Comigo ocorreu o inverso. Negligenciava a tua existência em pequeno - sabendo de antemão que era a mãe e o pai que me compravam os presentes - passando a escrever-te já numa idade considerável. Assim, após a divertida tarde em que erguia e decorava a árvore, pegava numa pequena folha e materializava o impulso nervoso que seguia a ordem das minhas emoções.

A rotina substituiu a ingenuidade e os pedidos deram lugar a uma carta em tom de psicanálise. Uma catarse de sentimentos mistos. O instinto de rever o ano que passou, desejando implicitamente algo de bom para o que se avizinha, mas sempre mantendo o discernimento. Se todas as cartas de amor são ridículas, o que será uma carta ao Pai Natal na minha idade?

Nada mais quero que não seja uma Consoada de paz. Posso, em todo o caso, olhar para a chaminé esperando que desças e me tragas algo que não espere, infringindo as regras do jogo. Não disponho meias pela lareira da avó e, provavelmente, não teriam o tamanho suficiente para o que, porventura, deixasses por lá. Se passares pelo meu quarto, abrires a porta e sentires os batimentos cardíacos acelerados, não me faças sentir a tua presença. As noites têm o dom de tornar as dores mais insuportáveis e as ausências de um presente que não se admite podem ser fatais. Aguarda que o amanhecer seja a tua carícia sobre o meu rosto. Prometo não ficar zangado contigo.


lots of love,

                                                                                              Mark

15 de dezembro de 2012

A Love to Hide


   Um dos períodos que mais suscita a minha curiosidade - e revolta - é, sem dúvida, o período da Alemanha nazi. Incompreensivelmente, no século XX, a humanidade deu o maior passo em falso de sempre, retrocedendo às épocas mais primitivas e selváticas.
   Como se sabe, além das tradicionais vítimas do nacional-socialismo alemão, onde se incluem judeus, testemunhas de Jeová, ciganos, eslavos, dissidentes políticos, deficientes físicos e mentais, também milhares de homossexuais foram presos e posteriormente enviados para reeducação nos campos de concentração, sendo que muitos lá pereciam, bem como nos campos de extermínio, estes directamente vocacionados para a eliminação de seres humanos. As sevícias a que estavam sujeitos eram variadas, desde tratamentos hormonais até às famosas lobotomias (que, curiosamente, estariam na base da atribuição do Prémio Nobel da Medicina a Egas Moniz - médico português - mais um período negro da história da Medicina).

   O filme que vi, ontem, aborda precisamente essa realidade dura e crua. Um casal homossexual separado pela impiedade nazi, assim como aspectos do contexto familiar que dão que pensar...
   Comoveu-me, sobretudo porque tem cenas particularmente violentas e chocantes.
  De referir que apenas há poucos anos foi feita justiça em relação à comunidade homossexual. Após a rendição alemã, as leis homofóbicas continuaram em vigor e os homossexuais que haviam sobrevivido aos campos da morte foram transferidos para prisões, de forma a que cumprissem as suas penas. Durante décadas, o mundo recusou-se a reconhecer os homossexuais como vítimas irrefutáveis do nazismo, querela de si ultrapassada, felizmente.
   Tudo se passou em França. A lei que incriminava a homossexualidade, na França, seria abolida somente em 1981.




Deixo-vos o filme completo.

14 de dezembro de 2012

Paracetamol.


   Quando pousei os livros no assento do lado, senti um formigueiro no braço. Estivera mais de uma hora de pé, segurando-os com precisão e técnica, afastando a menor possibilidade de algum resvalar e cair num pedaço de terra enlameada, o que nunca aconteceu.
   Ouvi as conversas gastas e desinteressantes sobre esta e aquela personagem que poderia perfeitamente ter saído da imaginação profícua de Almodóvar. Há pessoas mágicas e aquelas há que têm o dom de revirar a  vida do avesso, dando-lhe cor e, sobretudo, motivo de discussões dignas de uma qualquer idosa viúva que passa os dias entre o sofá carmim e a janela rente ao chão, onde afaga o seu gato enquanto fala com a vizinha.

   Agora estou a entrar na carruagem e a ver-me no reflexo do vidro da porta imediatamente à minha frente. Tento evitar os solavancos próprios da deslocação do comboio. Um rapaz, mulato, observa-me dos lugares. Identifico-o subtilmente. O seu rosto não me era estranho, embora não pudesse ter qualquer certeza evitando um contacto directo, o que rejeitei. A cabeça deixou subitamente de latejar após um intenso dia em que o mínimo movimento era doloroso.
   
   Soube que chuviscava lá fora. Dividi os livros entre mãos e segui para casa.

8 de dezembro de 2012

Mediatismo.


   Não gosto de ser usado num jogo que não escolhi, logo, consequentemente, não gosto do suspense em torno das últimas semanas de aulas. Persiste, pelos corredores, pelas salas, pelos átrios, uma atmosfera gélida, desconfortante, tenebrosa. Ouvem-se histórias que não lembram à mente mais imaginativa, como, recordando-me de uma das mais insólitas, notas negativas corresponderem à ausência de presentes de Natal. Estou numa faculdade? A sério?

   Os semblantes revelam desconforto e cansaço. Não é fácil manter o ânimo e a vivacidade quando avalanches de testes caem sobre comuns mortais. Pergunto-me se há saúde que resista a tanta pressão. Daqui a décadas, quando as mazelas da idade começarem a revelar-se com todo o esplendor, duvido que se imputem responsabilidades à tortura em forma de estudo que se pratica em alguns estabelecimentos de ensino superior.

- Mark, parabéns!

   Olho para a folha de teste. Impávido. A colega do lado, pretensa amiga, também olha. 

Boa! - exclama.

   Se esperavam que desse pulos de contente, desiludiram-se. Aliás, o único mérito de ter sido a nota mais alta da turma, onde houve apenas quatro positivas em mais de vinte alunos, reside no facto de ter conseguido resistir à máquina compressora chamada avaliação. A felicitação, mais do que constrangedora, revelou-se ímpia. Fosse professor-assistente e evitaria comentários de boas ou mais intenções. Devo dizer que a prática do "Parabéns", da última vez que a ouvira, remontava ao primeiro ano. Felizmente, desde lá, o bom senso tem levado a melhor.
   A correcção foi igualmente um suplício, com sistemáticas comparações ao que escrevera. Depois, o olhar terno e benevolente da assistente para mim, tendo, à sua frente, pessoas destroçadas. Uma miúda a chorar ao fundo. A insensibilidade no seu auge.
   Parabéns!, conseguiu ser execrável.

4 de dezembro de 2012

Um pouco de nada.


   Às vezes queria ter o poder de retirar de mim algumas capacidades do sentir. Ficaria melhor, pensaria menos no "que não é e deveria ser", além de conformar-me com o facto de que não conseguimos fugir de determinadas forças que nos impelem a um ou outro caminho. Há quem lhe chame destino e eu, ignorante como todos no que ao desconhecido diz respeito, designei de fatalidade. Será, assim, culpa d' Alguém o que corre mal e deveria correr bem. 
   Teses várias já se debruçaram sobre o assunto. Alguns referem que as nossas escolhas são preponderantes no rumo que a nossa vida leva. São argumentos plausíveis e, realmente, não se lhes consegue ficar indiferente. Mas - e o mal do mundo é inevitavelmente haver sempre um "mas" -  pessoas há que tomaram as opções que se lhes surgiam como as ideais, dedicando-se ao presente, lutando por objectivos, persistindo no trilho que julgaram ser o correcto, e, no entanto, concluem que tivera sido melhor um mergulho na inércia, poupando-se desgostos e cansaços.

   Afortunados aqueles que passam por todo o processo num desconhecimento delicioso. Analogicamente, será semelhante a um assalto à nossa casa: se o ladrão entrar e não nos apercebermos da sua presença, não porque estejamos a dormir, mas, porque, supondo, estamos de tal forma absortos por um livro de que não nos damos conta da sua entrada e do roubo, não haverá sofrimento. Melhor ainda se o indivíduo só tiver tempo de se apossar de um objecto que, tendo valor monetário, nem nos fará falta, de tal modo que jamais notaremos o seu desaparecimento. Diferente será se o gatuno entrar e sentirmos a intrusão no nosso lar. Ficaremos petrificados com o medo, expectantes sobre o que nos acontecerá caso nos veja, temendo pela nossa vida e pela inevitabilidade da luz da manhã, agora algo incerto. A salvo, com a sua saída, telefonamos às autoridades. Levou-nos um objecto que estava há anos na família, a jóia de uma avó querida. O seu valor sentimental é inestimável...
   
   Dirão: Afinal, o resultado não será igual?
   Será, efectivamente. Seremos assaltados e perderemos objectos de valor. Porém, no primeiro caso não haverá uma percepção da ocorrência. Passaremos incólumes à dor, ao sofrimento, ao medo e ao pânico. Também não haverá uma igual apreciação valorativa relativamente ao bem perdido para o larápio. A ausência do primeiro é-nos indiferente; no segundo, haverá lástima e tristeza.


   Assim é com a vida. Todos navegamos em direcção ao desconhecido, sobre marés bravas e tumultuosas. Mas - e há sempre um "mas" em tudo (sinto que já o disse...) - enquanto uns seguram firmemente no leme, outros descansam no convés.

30 de novembro de 2012

Retrocessos.


   Acreditava, até há bem pouco tempo, de que as conquistas civilizacionais eram isso mesmo: vitórias adquiridas após séculos (em grande parte dos casos) de dor e de luta. O Homem segue e avança. Negar dados irrefutáveis nunca deu bons resultados. 
   
   Se nos remetermos há trezentos anos, em Belém, provavelmente daríamos com um típico auto-de-fé, rodeado da nobreza e do povo, quais cúmplices de terrível espectáculo. O que movia as massas, na época, refinou-se. Em todo o caso, houve mudanças significativas, desde os regimes políticos à própria consciencialização dos direitos mais elementares de todo e qualquer ser humano.

   Posto isto, foi com espanto que li - e ouvi - de que se pretende introduzir uma espécie de taxa ou propina no ensino obrigatório, mormente no ensino secundário. Não sendo mera especulação jornalística, tantas e tantas vezes alimentada pelo Godzilla sensacionalista, trata-se de um perigo iminente e de uma situação particularmente grave. Sob um olhar jurídico da minha parte - totalmente despretensioso - eu diria que além de injusto e até mesmo imoral, está-se perante um caso, a comprovar-se, de clara inconstitucionalidade. O artigo 73º nº 1 da Constituição enuncia claramente de que todos têm direito à educação, sendo que neste caso releva especialmente o artigo 74º nº 2 al. a), de onde se infere o preceito de que, e transcrevo, «na realização da política de ensino incumbe ao Estado: garantir o ensino básico universal, obrigatório e gratuito»; na al. e) fala-se mesmo de estabelecer a gratuitidade de todos os graus do ensino.

   A menos que a Constituição seja submetida a uma revisão - o que se assemelha improvável no momento - qualquer diploma aprovado pela Assembleia da República estaria ferido de inconstitucionalidade.

   Lamento que as propostas tenham chegado a este ponto. Não haverá futuro auspicioso algum para um país que relegue a sua educação, destruindo-a, afastando cada vez mais os cidadãos do ensino já de si debilitado por décadas de regime conservador e autoritário. 

   Nas palavras de Oliveira Salazar, "um povo culto é ingovernável".
   Que se tirem as devidas ilações.

26 de novembro de 2012

Contrastes.


   Recordo-me, em criança, de aguardar pelo início da quadra festiva. Se houvesse ano sem luzes, cor, brilho e espírito natalício, preparava-se um fim antecipado. No fundo, o ano civil corria em direcção a Dezembro e nele encontrava a sua razão de existir.

  A minha infância prolongou-se no tempo. Quando, à partida, deveria ser mais responsável e consciente do inerente processo de crescimento, continuava a negligenciar que era esperado, da minha parte, um comportamento comedido. Isso revelava-se, também, aquando da interminável lista de presentes que apresentava aos pais. Por hábito, nunca recebi presentes da mãe e do pai. Preferiam levar-me às grandes superfícies comerciais para que comprasse o que me aprouvesse.
   Esqueciam-se, porém, de que o valor da abnegação tem demasiada importância, para mais em idades tão moldáveis, onde o seu ensino deve ser ministrado com todo o cuidado.

 
   Os anos passaram e a magia foi se perdendo. Não foi absorvida pelo carácter real do que deveria ser uma comemoração do bem, também ele bastante deturpado na quadra em si, mas pela fugacidade dos sentimentos humanos, voláteis como as horas, hipócritas como as duas faces de uma moeda suja que circula de mão em mão.
 
   E as solenidades começam e terminam.
   A dor passa no atalho à rua da festa principal.

20 de novembro de 2012

I need... me.


   Distante. É desta forma que me tenho sentido nos últimos dias. Na realidade, a extrema exigência que deposito no que faço, o que me traz alguma ansiedade, deu lugar a uma serenidade inabalável. Mais do que nunca, sinto-me tranquilo. Esse estado de leveza espiritual advém do reconhecimento de que o que faço é mais do que o que a maioria faz. Não que me conforte, todavia, alivia.

   Pela primeira vez, de forma séria, tive uma crise vocacional. Não que ela nunca tenha surgido em pensamentos, mesmo que tímidos, contudo jamais o fora assim. Dei por mim a ponderar acerca do que quererei fazer quando a licenciatura terminar e não me revejo nos cargos típicos ou, pelo menos, expectáveis. No inverso, observo exemplos raros, verdadeiros, de pessoas que reverteram o sentido do óbvio e ousaram fazer aquilo que gostam e de onde retiram um verdadeiro prazer. Torna-se inspirador, sobretudo nestes momentos em que o mínimo feixe de luz é um bálsamo que renova a alma.

   A entrada numa livraria despoletou esta consciência do certo e do errado, até agora uma nuvem acinzentada que pairava, mas que não conseguia encobrir o Sol. O momento em que reparas, ao abrir um livro, que aquele amontoado de palavras te pertence inexoravelmente. O momento em que sofres ao deixá-lo na prateleira, preterindo-o por outro que exige de ti a atenção e o dever. Nesse compasso de tempo, vês profissões e imaginas-te à secretária, de chocolate quente na mão, investigando e pesquisando, acrescentando algo de novo ao que se sabia, inovando incessantemente. O gosto é o fio condutor do que te faz mover pela procura.

   No dia seguinte, estou em paz. Encontrei o ponto de equilíbrio. Chamá-lo-ei de princípio da certeza. Não está totalmente preenchido, no entanto, arriscaria a dizer que vejo o caminho.

15 de novembro de 2012

Eles como nós.


   Na época das matrículas, nada combinei. Fi-la sozinho, em casa, através da internet, e não programei horas, minutos e segundos com ninguém. De resultado, fiquei numa turma sem nenhum rosto conhecido. Necessitava de mudar algo. Era urgente para o meu equilíbrio.

   Em consequência disso, aproximei-me de uma colega. Sentámo-nos juntos algumas vezes e isso tornou-se uma rotina. Também o facto de ser cabo-verdiana de ascendência e eu filho de um moçambicano ajudou a que tivéssemos algo mais do que a licenciatura em comum. 
   Um terceiro elemento, um colega, rapaz, que já conhecia desde o primeiro ano, efectivamente, e de vista há bastante tempo porque mora perto de mim, começou, também ele, a sentar-se ao nosso lado nas aulas teóricas. Desde cedo, apercebi-me do seu interesse pela minha nova amiga. Aos poucos, houve uma receptividade da parte dela, e não tardou em corresponder às claras evidências do seu afecto. Em breve começariam a namorar.

  Parecia-me algo sólido. Ele, sossegado e estudioso, inteligente. Ela, compartilhando das mesmas características, embora seja mais solícita e extrovertida. Combinavam, a meu ver.

   Na sexta-feira passada, no final das aulas, ele saiu e deixou-a para trás. Estranhei e comentei subtilmente o ocorrido, deixando, como é evidente, uma margem natural à necessária privacidade deles. Não obtive nada de esclarecedor. Há dois dias, encontrei-a perturbada quando cheguei à faculdade. Deduzi o motivo. Pediu-me que não comentasse com ninguém por vergonha. Sentia-se humilhada, rebaixada na sua humanidade, inferiorizada. Contou-me, então, que o rapaz dissera aos pais que a namorava. A mãe, sabendo que era mulata, deixou de falar com o filho, chantageando-o. Argumentou que jamais admitiria ter netos mulatos e que ela o desviaria do caminho (nem sequer a conheceu). Tudo o que quisesse dizer ao filho fazia-o através do pai, que em casa, e enquanto o namoro durou, servia de mensageiro.
   A pressão foi demasiado forte - para mais sendo dependente emocionalmente da mãe. Atreveu-se em contar-lhe os verdadeiros motivos do fim da relação, não a poupando ao vexame.


   Quando mo disse, de início não quis acreditar. Parecia-me uma história romanceada de algures dos anos sessenta do século passado. Mais tarde, vendo a veracidade nos seus olhos sinceros, fui tomado de uma aversão súbita. Um misto de cólera e asco.
   Ela, talvez por estar demasiadamente ligada a ele, tendeu em desculpá-lo. Como fazê-lo, tratando-se de um estudante universitário, esclarecido - na nossa licenciatura - onde tanto lidamos com direitos, deveres, liberdades e garantias? Não fora seu dever ensinar à mãe o certo e o justo? Não falarei em sentimentos porque esses, claramente, não existiam da sua parte.

   Acreditei nas suas dificuldades em erguer-se de tão abrupta queda. Quando nos retiram a condição humana, perdemos os valores nos quais fomos educados e julgáramos ter como adquiridos. Começou a reconstruir-se de novo. Em construir a mulher que é. Agora, despida de medos maiores.

12 de novembro de 2012

Acordar na Rua do Mundo



madrugada. passos soltos de gente que saiu
com destino certo e sem destino aos tombos.
no meu quarto cai o som depois
a luz. ninguém sabe o que vai
por esse mundo. que dia é hoje?
soa o sino sólido as horas. os pombos
alisam as penas. no meu quarto cai o pó.

um cano rebentou junto ao passeio.
um pombo morto foi na enxurrada
junto com as folhas de um jornal já lido.
impera o declive
um cano foi-se abaixo
portas duplas fecham
no ovo do sono a nossa gema.

sirenes e buzinas. ainda ninguém via satélite
sabe ao certo o que aconteceu. estragou-se o alarme
da joalharia. os lençóis na corda
abanam os prédios. pombos debicam
o azul dos azulejos. assoma à janela
quem acordou. o alarme não pára o sangue
desavém-se. não veio via satélite a querida imagem o vídeo
não gravou
e duma varanda o pingo cai
de um vaso salpicando o fato do bancário.



Luiza Neto Jorge, in Poesia, Assírio & Alvim

9 de novembro de 2012

Dia D - esgaste.


   Tenho passado os últimos dias envolto em livros doutrinários sobre mil e uma coisas. Por vezes, a complexidade das matérias torna-as tão diferentes entre si que me leva a crer que estudo para bem mais do que uma licenciatura. E, se em dois mil e dez encarava tudo como um enorme e estimulante desafio, semelhante a uma máquina, a qual estava sob a minha direcção e comando, tornei-me aos poucos um escravo do próprio engenho que construí, encontrando engraçados paralelismos com as palavras do meu instrutor de condução na época em que estava a aprender a dirigir.

" És tu que mandas no carro e não o carro que manda em ti. "

   Isso levou-me a dominá-lo.

   Hoje foi dia de teste. Um teste horrível que levou uma interminável hora. As minhas mãos revezavam-se por entre diplomas avulsos e demais códigos. Tremi sem ter frio, suei sem ter calor. Sofri por sentir que não estava minimamente preparado, pese embora soubesse que não conseguiria dar mais de mim. Num momento, lembrei-me da mãe e dos avós, tentando ganhar algum ânimo (ou inspiração) que teimou em não surgir. Na fila imediatamente abaixo da minha estava o rapaz italiano, de dicionário português - inglês ao lado. Senti-me um privilegiado, mas, por outro lado, estudar noutro país é tão enriquecedor... se ele for inteligente, não levará esta etapa muito a sério. O mote será a diversão.

   Só quis entregar e sair. Sair para onde ninguém me visse. Sair, afinal, para os recantos mais escondidos daqueles jardins, onde me perco no manto dos meus pensamentos. 

   É bom não ouvir vozes, a menos que seja a nossa a cantarolar baixinho. Não dizem que quem canta seus males espanta? 
   É bom não ver vivalma. 
   É bom ter o nada como companhia. No meu caso, a excepção sempre foi a regra.
   
   Não me importo.

5 de novembro de 2012

D. Isabel de Portugal.


   Aquela a quem chamaram "a mulher mais bela de seu tempo", D. Isabel, nasceu em 1503, filha do rei D. Manuel I e da rainha D. Maria, por sua vez filha dos Reis Católicos, Fernando e Isabel.
   D. Isabel passou uma infância feliz na companhia dos pais e dos vários irmãos, uma prol numerosa com que o casal régio foi abençoado. No novo Paço da Ribeira, destruído séculos depois no célebre terramoto de Lisboa, D. Isabel tornar-se-ia progressivamente numa jovem bonita e instruída, aprendendo latim, a doutrina cristã e os clássicos que surgiam nestes tempos de Renascimento. Além de bela, D. Isabel era cultíssima, possuindo uma vasta e completa biblioteca, composta por obras de cariz espiritual, destinadas à oração e ao enriquecimento pessoal, bem como obras mais mundanas que eram do gosto da infanta, nomeadamente sobre cavalaria.
   A primeira experiência amarga da sua vida viria a 7 de Março de 1517, com a morte da sua mãe no parto do infante D. António, seu irmão. Um terrível prenúncio...

   D. Maria deixou no seu testamento, e numa clara mensagem a D. Manuel I, a vontade de que D. Isabel casasse, sim, mas com reis ou filhos legítimos de reis, numa clara alusão ao filho bastardo do falecido D. João II, primo do monarca, que não era, de todo, da preferência da falecida rainha. Com a morte de D. Maria, D. Manuel I dotou a sua filha predilecta de Casa própria, de forma a que esta assumisse algumas funções governativas. Além disso, encetou o seu casamento com Carlos I, rei de Castela e Aragão, que viria a tornar-se o grandioso Carlos V, Imperador do Sacro Império Romano-Germânico... A morte de D. Manuel I, a 13 de Dezembro de 1521, não inviabilizaria o projecto: D. João III, irmão de D. Isabel e novo rei de Portugal, prosseguiria com os desejos de seu pai.

   Por fim, a 15 de Outubro de 1525, D. Isabel casaria com Carlos V através de um acordo matrimonial. Recorde-se de que os cônjuges eram primos. A mãe de D. Isabel e a mãe da Carlos V eram ambas filhas dos Reis Católicos.
   Há pormenores que não queria deixar de salientar: desde sempre se vaticinou um destino imperial, digamos, para a pequena infanta portuguesa. A isto se referiu o cronista Damião de Góis e Gil Vicente, na obra Tragicomédia da Exortação da Guerra, em 1514, quando a princesa tinha apenas onze anos. Ambos destinaram-na, quase profeticamente, aos braços do maior senhor da Cristandade.
   Obtida a dispensa papal devido à consanguinidade entre os primos e depois da infanta ter aceite os termos do contrato, a sua numerosa comitiva acompanhou-a até Espanha. D. Isabel tinha então 22 anos e uma enorme ânsia de viver, rodeada de amas e servidores dedicados. Saliente-se que no primeiro encontro com o Imperador, D. Isabel, belíssima, envergou um vestido branco que encantou todos quantos estavam presentes no momento. Ao vê-la, consta-se que Carlos V ficou imediatamente agradado com a magnificência da presença da sua esposa. Os noivos encontravam-se em Sevilha, no Palácio de Alcázar, depois da viagem de D. Isabel que durou mais de um mês.

   Efectivado o casamento, o casal viveria dias muito felizes, deslocando-se de Sevilha para Granada, no Palácio de Alhambra, onde a temperatura era mais agradável, devido ao calor. Carlos V e D. Isabel passavam o tempo a sorrir e acredita-se que a estima e o amor entre os dois brotou desde o primeiro momento.
   O primeiro fruto destes momentos de carinho, em Granada, viria em 1527, com o nascimento do infante Filipe (futuro Filipe II de Espanha, I de Portugal...). Para a eterna posterioridade ficou esta engraçada premissa: como se sabe, D. Isabel foi criada por sua mãe, sendo esta filha dos austeros Reis Católicos. No momento do parto, ordenou que lhe colocassem um lenço no rosto para que não fosse visível o seu semblante de dor e cerrou a boca para que dela não se ouvisse um único gemido. Interpelada pela parteira que a aconselhou a que gritasse no momento de dar à luz, D. Isabel terá respondido, em português: " Não me faleis tal, minha comadre, que eu morrerei mas não gritarei! ". Carlos V terá ficado eufórico, numa época em que o nascimento de um varão era tudo, sobretudo sobrevivendo à elevadíssima taxa de mortalidade durante os partos, da progenitora e dos recém-nascidos.
   Um ano depois, em 1528, nasceria a segunda filha do casal imperial, D. Maria, nascimento ao qual Carlos V não pôde assistir por estar em Aragão a preparar-se para a coroação pelo Papa. D. Isabel habituar-se-ia a a viver os momentos de dor e alegria dos nascimentos dos seus filhos.




   D. Isabel, contudo, não foi educada apenas para ser mãe e esposa. Herdando o sangue de sua avó materna, Isabel, A Católica, D. Isabel era uma mulher decidida, honrando a educação dada nesse sentido por D. Manuel e sua mãe, D. Maria. A regência assumiria com a partida de Carlos V para Itália, de 1527 a 1529. Toda a documentação da época refere que D. Isabel era uma profunda conhecedora dos problemas dos reinos peninsulares, defendendo intransigentemente o poder régio e a suprema autoridade do monarca, sobrepondo o bem comum aos interesses particulares. A nível externo, a sua sensata actuação foi decisiva na defesa do litoral da Península e do norte de África das investidas da pirataria.

   Enquanto mãe, viveria a primeira dor da morte de um filho em 1530, quando o infante Fernando faleceu após o nascimento. O afastamento do casal régio devido aos assuntos de Estado não diminuiu o carinho entre ambos. Nos poucos momentos em que estavam juntos, Carlos V presenteava a sua esposa com mais um rebento no seu ventre. Contudo, a mortalidade infantil ceifaria muitas dessas vidas. Ainda assim, em 1537 nasceria a infanta D. Joana, de saúde forte. Seria a última filha que D. Isabel veria crescer.
   Até à sua precoce morte, o destino ditaria o sofrimento. Em 1538, após um parto que a deixou muito debilitada, teve outro filho varão. O seu nascimento seria imensamente celebrado, uma vez que a saúde do herdeiro, Filipe, agora com onze anos, revelava-se muito frágil. Porém, mais frágil ainda nasceria este bebé, que morreu poucos dias depois. Tristeza ante tristeza, teve D. Isabel conhecimento também da morte de sua irmã, D. Beatriz. A imperatriz, então, ordena a celebração de honras fúnebres em Madrid e Barcelona.
   Decerto as ausências constantes de Carlos V amargurariam D. Isabel, que amava ternamente o seu esposo. Reconciliado com o rei de França, Francisco I, com quem mantinha uma velha inimizade, Carlos V regressa para os braços da sua Imperatriz, engravidando-a de novo, derradeiramente.

   O casal deslocou-se para Toledo, onde, em 1539, D. Isabel é tomada por fortes febres que a consumiam. Os médicos previram o pior. No dia 21 de Abril nasce um menino morto. Já fragilizada pelas febres, segue-se uma enorme hemorragia. As febres cessaram no dia 29 de Abril. Prevendo a morte, a Imperatriz confessou-se e recebeu a extrema-unção. Morreria a 1 de Maio de 1539, com a mesma idade e nas mesmas circunstâncias trágicas que vitimaram a sua mãe.

   Perante tão grande tragédia, a valentia e a coragem de cavaleiro de Carlos V soçobraram diante do corpo da sua falecida esposa, que não conseguiu ver. O corpo percorreu um cortejo fúnebre acompanhado de perto pelo Imperador e pelo pequeno Filipe, de doze anos. D. Isabel repousaria na cidade onde foi mais feliz, Granada.
   Conta-se que chegado o cortejo ao local final, a urna foi aberta para verificação da identidade do corpo. O elevado estado de putrefacção do mesmo provocou a agonia dos presentes e o pasmo: a mulher mais bonita do seu tempo estava irreconhecível. Um nobre ficou de tal forma perturbado que, após a morte da sua esposa, recolheu-se para sempre na Companhia de Jesus, pelo trauma da visão e por não conseguir servir mais a outro senhor.

   D. Isabel marcaria a história da Europa do século XVI. A memória colectiva perpetuá-la-ia. Jamais renegou as suas origens lusas. Educara o seu filho Filipe, em especial, na língua portuguesa, rodeando-o de aias e amas da sua terra natal. Esses detalhes estimulariam o seu amor pela terra da sua mãe, reino que tanto quis... e conseguiu.

1 de novembro de 2012

November night.


   Os dias passados a aguardar a coragem para subir ao telhado chegaram, por fim. Remeti-a para um momento ulterior à passagem do próprio medo. Afinal, não ousaria desafiar a lei da gravidade se não me estendesses a mão. Convém referir que tinha frio e estava nervoso. Sabes, fosse Verão e a minha mão não conseguiria apoiar-se na tua.
   As escadas do velho sótão rangiam às pancadas graves dos nossos pés no soalho de madeira envelhecido. A falta de suspense e a monotonia típica da minha vida levaram-me a acreditar que era protagonista de um filme de acção de baixo orçamento. Devo dizer que a cortina branca, de linho, (ou seria azul?) impelia-me a uma apreensão súbita, apesar de saber que, a teu lado, tudo seria factível.

   Não será necessário referir que o mais importante no momento, para mim, era experimentar algo de novo. A avó costumava avisar a mãe de que urgia deixar-me viver mais. Viver, entenda-se, no sentido de ousar ir além da cerca de madeira intransponível que me ergueram. Como nunca me ensinaram a pular um muro, raso que fosse, constrangia-me a ficar inerte.
   Fomos pelas divisões contraluz. Tornaria tudo mais emocionante. Agora, parando, poderia sentir o meu batimento cardíaco.

   Nunca fiz nada com vista aos resultados. O luar, na pele, bastar-me-ia. Mas, graças a ti, deixei o temor na esteira dos meus fantasmas.

30 de outubro de 2012

Ainda são cinco!


   Não me custou acompanhá-los até ao centro de cópias. Compreendo os seus motivos e vejo uma utilidade para quem comprar um manual original se torna inacessível.
   A mudança de hora perturba-me nos dias iniciais e, enquanto sinto o efeito, acredito que saio da faculdade às dez da noite. Como não me dou ao trabalho de ver as horas no visor do telemóvel, confio. Continuo a não querer nada com relógios de pulso.
   A sola das botas, novas, desliza como o faca no creme de barrar o pão. A pedra da calçada, húmida, favorece a minha propensão para perder o equilíbrio. Não acompanho o passo acelerado das pressas das 17 horas, síndrome de barcos que terão de apanhar e de comboios lotados. Tivesse juízo e teria ficado a pesquisar legislação para a pergunta da semana, na biblioteca das estantes de folha de pinho.


- Mais elementos jurisprudenciais!


   Sim, drª.

   Regressamos de noite e os braços reflectem a fragilidade física. A cabeça ressente-se do burburinho do caminho. Desejei, momentaneamente, ser forte e ágil. Houvesse curso que mo ensinasse e frequentá-lo-ia.
   Um sem-abrigo percorre o trilho acidentado que liga o jardim à avenida. Por entre os dedos, um cobertor que aquece a sua exclusão. Fala sozinho. Um dia chamaram-no de louco. Louco, como nós.

26 de outubro de 2012

O mundo numa sala.


   A minha turma deste ano é substancialmente diferente de qualquer uma que integrei. Para além de mais calma, tem uma componente multicultural que me agradou. Devido ao facto de ser reduzida no número de alunos, decidiram colocar os estudantes estrangeiros, do programa Erasmus, na frequência das aulas connosco.

   Há estudantes de várias partes da Europa: Holanda, Eslovénia, Grécia, Espanha, Polónia e Itália. A par destes, há um significativo número de estudantes brasileiros, o que se explica pela afinidade entre os dois países.
   A dinâmica das aulas também varia consideravelmente em relação aos anos anteriores. Alguns professores dividem-se em três línguas, nomeadamente o castelhano, o inglês e, claro está, o português. A uma disciplina preteriu-se mesmo a língua portuguesa ao inglês, uma vez que o núcleo da cadeira é essencialmente internacional, incluindo manuais a consultar e demais elementos.

   A cultura de cada um desses alunos evidencia as suas origens. Os dois rapazes espanhóis são extrovertidos, assim como o rapaz italiano, fazendo jus à sua herança genética latina. O aluno holandês e a aluna polaca são calmos e de parcas palavras. Todavia, ninguém bate o contingente brasileiro no que à alegria diz respeito. Cada elemento da turma, em si, abraçou este ou aquele estudante estrangeiro, o que reflecte a personalidade de cada um que se coaduna com a do outro. Eu costumo ficar ao lado do rapaz italiano.

   Está em Portugal há um ano e domina muito mal a língua portuguesa. Falamos em inglês, o que até é um auxílio para que desenferruje os alicerces. Não há nada como a nossa língua materna que, unanimemente comprovado, é aquela em que melhor exprimimos as nossas emoções. É como se perdesse um pouco do meu eu quando falo com ele. Falta uma peça na minha engrenagem e acabo sempre por me sentir um autómato. As línguas francas e secundárias só dão bom resultado no plano estritamente profissional / estudantil.
   O italiano é uma língua com pouca expressão, seja na Europa, seja no resto do globo. E ninguém fala italiano naquela sala. Disse-me que traduz os textos do português para o italiano, mas que a tarefa se torna demasiado difícil quando se apercebe de que, literalmente, não consegue encontrar uma lógica nas frases traduzidas. Resta-lhe deduzir o essencial.

   Sentamo-nos um ao lado do outro para que possa ler pelos meus códigos. Hoje, uma rapariga que jamais vira por lá sentou-se à sua esquerda e facultou-lhe as suas folhas para que ele tirasse pequenas notas. Ele deu-lhe alguma atenção e eu senti uma ponta qualquer de ciúme que não pude entender. A sua forma de se relacionar comigo, rindo-se e cumprimentando-me sempre, inclusive dirigindo-se em concreto a mim, fez-me criar um laço de afecto. Não sou o que se poderá designar como uma pessoa de fácil trato; não sou dado; não sou de falar a tudo e a todos, tampouco de me dar a conhecer. Ele cativou-me pela sua espontaneidade e simpatia, ao ponto de às vezes não me imaginar naquela sala sem a sua companhia. Será uma inevitabilidade.

  Talvez veja mais do que afinal existe. 
  Talvez dê importância ao que não deveria. 
  Talvez desconheça o meu lugar, resquícios de não estar habituado aos revés do querer.
   

24 de outubro de 2012




" You're a song written by the hands of God,
Don't get me wrong
'Cause this might sound to you a bit odd.
But you own the place
Where all my thoughts go hiding,
And right under your clothes
Is where I find them. "




Underneath Your Clothes

22 de outubro de 2012

Canetas de cor.


   Vejo a monotonia presente nos cadernos dos meus colegas e sinto-me infantil. Terei resquícios de uma adolescência que teima em não terminar? Os títulos a vermelho pálido não me seduzem, bem como a ausência de setas que compõem os esquemas que os professores ditam apressadamente. E, depois, quando tento arranjar justificações plausíveis para a ausência de brilho naquelas anotações, chego à conclusão de que todos são mais práticos do que eu. Que culpa me imputar?, se gosto de dividir os itens com algarismos, circundando-os com a cor roxa; o que poderei fazer?, se as setas são a amarelo-torrado e os subtítulos escritos a verde-claro.

   Os professores não se compadecem de algum brio da minha parte: comungam da mesma característica de falar sem que a inspiração seja perceptível. Desenvolveram - quem sabe - uma qualquer técnica em comum com vista à sabotagem dos meus apontamentos. Não, recusar-me-ei a usar a esferográfica preta até à última disciplina que faça. Tornar-se-ia impossível estudar sem as chavetas a azul-marinho.
 
   Uma colega zomba da minha eficácia em conseguir acompanhar o discurso dos regentes, não deixando nenhum pormenor ao acaso. Indaga-se sobre a necessidade de tanta arrumação visual.

   O que ela não sabe é que eu crio o meu próprio mundo quando os pensamentos não assentam nas cadeiras envernizadas da sala de cheiro a cortiça e cor âmbar. Os meus livros sou eu que os escrevo, claro, e não contêm milhentos artigos enfadonhos e poeirentos que, parafraseando Rousseau, nos acorrentam em toda a parte. A minha lei sou eu, assim como as cores me pertencem.

    Preciso de comprar outra caneta lilás.

19 de outubro de 2012

A rainy day.


   Sempre que digo a alguém que a chuva me incomoda, sobretudo quando estou carregado de livros, sou confrontado com os argumentos óbvios de que a chuva é necessária para a agricultura, para o equilíbrio do nosso ambiente, dos nossos ecossistemas... Acabo por anuir e por explicar, enfim, que até aprecio a chuva quando estou de férias, em casa, ou nos finais de semana, nos quais a posso observar sem sofrer os seus efeitos lógicos: molhar-me e, mal dos males, molhar os meus livros.

   Contudo, o que me aconteceu há uns dias irritou-me solenemente. A mãe não me pôde levar e estava suficientemente atrasado para não pegar nas chaves do carro. Resolvi sair de casa e assumir o perigo de transportar três códigos, a pasta com as folhas dos apontamentos, o estojo, e demais pertences pessoais. Cinco minutos a caminhar depois, um código resvala e a restante tralha resolve acompanhá-lo na súbita queda. O detalhe da sorte: caiu tudo a uns escassos centímetros de uma poça enlameada.

    Como detesto guarda-chuvas, e aproveitando o facto de não estar a chover no momento, saí de casa desprotegido. Começa a chover. Sou obrigado a andar em passo acelerado, ainda mal recomposto do incidente minutos antes, e sem ter verificado se algum objecto estava estragado. Cheguei ao metro ligeiramente molhado. Inexplicavelmente, não levei nenhum dos meus casacos com capuz. --'
   Pude ajeitar o cabelo e a roupa no meu reflexo exposto nos painéis de publicidade. Finalmente encontrei uma utilidade prática para aquelas enormidades inestéticas que nos bombardeiam com produtos, artigos e serviços a que ninguém presta atenção.


   Creio que nunca abordei uma das minhas manias: preservar ao máximo as coisas, sejam quais forem. Um livro, uma peça de roupa, um electrodoméstico. Não consigo ver riscos e até os sinais próprios da deterioração natural imposta pelo uso me perturbam. Facilmente se conclui de que estava bastante incomodado com a hipótese credível de ver a pasta inutilizada (pelo menos à luz dos meus critérios) e os livros molhados, com páginas rasgadas e manchadas de terra humedecida. Exceptuando umas marcas pontuais, o resultado final não foi dos piores cenários que conjecturei.

   Rezei para que à saída não caísse a menor gota do céu. Fizeram-me a vontade.

14 de outubro de 2012

A menina resiliente.


   Nunca antes havia tido um contacto próximo com uma pessoa diferente. E uso este adjectivo com um propósito: deficiente ou incapacitado mexe de uma forma brutal com a minha consciência. Limitações todos as temos e, por vezes, mais fustigantes.

   A S. é uma menina especial. Não rejeita uma manifestação de auxílio, nem se afasta das pessoas. O facto dos seus olhos apenas distinguirem a claridade da penumbra não a tornou uma pessoa amarga; pelo contrário, apurou-lhe os restantes sentidos e a sua perspicácia. Sendo mais velha do que eu três anos, já tendo reprovado algumas vezes, torna-a mais experiente. Durante o ano lectivo passado fui aproximando-me dela, embora tenhamos começado a falar sobretudo a partir do início deste ano. Disse-me que é discriminada, fenómeno que atribuí talvez a alguma piedade de terceiros que ela interpretasse mal. Não. Bem mais grave do que isso: sente a maldade e a piada infame frequentemente.


- Olha ali uma cega! (risos)


   Quando mo disse, senti-me num lugar desconhecido e inóspito. Afinal, onde estou eu? Que lugar é este? Reduzi o preconceito ao seu âmago e vi a ignorância a jorrar por entre o seio da palavra. Diminuí-a ao seu ínfimo e pude ver o quão horríveis podem ser as pessoas. Ela riu-se. Nada abala a sua determinação em concluir os estudos e ser alguém.

   Um colega interpelou-nos, na sexta-feira, afastando-se de seguida. É um rapaz simpático e afável. A S. pôde percebê-lo na sua voz. Como exemplo, ela reconhece-me, pela voz, a vários metros de distância. Peremptoriamente, disse-me: "Achaste-o querido". Sorriu, naquele sorriso em que caberia o mundo. Ao tentar explicar-lhe de que ele me fora indiferente nesse sentido que pude perceber no seu tom, ela alertou-me para que não ficasse preocupado. Com ela estaria sempre à vontade. 
   Senti-me castrado. Qual de nós será mais limitado? Eu, com uns olhos que não enxergarão os sentimentos que a sua sensibilidade consegue intuir?

   A mãe da S. teve uma reunião e avisou-a de que não a poderia ir buscar. Predispus-me em acompanhá-la à paragem dos autocarros e aguardei pela chegada do veículo que a levaria a casa. Ao despedir-me, num ímpeto que não pude controlar - e com a voz embargada - sussurrei-lhe:

"Os estudos não farão de ti alguém. És mais alguém do que qualquer um que já conheci."

11 de outubro de 2012

Os clássicos e a pena.


   A finalidade última de uma sanção penal é bastante antiga. A ideia de que a determinada conduta, errada, corresponderá uma medida punitiva, existe desde o início dos tempos. Arriscaria mesmo a dizer que em qualquer sociedade, mesmo na mais primitiva, existirão regras e as correspondentes consequências negativas para o incumprimento das normas pré-estabelecidas. De outra forma teríamos o caos.

   A ideia retributiva já estava presente em Platão (séc. V - IV a. C) e, mais tarde, em Kant (1724 - 1804). Dos tempos em que vigorava a Lei de Talião, «olho por olho, dente por dente», uma espécie de catarse, de vingança da vítima, já podemos encontrar este simbolismo. Para Platão, não existia um fim exterior à pena. A pena serviria para conciliar a pessoa consigo mesma. O próprio, assim, libertar-se-ia da injustiça cometida, da sua intemperança. Já Kant, na sua obra (fantástica, digo eu) Fundamentação da Metafísica dos Costumes, defendeu a tese de que a pena teria inevitavelmente de ser aplicada. O extremo do seu racionalismo é visível nesta obra. A pena serviria para que, cito, «o sangue derramado pelo assassino não recaia sobre os outros».

   Esta visão kantiana encontra também fundamento no Antigo Testamento: a responsabilidade colectiva, que é facilmente observável nas pragas infligidas aos egípcios por Deus, através de Moisés. Ou seja, se uma sociedade não pune uma conduta reprovável, assume-a. Existirá aqui, porventura, alguma leitura moral da pena.

   Hegel (1770 - 1831) não utilizava o sentido moral como ideia fulcral. Para este autor, o crime é a negação do direito; a pena é a negação do crime, logo, é a afirmação do direito. Hegel detestava as realidades substanciais: preteria-as às suas considerações lógico-formais. Pensava no crime como uma ideia; na pena como uma ideia. A pena, em si, é algo que se sofre.

   O crime é uma negatividade, sendo o nada e existindo como referência. Existe em relação ao direito, que se dirige como uma vontade da comunidade alicerçada em bens e valores. Ao negá-lo, o crime vê-se na sua força, o que implica um reconhecimento tácito do direito. É uma relação lógica de necessidade.

   Em Hegel e em Kant encontramos a racionalidade do agente. Para Hegel, punindo o criminoso, o direito reconhece-o como ser racional que conhece as regras a que está sujeito. Hegel vai mais longe: é como se o criminoso pedisse a pena. A pena honra-o, fazendo jus à sua racionalidade. Também em Kant, o criminoso sabe que vai ser punido: quer, decide, age.

   No plano das ideias, não haverá um vínculo lógico entre o crime e a pena. Todavia, como é evidente, não há pena sem crime.

7 de outubro de 2012

A fragilidade.


   O limiar, ténue, que separa a vida da morte perturba-me. Faço raciocínios à partida ridículos, pegando na hora da morte de alguém e imaginando que, escassas duas horas atrás, em grande parte dos casos, o que se passaria não poderia sequer ser conjecturado. Isto, evidentemente, nos casos de mortes trágicas ou inexpectáveis. Raramente temos a percepção de que somos matéria, disforme e perecível; um pedaço maior ou menor de carne, dependendo da vontade de um músculo que bombeia a vida através de vasos que percorrem o nosso corpo. E, na sua presença, derradeiramente caem sonhos, planos de futuro e esperanças. Tudo é vão.

   Tratando-se de pessoas novas, ponho em causa o trabalho e a dedicação, o esforço em atingir objectivos. Qual o propósito se é tudo demasiado efémero?
  A morte recente de Margarida Marante pairou sobre mim durante os últimos dias. As recordações de a ver no pequeno ecrã são escassas, embora existam. Sabendo da notícia, disse-a rapidamente à mãe, que não disfarçou a sua incredulidade. Conhecera-a há duas décadas, por aí, através de amigos comuns. Estiveram juntas em algumas ocasiões, mais ou menos formais, sendo suficientes para que guardasse algum tipo de ideia formulada sobre a senhora. A determinação, o seu carácter não consensual (não serão enfadonhas e previsíveis as pessoas consensuais?) e o rigor na sua área, dedicando-se afincadamente, contrariando a sua juventude e inexperiência, são memórias que ficam. Enquanto mulher, disse-me, era altiva, contudo cordial. Um valor de uso rápido, desgastado, que as intempéries fizeram questão de arruinar.

   Aconselhei-a a passar pelo local onde jazia em câmara ardente. A sua inclinação para o fazer ajudou ao mote. No meu caso, não faria sentido e talvez me perturbasse. Sou demasiado susceptível ao sofrimento alheio e a emoções fortes. Seria o suficiente para matutar dias e dias, num claro registo de máquina fotográfica, cujas imagens só a custo são apagadas. Fora-me melhor assim.

   Cinquenta anos de vida, actualmente, é deixar tanto por fazer. Não deixa de ser injusto. Complexo será viver em paz, se a inevitabilidade da morte estará sempre presente.

4 de outubro de 2012

Conceito Material de Aula.


  Pegando numa designação da minha excelentíssima regente (tira-se o chapéu inexistente), referente aos crimes e demais, apliquei-o - e bem - às minhas aulas ou, pelo menos, às primeiras impressões que retirei até ao momento.

   Sinto-me num tribunal a todo o instante. A coisa ganhou uma seriedade tal que não sei se já amadureci o suficiente. Criminosos, vejo-os por todo o lado. Acções a todos os títulos e por todos os motivos. Dignidade constitucional e falta de tutela. Só faltam mesmo as grades.

   
   A sala tem um tom amadeirado que me tranquiliza, no odor, envernizado, e nos cascos a cortiça a que a tinta da parede me remete. Ao entrar pela primeira vez, lastimei o facto de nunca ter dado com tal divisão universitária (o que jamais aconteceria caso tivesse cinco anos, na altura em que explorava o mundo... bom, o meu mundo...) para estudar ou, tão simples, para desfrutar de dez minutos de sossego.

   Alguns professores assustam-me. As suas expressões, tendo em vista provocar reacções de medo nos alunos, não me parecem um método pedagógico aconselhável; conquanto, penso se não será um estímulo para que criemos fortes barreiras psicológicas ao confrontar, no futuro, os impiedosos delinquentes deste país.

   Os colegas, repetentes, adoram sobrepor as suas vozes às nossas tímidas respostas de meros iniciantes no mundo judicial. Sim, iniciantes, que a minha licenciatura começa verdadeiramente no terceiro ano. Depois, regozijam-se das suas respostas assertivas, esquecendo-se, porém, de que a inspiração, eufemisticamente falando, faltou quando era mais solicitada... e útil.
   Amuo, abro o estojo, tiro a caneta roxa e desato a sublinhar as partes mais importantes dos apontamentos, quando o que queria fazer era pintar uma bola branca, a corrector, no nariz do engraçadinho da última fila.

   Deveriam criar um artigo que enunciasse uma norma respeitante ao bom senso.

2 de outubro de 2012

All I wanna do is love your body.








   


« Tudo o que eu quero fazer é amar o teu corpo; esta noite é a tua noite de sorte, eu sei que tu queres. »







Excelente lead single :)

29 de setembro de 2012

Catalunya.


  Os sentimentos independentistas visíveis na Catalunha não desabrocharam espontaneamente. Há um passado impossível de ser negado e há causas fortes por detrás dos últimos acontecimentos. Olhar para a realidade catalã com um olhar de português, limitado à experiência lusitana, seria muito redutor.

   Para se entender o que se passa no país vizinho, é necessário ter em consideração a realidade histórica. Espanha surgiu de uma união de reinos, onde se aglutinaram nacionalidades diferentes num único Estado. Cada um desses povos manteve a sua língua, neste caso o catalão, e tradições seculares de autonomia que nem o acumular dos séculos e da repressão conseguiu extinguir.

   Comungando de um passado comum com o resto da península, também a região da actual Catalunha teve,  após a romanização, invasões germânicas no seu território, seguidas dos árabes que conquistaram toda a Ibéria a partir de 711 (salvo a região das Astúrias). Já no século X, expulsos os árabes, é fundado o Condado de Barcelona que, numa política de casamentos (como costume da época), é unido ao Reino de Aragão em 1150. Estando unida à coroa aragonesa, em 1479, devido ao casamento em 1469 de Fernando II de Aragão e Isabel I de Castela, dá-se a unificação de Aragão com a coroa castelhana, levando, por último, em 1492, à união de todas as realidades ibéricas (salvo Portugal) na actual Espanha.

   Contudo, a Catalunha jamais renunciou à sua história e às suas características próprias, tentando sublevar-se, de 1640 a 1650, contra o domínio castelhano, o que em muito contribuiu para o êxito da insurreição portuguesa de 1640, que culminaria na restauração da independência. As consequências dessa sublevação seriam pesadas, com perdas significativas de territórios para a França, incluindo o condado do Rossilhão e a actual Sardenha. Não nos esqueçamos do império mediterrâneo que a Catalunha dispunha à época.

   Com a Guerra da Sucessão espanhola, e devido à má estratégia seguida pela Catalunha no conflito, viu-se, com o seu fim, incorporada definitivamente ao Reino de Espanha por Filipe V (de Anjou).

  Já no século XX, a história da Catalunha tem se desdobrado em recuos e avanços na sua autonomia. Conseguiu obter um organismo administrativo que Primo de Rivera aboliria em 1923; com a II República Espanhola veria o seu estatuto de Comunidade Autónoma ser aprovado, mas, com o fim da Guerra Civil Espanhola e a subida ao poder do Generalíssimo Franco, toda a autonomia viria a ser retirada até ao fim da ditadura e do advento da Constituição democrática de 1978, que reconheceria, de novo, a autonomia da Catalunha, desta feita num Estado Democrático de Direito.


   Como é facilmente constatável, há diferenças substanciais entre Castela e a Catalunha. Não podemos falar, analisando a realidade espanhola, de um Estado unitário do lado de lá da fronteira. Espanha é uma manta de retalhos institucionalizada e, pese embora os séculos de repressão, o sentimento de independência habita no espírito do povo catalão. A crise internacional que agudizou os problemas da frágil Espanha apenas acentuou o ódio e a desconfiança à política centralista de Madrid, falsamente maquilhada de autonomista.

   Espera-se, para breve, uma consulta ao povo catalão na próxima legislatura, de forma a apurar-se o sim, ou o não, à independência da região. O processo será todo ele democrático e espero, numa perspectiva pessoal, que o governo espanhol respeite a decisão dos catalães. Espero, também, que pela primeira vez se abra um precedente que possa resolver a questão secular da Galiza, do País Basco, de Olivença (usurpada a Portugal) e de Ceuta e Melilla (usurpadas a Marrocos).

   O artigo 1º, n. 2 da Carta das Nações das Nações Unidas fala do respeito do princípio da autodeterminação dos povos. Que a comunidade internacional não descure as suas obrigações no que ao reconhecimento possível do Estado catalão, independente, concerne.

27 de setembro de 2012

Liebster Award.


   O Hórus e o Coelhinho atribuíram-me este prémio / desafio, o qual aceitei de imediato. Obrigado! :)

   Consiste em responder a onze perguntas, sendo que de seguida terei de passar o desafio, e o prémio, a outros onze blogues.


1 - Qual a tua cor favorita?

Gosto de várias cores e é-me difícil eleger apenas uma. Contudo, não pretendo escapar à pergunta. :)
Vermelho.


2 - Qual a tua viagem de sonho?

Gostaria imenso de ir à Austrália. Em tempos, referiria os E.U.A (como creio que respondi há uns dois anos num desafio parecido), mas, sem dúvida alguma, a viagem de sonho seria à terra dos cangurus.


3 - Partilha algo engraçado sobre ti.

Hum, pois bem. Antes dos exames, gosto de isolar-me por um bom bocado. Ficar totalmente incontactável. Refugio-me no lugar mais escondido que encontre e fico por lá, em silêncio, de olhos fechados. É a primeira vez que assumo isto! :D


4 - Qual a música mais especial para ti? Porquê?

Como não poderia deixar de ser, não existe apenas uma. Elejo, porém, a The Roof, da Mariah. Porque enuncia na sua letra detalhes que me recordam momentos passados.


5 - Se tivesses uma máquina do tempo, onde gostarias de ir? Porquê?

Caso tivesse uma máquina do tempo ao meu dispor, gostaria de ir ao local do desembarque de Pedro Álvares Cabral, no preciso dia 22 de Abril de 1500, quando aportou pela primeira vez no que viria a ser o Brasil. 
Porque a Idade Moderna, sobretudo os Descobrimentos, é a minha era favorita. Além disso, o primeiro contacto de tribos primitivas com os europeus, e vice versa, seria imperdível.


6 - Qual a tua maior qualidade?

Talvez o meu perfeccionismo.


7 - Qual o teu maior defeito?

A impaciência.


8 - Se pudesses mudar algo na tua vida, o que mudarias?

É uma pergunta ardilosa... Goste-se ou não, mudaria de país.


9 - Encontras a lamparina mágica e dela sai um génio que te concede um desejo. O que pedirias?

Num acto de cobardia - é discutível - pediria para morrer primeiro do que todos aqueles que amo.


10 - Qual a maior loucura que fizeste até hoje por amor?

Até hoje, nenhuma.


11 - Dá um título para o livro que é a história da tua vida.

A minha vida ainda é tão curta. Vivi muito pouco de emocionante. Ainda é tudo demasiado insípido. Daqui a umas décadas esta pergunta fará todo o sentido. ;)



   Passar a onze blogues... Como vem sendo hábito, deixo ao critério de quem lê o querer ou não participar. Participe quem assim o entender! ^^

25 de setembro de 2012

Autumn.



   Quando o clarão invadiu o quarto de rompante, pensei que talvez um paparazzo tivesse trepado a parede exterior até à janela do meu quarto, mas só depois me lembrei que apenas na casa de férias da avó existe uma trepadeira pelos meus aposentos. Em todo o caso, poderia ter refinado as suas tácticas de espião ultra-secreto de uma revista do social, desenvolvendo formas sobranceiras de atingir os seus intentos, nomeadamente aprender algo com o Homem-Aranha.

   O Outono começara sem anunciar, não fosse o calendário avisar-me do seu início, apesar de há muito a queda da folha existir apenas nos livros da Rua Sésamo, que o pai, religiosamente, comprava para que completasse a colecção. Nesses anos, progressivamente distantes, ainda poderia, caso quisesse, mergulhar sofregamente em amontoados dispersos de folhas alaranjadas, na companhia do Becas, sobretudo. A disciplina do Egas contrastava demasiado com o ímpeto que comandava as minhas emoções.


   Olho para os livros que terei inevitavelmente de ler e observo os contrastes. Têm menos imagens, será a conclusão imediata a que chego. São mais densos em matéria humana, superficial quando comparada aos sonhos de uma criança. Têm a importância que lhes conferimos. Será muita para quem frequenta o meu curso. Não terá valor na perspectiva equidistante de um engenheiro agrónomo ou de um veterinário, pese embora um livro seja um livro. Contudo, as fantasias do Poupas Amarelo eram compartilhadas com o futuro engenheiro agrónomo e com o veterinário. Unia-nos a vontade dos nossos pais em que crescêssemos felizes ou, pelo menos, salvaguardados - enquanto fosse possível - da maldade alheia.

  A transformação que se operou é semelhante à brusquidão das alterações meteorológicas e sazonais. Também a inocência se perdeu, num fenómeno igual  à extinção do clima ameno e outonal.

   Vou secar as folhas verdes que ainda restam para fazer a minha própria estação.

22 de setembro de 2012

Se o Arrakis tivesse uma piscina, seria assim...








   Ou, como nem sempre o mais elaborado é o melhor:







   Sendo que prefiro a última.


18 de setembro de 2012

Impressões.


   Pensei que me sentiria descontextualizado. Acertei.

   Quando saí do metro, o movimento da estação atrapalhou-me os sentidos por breves segundos. Uma desorientação momentânea levou a que me sentasse, já à superfície, num pequeno paredão de pedra. Alunos trajados obrigavam os caloiros a pronunciarem cânticos de letra indecifrável sem um esforço acrescido na acuidade auditiva. Os palavrões, esses, soavam nítidos como os raios solares à distância de cinco centímetros da minha perna direita. Agradeci a aragem que corria, algo fresca.

   A faculdade estava imunda, molhada e repleta de farinha pelo chão, misturada com um líquido que aferi pela cor tratar-se de vinho, rebuscando também as memórias de há dois anos. Gritos e palavras de ordem num átrio que parecia o cenário de uma revolução. Uma tribuna passava os tradicionais atestados de participação na cerimónia vexatória. Afastei-me o quanto antes da confusão.
   O facto de não participar não foi bem entendido pelas minhas colegas (algumas amigas), habituadas que estão a que tudo se faça porque sim. Se todos - ou quase - participam, não compreendem que se possa abominar todo o espectáculo teatral em torno do que referem ser uma integração.

  Primeira aula. Vinte e muitos graus centígrados num auditório pequeno e abafado. Alunos que se amontoavam. Bastantes vestidos informalmente. Sentei-me num lugar mais atrás e tentei identificar algumas cabeças, incluindo a do R. Tive essa curiosidade. Seria de supor que estivesse nos jardins, sacrificando alunos e alunas à sua fúria, sob a autoridade conferida pela capa negra. Numa mão o gesto de capataz, carrasco; na outra uma cerveja. São todos iguais.

   Isolei-me porque precisei. Quis escrever, escrever muito, justificar todas as ridículas imagens que acabara de ver, o tempo desperdiçado. Quis dar importância à aula, dotá-la de sentido, torná-la real. A regente satisfez-me um terço da vontade com as suas explicitações interessantes, embora indiciadoras de uma rispidez qualquer que pude identificar. Pelo menos, escusou-se às apresentações banais e costumeiras.
   O professor seguinte faltou. Sensato.
   
   
   Comprei uns códigos necessários e saí pela porta traseira.
   Pela porta dos fundos. Sossegado, em paz, sozinho, como quis.

15 de setembro de 2012

Regresso.


   Fico exausto com a frequência em que as emoções se repetem. Por meados de Setembro, a mesma nostalgia do regresso às aulas do primeiro ciclo: as competições para ver quem tinha a mochila mais in, o estojo mais colorido, as canetas de melhor qualidade e design. A quantidade de apetrechos que pediam aos pais, através das lista de material, chegava a ser ridícula. Nunca percebi se o intuito era estimular-nos a criatividade ou fazer os encarregados de educação gastarem rios de dinheiro em réguas, tintas da china, papéis fantasia, lápis de cera, canetas de feltro (dessas gostava)...

   A alegria de voltar não existia. Os longos meses de férias grandes tornavam-nos preguiçosos e acomodados à rotina. No primeiro dia de aulas, uma birra era inevitável. Um choro de menino mimado que por nada queria ter horários a cumprir ou deveres por fazer. Depois, com a passagem dos dias, os velhos hábitos davam lugar a novos e as aulas tornavam-se parte do quotidiano.


   Os anos em nada esbateram esses sentimentos. Contudo, as férias ganharam, também elas, uma monotonia impossível de ocorrer na infância, onde, por norma, tudo é divertido e sempre há algo para criar. Sou, então, envolto em desejos aparentemente contraditórios. A vida é uma contradição insanável.

   
   Comprei o material escolar - sem - ser - para - a - escola. É para a faculdade. Muito normal. Finalmente encontrei a pasta que tanto queria - semelhante à de uma colega - o que me colocou um sorriso nos lábios pelo resto do dia. Poderei ter a arrumação que desejava, continuando a separar cuidadosamente as disciplinas. É bastante mais prático do que um dossier ou toneladas de cadernos. O estojo tem padrões discretos, pouca arrumação, mas é sóbrio. Não encontraria um que fosse mais do meu agrado. Exceptuando uma caneta com uma girafa na ponta, que me relembra uma com um hipopótamo, cujo o interior tinha água e uns corações, o resto que adquiri faz parte dos artigos mais banais. Banal também foi o meu encontro com um colega, na Staples, onde pude apreciar o seu dossier em tons bordeaux. O meu estojo, ao seu lado, personifica uma qualquer mulher embriagada que actua, com o seu corpo, no Moulin Rouge, no exacto momento em que uma beata paga a sua promessa. A sua saudação, tão formal e universitária, fez julgar-me pouco sério. Por que motivo alguém de vinte faz de conta que tem cinquenta?

   Não precisarei de alguém que me acorde na segunda de manhã. A ansiedade fará de despertador.

12 de setembro de 2012

O complexo de aldeão.


   Viver ou não em Portugal nunca foi discutível. A hipótese de sair não pairava sobre os meus pensamentos, nem tanto por patriotismo ou comodismo, mas por jamais me ter ocorrido outra situação.
   À medida em que fui crescendo - e sobretudo após entrar na faculdade - fui tendo a noção de que não existem grandes elos de ligação a este país. Portugal é um país homogéneo, de costumes, religião e língua iguais em todo o território, onde o povo em si é bastante semelhante também nas ambições, vontades e ensejos. Tenho a sensação de que se fala a uma só voz; o grito sai da garganta quando chega a hora de defender os interesses nacionais, o amor à Pátria está lá quando é chamado a intervir. O pretenso orgulho de se ser português. Comigo nunca foi assim.

   Ultimamente, é-me constante a ideia de morar noutro país. O sentimento de pertença que abarca mais de dez milhões de habitantes não me cercou com os seus lânguidos braços. Pelo contrário, a génese do povo português afasta-me progressivamente, como a um forasteiro que percorre terras estrangeiras. Uma especificidade deve ser relatada: não é a situação económica do país que me amedronta, fazendo brotar um instinto de salvação. O que me move é o facto de sentir que, em grande medida, não sou deste lugar. Há um composto orgânico português impassível de ser negado. Há ascendência romana, celta, porventura árabe, em mim. Há tudo o que também se encontra em todos os lusitanos. Não há, todavia, o amor ao país. Há um olhar complacente perante a História, há um orgulho salutar na língua de Camões e Drummond de Andrade, Saramago e Bilac, Mia Couto e Agustina Bessa-Luís. É tudo.

   Terei as emoções de um latino, embora me seduza o pragmatismo das terras anglo-saxónicas. Um amontoado gigante, como o Canadá ou a Austrália, reinos de Sua Majestade, prende-me o olhar quando folheio avidamente as páginas das enciclopédias geográficas do Círculo de Leitores, compradas pela mãe. Os meus dedos deslizam pelos contornos das fronteiras desses países, num desejo explícito pelo imensurável, pelos quilómetros que se poderão percorrer sem que o fim esteja à vista. Um trauma, quem sabe, de ir ao norte e voltar demorando poucas horas. Um horror ao provincianismo de países pequenos, à estrutura de Estados unitários, a fuga urgente ao espesso manto da velha Europa, continente perdido.

   A epifania da felicidade estará por lá, ou algo que se lhe assemelhe. Não com bandeiras expostas em cafés e bares, concertos de música popular, visitas regulares «ao cantinho que viu nascer». Haverá dor, más memórias, rancor? Com certeza que sim. Nada o é por acaso.

   A adopção plena é um vínculo perpétuo, quebrando todos os laços anteriores à sua concretização. Que encontre, também eu, uma terra à qual possa chamar de minha.

10 de setembro de 2012

O amigo da Batá.


   O amigo da Batá está connosco há dezassete anos. Nos finais de Novembro de 1995, uma amiga da mãe resolveu presenteá-la com este bichinho. Cresci com ela. Provavelmente será mais velha do que eu.

   Não tem nome. Nunca foi baptizada. Era pequenina, segundo a mãe, e agora está deste tamanho. Não sabemos se é macho ou fêmea, mas tendo em conta que a Batá põe ovos e que esta nunca o fez, presumo que seja um macho.

   Eu e a Margarida somos compadres. :)


 

Não está habituado a tirar fotos. :D