31 de dezembro de 2015

O ano em revista.


   Dois mil e quinze finda em poucas horas. Um ano atribulado, por cá e lá fora. Decidi, num inédito, sobrevoar, por assim dizer, os acontecimentos que marcaram a actualidade de doze meses particularmente intensos. Para tal, reveste-se de extrema utilidade observar os temas mais relevantes que tratei.

     Em Janeiro, o mundo foi surpreendido com a tragédia que ocorreu com o jornal satírico Charlie Hebdo. Desafortunadamente, assistiríamos a um massacre alguns meses mais tarde.
   Fevereiro começou com um drama pessoal: o falecimento do meu avô paterno. Fui confrontado, verdadeiramente, com uma primeira perda. Outras houve que, pela idade, não me mereceram tanta reflexão e abatimento.
      Já em Março, um desastre aéreo na Alemanha, causado por um piloto suicida, abriu de novo o debate em torno dos sinais que não devemos ignorar e da responsabilidade das companhias de aviação. Andreas Lubitz ficou conhecido pelos piores motivos.
       Em Abril, greves mil. Iniciei o mês, coincidente com o meu aniversário, abordando a greve e o direito à greve, numa explanação pelo Direito do Trabalho, uma área que não é a minha, é certo, mas da qual guardo boas memórias. O mês não terminaria, contudo, sem um evento que mobilizaria a blogosfera (se tanto, aquela em que me insiro). Os CIGNO Awards. Arrecadei dois.
   Maio trouxe-nos o velhinho dilema das febres futebolísticas. A comemoração de uma vitória no campeonato, pelo centro de Lisboa, provocou danos materiais e confrontos violentos.

       Julho... O termómetro vai marcando temperaturas cada vez mais elevadas, e quente também ficou a situação na Grécia.
     Em Agosto, Angola mereceu a minha atenção. O que penso relativamente ao terrífico regime que vigora por lá, a propósito de umas declarações de Ana Gomes, ficou registado. Já o mês se encaminhava para o final e a crise dos refugiados arrebatava a nossa atenção. Tive tempo ainda de me debruçar sobre a mulher, numa análise histórica e jurídica, sobretudo.
        Ia Setembro no seu sétimo dia e já certos comportamentos por parte de alguns jornalistas levaram-nos à discussão sobre os limites na cobertura de determinados casos mediáticos; a fronteira entre o informar e o devassar. Aproximando-se as legislativas, tivemos debates que fizeram emergir algumas questões que achei oportuno esclarecer, deixando ainda um repto quanto ao acto eleitoral.
        Em Outubro, caem as folhas e caiu a política por aqui. Tracei um rescaldo às eleições. Discuti, num primeiro momento, as Presidenciais, e ainda tive tempo para abordar a decisão do Presidente da República e os caminhos possíveis para conhecermos um novo Governo.
       Novembro, mês da castanha assada. Assado, perdoem-me a expressão, ficou também Pedro Passos Coelho e o executivo que liderou por breves momentos, sendo derrubado na apresentação do seu programa. Dias depois, Paris e o mundo emocionavam-se com o massacre que ceifou a vida a centenas de inocentes. No final do mês, referi as primeiras medidas da nova maioria parlamentar e a indigitação de António Costa e os seus desafios.

       No mês corrente, optei por não deixar cair em esquecimento o que se comemora no Primeiro de Dezembro. A meados, um artigo, o segundo (até ao momento), sobre as Presidenciais.

         Um ano que, como se vislumbra, não foi particularmente pacífico, benévolo e sereno. Tão-pouco a nível pessoal. Já o disse noutras circunstâncias, escusando-me a mais considerações nesse sentido. Espero que dois mil e dezasseis seja bem melhor. Para todos. No planeta, em geral; para mim, em particular. Que encontre a tranquilidade que me é recusada. O rumo. Será, como os anglo-saxões dizem, um turning point. Façamos por isso.

          Resta-me formular os votos. A todos, indiscriminadamente, desejo que 2016 seja um bom ano. Melhor do que o que cessa. Que o possamos encher de sorrisos e de alegria. Que os maus momentos não superem os bons. Boas entradas!

* A azul, as hiperligações para os artigos.

28 de dezembro de 2015

Nietzsche.


   O primeiro contacto com o pensamento de Friedrich Nietzsche (1844 - 1900) teve lugar na minha conturbada adolescência. Alternava, portanto, entre escritos religiosos (a Bíblia, que li com subtileza tal que presumo não conseguir hoje; o (Al)Corão, que comprei traduzido, claro está, ainda que os muçulmanos defendam que perca a sua pureza, uma vez que a palavra de Deus ao Profeta, em árabe, é a sagrada; os cinco pilares da doutrina espírita) e Nietzsche, o incorrigível e militante ateu.

    Assim Falava Zaratustra foi a primeira obra que li do autor, bem novinho. O seu magnum opus, dito por mim, pegando nas inúmeras referências que encontramos a este livro em toda a sua bibliografia. Acredito, como alguns, que muitos têm os seus momentos de glória. E aqueles há que não os conseguem ainda que escrevam um quinhão apreciável. Nietzsche teve-o com o Zaratustra. Foi-me verdadeiramente importante familiarizar-me com uma visão do homem enquanto ser que se supera. Ademais, fui confrontado, pela primeira vez, rodeado que estava de crendices, com um Deus que está morto, com uma Igreja falida e decadente. Nietzsche eternizou-se com esta criação. A partir daí, podia ter ficado em silêncio até à morte física. Nasceu, como predestinou, póstumo. Mas não ficou.

      Anos volvidos, regressei ao filósofo, desta vez com A Gaia Ciência. Como geralmente me sucede, curioso, volto atrás e procuro as origens do que me encantou. Julgo, e Nietzsche que me perdoe, que esta obra é quase um prelúdio do que viria, sem querer tirar a originalidade do seu Zaratustra, que, aliás, surgiria autonomamente mais tarde. Com este livro, numa escrita mais ligeira e até amena, Nietzsche não descura aqueles que foram, pela vida, os seus alvos dilectos: a religião e a moral dos homens.

     Há dias, adquiri o terceiro livro que completa a minha colecção de Nietzsche, ainda que outras obras componham o seu legado: Ecce Homo. Um Nietzsche que, eu diria, todos procuram. Profuso, implacável, misógino, narcisista, mordaz, arrogante, pedante, snob, elitista, insano, assaz inteligente. Génio. Não sei se ainda estou disposto a ler algum outro livro de Nietzsche. Creio que o finalizo muito bem. Ecce Homo foi escrito no período em que a perturbação mental de Nietzsche se agravou sobremaneira, e isso facilmente se percebe. Os alvos mantêm-se. Noto certo sarcasmo em dose adicional. Desponta com todo o esplendor a sua veneração aos franceses e ao que da cultura francesa resulta. Não se preocupou em parecer bem aos olhos de quem quer que fosse. Discorreu na grandiosidade da sua mente fecunda. Mestre do aforismo, tão-pouco negligenciou essa arte em recorrer aos seus atributos inatos para nos fazer chegar a mensagem pretendida.

      Aconselho Nietzsche a quem busca um olhar esclarecido sobre a sociedade alemã do século XIX e uma resposta inequívoca à pretensão do catolicismo em resgatar as nossas almas. Jamais será consensual, daí que acredite que haja quem não lhe ache graça a seus olhos. Fica, no entanto, o essencial das três obras a que tive acesso, e o convite a que conheçam um homem que deixou o seu nome marcado indelevelmente na história da filosofia.

26 de dezembro de 2015

Kris Kringle | Mikel


   No desafio apresentado pelo Namorado, e que prontamente aceitei, do "amigo secreto", calhou-me em sorte o Mikel Shiraha. E digo em sorte porque, com efeito, conheço o Mikel. Estivemos juntos em algumas ocasiões. Não saberei, com exactidão, responder a determinadas perguntas do questionário, garantindo apenas que darei o meu melhor. Claro está que a tarefa queda facilitada quando temos algum contacto com o dito amigo secreto. Conheço o Mikel há uns três anos. É um rapaz simpático, atencioso. 
    Vamos lá, então. Uma pequena nota referente ao atraso na publicação: o Natal é um período que envolve algum dispêndio de tempo e de energia; fomos para casa dos avós, entretanto tive os preparativos da Consoada e do Dia de Natal, enfim, não me restando outra alternativa senão adiar. E vem muito a tempo, creio. :)

Cor dos olhos: Sou péssimo nestes pormenores, é uma vergonha, mas eu diria que são castanhos;

Número de sapato: (só tu, Namorado) Gosh, é-me tão estranho responder a isto (risos)... Hm... Err.. 41?;

Cor favorita: Estou convencido de que o Mikel já me disse isto... Não tenho ideia do contexto. Azul?;

Praia ou montanha: Vejo mais o Mikel a fazer montanhismo;

Tipo de música favorita: Pop, sem dúvida;

Data de início da actividade bloguística: Não posso afiançar, dado que o Mikel já teve outras plataformas, se bem que me recordo de uma conversa sua sobre um blogue de Pokémon, em 2004, salvo erro;

Personalidade que o amigo secreto o faz lembrar: Um roteirista. Um autor de seriado ou de novela, por exemplo, que considero, como de resto já lhe disse, uma área em que ele deveria apostar. E o formato novela é digníssimo, saibam. Porque os seus contos, a meu ver, facilmente seriam adaptados a uma série ou a uma novela. Têm acção. Não são narrativas estáticas. 
Na ficção, o Ash. Assenta-lhe bem;

     Espero que tenha feito um bom trabalho. Não vi o meu. Quem sabe e a quem calhei ainda o publica? Se não o fizer, fá-lo-á o Namorado. Justiça lhe seja feita.
      Continuação de boas festas.

24 de dezembro de 2015

Feliz Natal.


   O Natal é uma época de comunhão, de entrega. Uma reunião de família. Evocamos os vivos e tratamos de não esquecer os mortos. Tem um simbolismo especial. Das Consoadas fartas de risos, de sonhos, de magia e brilho. As mesas, ricamente decoradas de iguarias, entre um cálice de Boas Festas em votos que se brindam.

   Que possamos exportar o espírito da quadra para o ano inteiro. Que encontremos, enquanto humanidade, a paz que apregoamos nestes dias. Que façamos da tolerância, do respeito, da compreensão, da entreajuda, os guias, as matrizes, no relacionamento entre os povos. Porquanto o Natal, na celebração de Nosso Senhor Jesus Cristo, perpetua o seu nascimento entre os homens. O Filho Unigénito que veio em nossa redenção, livrando-nos da iniquidade e abrindo portas à vida eterna.

      A todos os que me lêem e seguem, aos amigos, os meus votos de um feliz e Santo Natal.


Mark



21 de dezembro de 2015

Christmas Time Is In The Air Again.


   Acordei bem cedo. Lá fora, a névoa tão característica da quadra. Podemos dizer, com firmeza, que estamos na semana do Natal. 
     Saí à rua. A mãe, despertando com os meus passos, perguntou-me o que iria fazer tão cedo. Sabe que os presentes estão todos comprados e adequadamente arrumados, incluindo o seu e os dos avós. Inquietou-me a ideia de deixar de apreciar a neblina por uma preguiça em saltar para fora da cama.

    Falei com o pai, ontem. Perguntei pela avó. Está triste. Será o primeiro Natal sem o avô em perto de setenta anos, contando o tempo em que estiveram casados e os anos de namoro. Acredito que a data não lhe traga mais do que dolorosas recordações. Quando chegamos a certa idade, pouco sobra do nosso ser vivente, porquanto fomos perdendo pedaços com quem vimos partir. Será o seu caso.

     A minha Consoada e respectivo Dia de Natal serão passados com a mãe e os avós, num jantar e num almoço intimistas. Não há grandes famílias, crianças correndo, embrulhos coloridos aos pés da árvore. Tudo muito sóbrio.
      Peguei na Bíblia. Quero ler passagens do Novo Testamento. Sublinhá-las. É tão humano socorrermo-nos de Deus quando nos sentimos fracos ou incapazes. Li-a em adolescente, naquelas leituras que fazemos por vontade incontrolável em aprender e por curiosidade, mas em que não possuímos, pela natural inexperiência, a capacidade para extrair devidamente os ensinamentos. Acredito que todos os livros religiosos têm as suas verdades, perfilhemos qual religião, ou nenhuma. Deus ter-se-á manifestado em cada um deles, inspirando os homens que os escreveram. Talvez a religião não seja o ópio do povo, como defendeu Marx. Talvez o homem seja o seu próprio ópio. Quando lemos escritos considerados sagrados, não devemos iniciar a empreitada esperando encontrar passagens que mereçam a nossa reprovação; devemos fazê-lo com um espírito crítico, sim, contudo numa leitura honesta, despojando-nos do nosso preconceito. Nada é intrinsecamente bom ou mau. Tudo tem a sua coerência. A Bíblia é um livro lindíssimo. Alguma passagem do Levítico, escrita há milénios, por mais injusta que nos pareça, desmerecerá uma obra de inestimável valor.

     Faltam três dias. O pai comemora o seu aniversário na noite de Natal. Tenciono vê-lo antes. Entretanto, façamos um balanço, pensemos nas nossas prioridades, e estejamos serenos. Para uns, estes próximos dias simbolizarão saudade, remorso; para outros, júbilo, confraternização, esperança. Que venham os doces e os papéis-fantasia espalhados pela carpete da sala de estar.

17 de dezembro de 2015

As Presidenciais (II).


   Estamos a pouco mais de um mês das eleições presidenciais. A bem ver, tentei evitar abordar assuntos políticos até ao Natal. A quadra em si propicia a uma pausa. As famílias juntam-se, muitas nos dois únicos dias do ano, e todos já pensamos nos doces e nos presentes. Não obstante, a vida não pára. E o acto eleitoral que se avizinha reveste-te de uma importância como nunca antes vimos. Eleger um Chefe de Estado, no nosso sistema, implica sufragar alguém a quem a Constituição mune de especiais poderes com relevância prática e constante. Isso pudemos verificar recentemente, com o impasse governativo em que estivemos pela demora do Presidente em empossar um Governo que garantisse a estabilidade social e económica do país.

   Uns candidatos desistiram; outros ficaram pelo caminho. A disputa será, à partida, sem prejuízo de algum que escape à minha menção, por lapso ou visível irrelevância política, entre Marcelo Rebelo de Sousa, Maria de Belém, Sampaio da Nóvoa, Edgar Silva e Marisa Matias, com particular destaque aos primeiros três, mediante que os dois últimos representam facções que dificilmente, sejamos objectivos, lhes permitiria passar sequer a uma segunda volta.

   Como a imprensa adianta, há um favorito. Um favorito da Comunicação Social e de determinados sectores da vida pública. E a esquerda, que tamanhos obstáculos encontra em se unir, já o percebeu. Marcelo é católico fervoroso, é do PSD. Ainda que tente fazer esquecer a sua militância político-partidária, ela existe e faz-se sentir. Será um Presidente interventivo. Mais do que se desejaria ou até mesmo do que a Constituição faz presumir. A sua atitude, nesta campanha, não tem sido particularmente respeitosa para com os demais candidatos, seus adversários. A entrevista concedida na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa foi claramente uma instrumentalização que visou manipular a opinião pública. Um Presidente não tem necessariamente de ser um jurista, constitucionalista. Apresentar-se na sua escola não o torna um político mais confiável. Eu disse político? Como o Senhor Professor rejeita esse vínculo!

     O favoritismo de alguns órgãos de Comunicação Social constatou-se, nomeadamente, nos tempos das entrevistas. Marcelo foi beneficiado no dobro dos minutos permitidos aos demais candidatos. A par de injusto, a observação que no imediato nos merece, é tendencioso e intolerável numa democracia de quarenta anos. A acrescer, Marcelo passou por uma exposição televisiva de mais de uma década, através dos seus comentários políticos, ora na TVI, ora na RTP. Quem precisaria de cartazes espalhados pelas ruas do país?

       A postura do Partido Socialista favorece Marcelo Rebelo de Sousa perante o eleitorado; Marcelo que já reúne o apoio explícito do PSD e do CDS. O Partido Socialista demonstra não querer se comprometer com qualquer um dos candidatos do seu espectro político, o que debilita as candidaturas da esquerda, cujos esforços para sujeitar Marcelo a uma segunda volta carecem de maior empenho e determinação. O risco de uma eleição à primeira volta persiste. E Marcelo não quer sofrer a "síndrome de Diogo Freitas do Amaral", nas célebres eleições presidenciais de 1986, que obteve um resultado expressivo na primeira volta, sendo derrotado na segunda por Mário Soares, que reuniu até o apoio do PCP.

        Na tradição portuguesa, um Presidente eleito para um primeiro mandato é reeleito cinco anos depois. Quem iremos escolher, sentar-se-á em Belém até dois mil e vinte seis. O país não pode ficar refém de alguém que almeja a Chefia de Estado por forma a vingar uma carreira política fracassada. O preço de uma má escolha será, certamente, cobrado, e apenas a nós poderemos imputar essa decisão errada.

14 de dezembro de 2015

Dear Jesus.


   Lisboa, 14 de Dezembro de 2015,

   Querido Jesus,


   Este ano, decidi que apelaria a Ti. Dizem por aí que o Pai Natal é mito. Um mito, aliás, criado com fins lucrativos. Em todo o caso, saliento que mantenho a tradição de escrever uma cartinha pelo Natal. Certamente recordar-Te-ás, porque dizem que duas das características do Pai são a omnipresença e a omnisciência, e do Filho, infiro eu, que em todas as cartas referia a minha crença obstinada em Deus. E na Tua palavra, por suposto. O Pai Natal, em boa verdade, não passava de um destinatário fruto da influência das crianças, das revistas e da televisão. Ficava por lá, no cabeçalho da carta. No conteúdo, apenas Deus e eu. Raras vezes, ou nenhuma, Te referi. Assumo o erro. Pegando no catecismo, e já que a minha educação, como a da maioria do povo português, é católica, Deus reside no Pai, em Ti, o Filho, e no Espírito Santo. Ao dirigir-me a Deus, imediatamente Te invoco.

    Há dez anos, começaram as hostilidades. E o fim da minha família. Os pais entraram em guerra. Uma guerra que, se bem Te lembras, designava por Guerra Fria. Tal como a Guerra Fria, nunca assisti, felizmente, a confrontos. O pai e a mãe representavam o bloco ocidental e o bloco soviético, respectivamente. Houve mísseis na Turquia, em Cuba; houve, inclusive, uma invasão da Baía dos Porcos, mas pouparam-me, e pouparam-se, a dores maiores. Separaram-se suavemente. Eu diria que a relação de vinte anos se dissipou, se dissolveu tal qual o açúcar no leite quente. Na noite de Consoada, a mãe saiu depois do jantar. Foi ter com a sua nova família. Eu e o pai ficámos na sala. Eu olhava para a árvore, olhava para os presentes. O meu rosto, reflectido no vidro da janela, cintilava as cores das luzinhas, que piscavam em sintonia. Não entendia bem o que estava a acontecer. Sentia, no fundo, que passava por um abalo que alteraria para sempre o rumo das nossas vidas. Um mês depois, o pai disse-me: "(o meu segundo nome), a família terminou". As suas palavras ecoam no meu ouvido. Observo-o, sei a sua roupa, a divisão da casa, a sua posição, a hora do dia. Como se revivesse esse doloroso momento. O pior estaria por vir.

      Dois mil e quinze foi o pior ano desde dois mil e seis. Dois mil e seis, com efeito, foi o meu annus horribilis, do início ao fim. Como depois do terramoto vem um período de ligeira acalmia, recuperei nos anos seguintes. A minha "viradeira". Pensei que o tempo levaria a que, progressivamente, me esquecesse. Cresceria, teria a minha vida, autónoma, independente. Como nos enganamos. As respostas mudam. No sentido inverso ao expectável, cada vez doeu mais e mais. Pela inércia que demonstrei. Sei que era um imberbe adolescente, sei que pouco poderia fazer, mas teria sido suficientemente corajoso para afastar aquele homem dos destinos da mãe. Não teria problema em pegá-lo pelos colarinhos - e perdoa-me o tom agressivo, tão oposto ao Teu ensinamento de perdão, sou pecador - e afugentá-lo com uma repreenda bem dada.
      Senti-me no centro de uma derrocada. E tudo ruiu. Sob os escombros, fui construindo o meu débil edifício. Os materiais são de parca qualidade. Ao menor indício de tormenta, a estrutura oscila. E pode cair. A idade trouxe a experiência, a consciência, o discernimento. Não trouxe a paz de espírito. Que ainda procuro, sofregamente.

     Não Te pedirei brinquedos. Não sou uma criança. Quanto aos bens materiais, eu mesmo, humanamente, proverei. E certamente terás a quem socorrer. Apenas Te peço para que olhes por mim. Que perdoes as minhas crises de cepticismo, que não as nego. Mas só quem tem muita fé é que se pode dar ao luxo de duvidar, parafraseando Nietzsche. Ironia das ironias, mencionar um homem que sempre duvidou da Tua existência. O Teu coração é grande para acolher os incrédulos.


lots of love,
Mark

10 de dezembro de 2015

Christmas Gifts.


   Inevitavelmente, acercando-nos da quadra natalícia, não consigo deixar de pensar no que me oferecer. Já tive fama de consumista. Como se diz, e eu sou um apreciador dos ditados populares, acreditando que encerram em si verdades inequívocas, «fama sem proveito, faz mal ao peito». Com efeito, fui acostumado, mal, diga-se, a receber presentes para suprir certa incapacidade parental. Pensavam, creio, que os presentes surtiriam em mim uma compensação por tudo aquilo a que não tinha acesso e que era fundamental para um são crescimento.

    Não é verdade que compre muito durante o ano. A par de roupa e calçado, não significativamente, e de livros, estou aos meses sem comprar nada. Atendendo a que o Natal perdeu todo o seu sentido primitivo, transfigurado que está a uns dias em que não mais fazemos do que comer/engordar e presentearmo-nos mutuamente, decidi, desde há uns anos, que melhor seria oferecer-me. Contornava certa hipocrisia de, sob o signo do nascimento do menino Jesus, andar a trocar caixas de embrulho com meio mundo, e sempre pecava menos aos olhos do Senhor. Portanto, vamos lá comprar, «que tristezas não pagam dívidas» (já tinha dito que adoro a voz do povo). E como dívidas não tenho e tristeza tenho de sobra, nada a perder.

    Este artigo, ou post, como lhe queiram chamar, será assim um nadinha mais fútil, que combina com a quadra, convenhamos. Luzinhas, bolinhas, anjinhos, paz & amor, amigos "fóreva" (ainda que se odeiem o ano inteiro).
     Um casaco vermelho. Ando a namorar um casaco vermelho, lindo, que vi no El Ganso do ECI. Tem um senão: é caro. Três dígitos, sendo que o primeiro é o algarismo dois. Para um mero casaco é significativo. Ando a ponderar se o custo vs. benefício compensará a que venha a despender essa soma. O casaco é clássico, como gosto. E é vermelho, ou seja, não será um casaco para utilizar com muita frequência. Como a mãe faz questão de me recordar, eu tenho imensos casacos. Não precisaria, é verdade. Em vermelho, tenho um, mas é de uma fase meio casual que tive. Não gosto mais.

      Perfume. Natal sem perfume é como fazer compras no Colombo. Nunca sei que perfume comprar. Este ano, tenho sondado o mercado e gostei particularmente dos Spicebomb. De qualquer um da gama. Tem um certo aroma almíscarado com suave textura de madeira. Uma mistura interessante. Ao folhear o meu catálogo do El Corte, que será a minha Bíblia Sagrada/Código Penal/A Participação de Portugal na I Guerra Mundial/romance, policial, drama, comédia de cabeceira, dei com umas sugestões também elas de não ignorar. Aliás, aceito-as. Se quiserem sugerir-me algo, estejam à vontade.

     Consola de jogos. Fui daquelas crianças que adoravam jogar nas suas consolas. Da Nintendo (e tive todas até à GameCube, inclusive). Tive a PS2 e a PSP, no entanto quem me priva do Super Mario, priva-me de tudo. Pensei numa Nintendo Wii U. Porém, quem entende minimamente de videojogos sabe que as consolas da Nintendo têm um revés: a descontinuidade. Não tarda é descontinuada. Não consegue igualar-se à rival PS. E se comprar a consola, não compro o casaco, claro. Que isto é o Natal, não é o devaneio consumista.

       Por último, aquelas comprinhas circunstanciais. Um cachecol, provavelmente. Quente e ligeiramente colorido, sem ser espampanante. Vi uns, na Springfield da Guerra Junqueiro, bem giros. Como sou portador de um cartão da cadeia de lojas, que já acumulou uma quantia significativa, é seguro que vá lá dar-lhe uso. Talvez ainda compre uma mochila ou uma mala. Depende da verba que já tenha desembolsado até então.

        ... até nem é muito, pois não? Abrirei uma excepção para a mãe e a avó. Não sei que lhes dê. Ano após ano, já explorei todas as hipóteses. Não cairei numa brejeirice. Darei com alguma coisa.

        Esta publicação custou menos. Não vos enfadei com as inconstitucionalidades orgânicas, nem com as Guerras Púnicas. :)

6 de dezembro de 2015

Evocação do homem só.

 
    Uma tarde que anoitecera cedo. Um prenúncio de madrugada longa. A estação fervilhava àquela hora. Dezenas de pessoas encaminhavam-se para os respectivos comboios, no afã de um domingo que antecede outra jornada de trabalho.

    As luzes da estação incidiam sobre o átrio, desvendando um espaço amplo, frio, impessoal. Indiferente. Despedi-me à entrada. Quis dizer mais do que disse. Em como tudo estava errado na tela mal pintada. Por que terá de ser assim? 
    Lá fora, um amontoado de gente faminta. Alguns bem vestidos. A mendicidade batera-lhes à porta, acidental e bruscamente. O senhor das castanhas olhava de soslaio, desdenhando. A afluência espantava-lhe a freguesia. Velhos e novos, de todas as cores, proveniências. O voluntário não parava de sorrir, distribuindo sumos, pratos de comida indiscernível e palavras de apreço. Um breve contacto que, ainda assim, alenta em existências de solidão.

    Gesticula mensagens imperceptíveis. Brada aos que o rodeiam. Tem uma deficiência na perna que o impede de andar correctamente. A razão, há muito que perdeu. Mais um filho do colonialismo, da guerra e do sonho frustrado de uma vida de ventura na metrópole. O rosto preserva as marcas do sofrimento. Os olhos mantêm especial vivacidade e brilho, toldados, contudo, pelo intelecto que soçobrou aos anos de carência afectiva e de miséria.

      Os taxistas reúnem-se, conversam. Arrumam as malas portentosas dos passageiros nos porta-bagagens e arrancam. Os estabelecimentos das imediações fazem negócio. Tudo reportou-me, inexplicavelmente, aos vendilhões do templo. Não por um carácter divino do local, que não tem. Pela convivência entre o dinheiro, vil, profano, e a ajuda desinteressada de quem colmata necessidades tão prementes.
        E a virtude, sabemos onde está.

1 de dezembro de 2015

Um de Dezembro, o Dia da Restauração.


    Ligo a televisão num canal noticioso. Assisto a uma breve menção, e em rodapé, quanto à data que hoje se comemora, ainda que não mais seja um feriado oficial; suprimido, com outros, nas medidas  de contenção implementadas pelo anterior executivo. A identidade europeia, a sua construção, não é complacente com a exaltação de qualquer valor histórico, nacional. O último golpe surgiu com a supressão do feriado, data simbólica, que o recém-empossado Governo pretende repor, e bem.

    Escusar-me-ei a considerações históricas pormenorizadas. Encontrá-las-ão no meu artigo alusivo de há um ano, nomeadamente. Por respeito aos homens que lutaram para que hoje existíssemos como Nação independente, não poderia deixar passar em branco o dia que tantos insistem em olvidar. Assistimos por esse mundo fora a movimentos secessionistas, a guerras pelas independências, tão conotadas actualmente com o terrorismo. Junta-se na mesma lista organizações terroristas e grupos que lutam, embora não o façam pela via legítima, diplomática, pela autodeterminação dos seus povos. Também nós estaríamos nessa posição ingrata, sob suspeita das inteligências de dezenas de Estados, se a conjura de 1 de Dezembro de 1640 tivesse sido sufocada; se aquele grupo de homens não irrompesse pelo palácio real, prendendo a representante de Filipe III, Margarida de Sabóia, a duquesa de Mântua, fazendo cair o seu poder, e o do seu primo, no Terreiro do Paço.

     Portugal é o Estado europeu com as fronteiras, definidas em tratado, mais antigas. Conseguiu a custo, por séculos, escapar à lógica histórica, geográfica, cultural e linguística a que pertence, Espanha, aqui não enquanto Estado espanhol, numa apropriação indecorosa de um término comum a todos os peninsulares, mas como a herdeira da Hispania romana e visigótica. Por várias vezes El-Rei D. João III fez referência a esse costume castelhano que acabou por se impor. Afinal, a Espanha está quase unificada, mal ou bem, com maior ou menor resistência. O que tantos, por cá e por lá, tentaram e não conseguiram. Esse foi o anseio e o propósito de muitos dos monarcas portugueses, castelhanos e aragoneses. Se somos nós que escapamos à irresistível união, provavelmente não seria justo continuar a lutar em defesa de uma identidade à qual de sempre nos esquivámos.

     Talvez a nossa pouca memória faça parte de um plano meticulosamente engendrado, talvez seja um sinal dos tempos, da globalização, da perda sistemática de valores. Porventura, o acontecimento em si não merecerá mais do que uma nota de rodapé num noticiário das onze da manhã, e o errado sou eu em persistir (ou insistir...) numa batalha perdida. Que os restauradores, esses, por vinte e oito anos de guerra subsequente com Espanha, não perderam uma sequer. E tão pouco reconhecimento têm.

29 de novembro de 2015

Almost December.


   O ano aproxima-se da recta final. O último mês, para muitos o mais aguardado. Tenho um sentimento misto com Dezembro. Por um lado, mantenho a ingenuidade própria das crianças. Anseio por montar a árvore, por decorar a casa. Gosto do lado festivo do Natal. Da iluminação, incluindo nas ruas, do reboliço, das músicas, dos gorros e dos cachecóis coloridos. O reverso encontra alguma melancolia nas recordações que traz, dos anos em que tive verdadeiramente uma família. Não a melhor, a mais equilibrada: a minha, e dessa sinto profunda saudade.

    Por vezes, é como se lutasse contra uma maré. Têm-me dito de que se trata apenas de mais uma época, que seria suposto relativizar a importância que dou a dois dias desvirtuados por completo do seu sentido primitivo. Refuto a crítica. As semanas natalícias são, no fundo, o pouco que ainda não foi tomado pelo realismo da vida adulta. Em verdade, o que consegue colocar-me um brilho nos olhos, um sorriso, um dinamismo qualquer que afaste a apatia.

    Lisboa, salvo determinadas ruas, mergulhou num negro muito pouco enquadrado com um final de Novembro, em que seria suposto vislumbrar a árvore gigante, dignamente decorada, e a Avenida da Liberdade com alguns encantos. A Rua Augusta, graças à vertente marcadamente comercial, tem luz, brilho e decorações privadas que nos dão um cheirinho a Natal. Espero que revertam esta situação o quanto antes, até porque os gastos do orçamento municipal em iluminação são compensados pelo estímulo a que as famílias saiam ao centro da cidade, consumam, se divirtam e fujam dos centros comerciais.

      Por cá, nada fiz. Ninguém tem paciência, ninguém me acompanha. Preciso ganhar coragem para tirar a árvore e para me empenhar na decoração. Comprei, há umas semanas, dois mimos no El Corte Inglés: uma rena vermelha, que posteriormente troquei por uma castanha, por defeito, e uma bola de pano também em tons rubros. Creio que o vermelho, o dourado e o prateado, este último menos, são as cores ideais para uma árvore. Não excessivamente ornamentada; a beleza encontra-se no equilíbrio. Queria comprar enfeites novos. Decidi substitui-los gradualmente, dado que já conjecturo a minha lista de presentes (disse-o há uns anos: não troco presentes, comprando o que gosto; mando fazer os embrulhos e ofereço-me... tem piada para mim). Além do presépio, o que completa o aparato em torno da árvore são, precisamente, os embrulhos no chão.

      A mãe diz-me que ainda falta muito até ao Natal. Nós sabemos que não é assim. E a excitação não me permite que fique confortavelmente à espera que a quadra se concretize. Nada, nem os sonhos, se confirma se não perseguirmos.

25 de novembro de 2015

O dia seguinte e os desafios.


     Para minha surpresa, Cavaco Silva decidiu-se pela indigitação de António Costa. Muito embora esta fosse uma das possibilidades, é notório que o Presidente da República não o fez de bom grado. Adiou o mais possível, reuniu-se com personalidades de vários quadrantes, incluindo da banca, deixou claro que a tradição constitucional portuguesa leva a indigitar o líder do partido ou da coligação mais votados. Foi, efectivamente, uma decisão de ultima ratio, depois da rejeição do Parlamento ao programa do Governo ainda em gestão. Relembro que António Costa e os membros da sua equipa ministerial ainda não foram nomeados.

     O Presidente da República fez exigências a António Costa. Algumas foram noticiadas pela imprensa. Com toda a movimentação em Belém, parecia certa a indigitação do secretário-geral do Partido Socialista.
     Um Presidente da República deve garantir soluções de estabilidade para o país. Não me merece qualquer crítica a actuação de Cavaco Silva. Conhecendo os desafios pelos quais o país atravessa, sabendo de antemão que a esquerda em Portugal é avessa a entendimentos, Cavaco Silva procurou, dentro dos poderes que tem, assegurar que o próximo executivo a empossar é estável, duradouro. O compromisso que procurou ver firmado quanto ao Orçamento de Estado isso o evidencia. O país não pode correr o risco de assistir a sucessivas quedas de Governos. A durabilidade e a confiança são palavras de ordem nos dias que correm. Já a exigência de estabilidade nos mercados financeiros parece-me pouco plausível, acompanhando eu aqui o entendimento do meu estimado Professor Marcelo Rebelo de Sousa. Nas circunstâncias actuais, e num mundo globalizado, em que todos os países são susceptíveis a crises que não despoletaram, ao impacto da própria instabilidade internacional, ninguém poderá garantir segurança alguma nessa matéria. Pode e deve, isso sim, certificar-se de que Portugal manterá a sua tradicional postura europeia, atlântica, cumpridora. Conquanto seja um crítico da subserviência à União Europeia, considero que este momento não é o mais indicado para que possamos fazer valer qualquer vontade ou pretensão. E sabemos como o PCP e o BE são anti-europeístas. O apoio destes partidos é fulcral para a sobrevivência de um Governo minoritário do PS.

      Costa tem sérios desafios pela frente. O primeiro será o de pacificar a sociedade portuguesa. Há quem não tenha visto com bons olhos esta manobra partidária que derrubou o Governo da PàF, ainda que seja totalmente legítima atendendo ao nosso quadro constitucional. O Governo de Costa estará irremediavelmente sob suspeita da direita e dos seus apoiantes. O segundo desafio despontará com o próximo Presidente. Seja ele qual for, sabe em que moldes esta solução governativa surgiu. Poderá ceder à tentação de devolver a voz ao povo, ao mínimo indício de crise no seio da, como direi?, convenção de esquerda. O terceiro, pegando onde terminei, será o de manter este suporte parlamentar. Há quem ponha em causa o futuro dos acordos entre PS, BE, PCP e Os Verdes. Aguentar-se-ão unidos se algo correr menos bem? Veremos. O quarto desafio será o de manter o equilíbrio das contas públicas. Já ninguém de bom senso defende que o rigor se não deve manter. O tempo das obras faraónicas já lá vai nos idos anos noventa. Portugal é pobre, pouco produz, não se basta (nem energeticamente...), é dependente. Geramos pouca riqueza, temos de viver com o que temos. Contudo, esse equilíbrio não deve ser cego e obstinado, perdendo-se a razão, a humanidade. Não há progresso assente na injustiça, em cortes abruptos e desproporcionais nos salários e nas pensões, recuando nos direitos sociais, atentando contra a protecção da confiança das pessoas no Estado social. Costa deve comprovar manifestamente a sua diferença face à direita a que tanto se opôs; deve demonstrar, sem margem para erro, que o PS diferencia-se do PSD. Que há uma alternativa. Que não «são todos iguais».

      Se superar os quatro desafios supracitados, auguro-lhe alguma tranquilidade. Caso contrário, arriscará a uma pena severa: o julgamento do povo e a desforra de Passos Coelho, de Paulo Portas e de todos quantos assistirão de perto, muito de perto, ao seu desempenho governativo.

22 de novembro de 2015

Primeiras medidas.


    A maioria parlamentar, expressando a vontade dos eleitores, iniciou funções discutindo matérias fracturantes, que não reúnem o consenso na sociedade portuguesa. Uma delas assenta na revogação das recentes medidas aprovadas pelo Governo anterior no que respeita à obrigatoriedade de a gestante recorrer a uma consulta médica antes de se decidir pela interrupção da gravidez, bem como a abolição das taxas moderadoras introduzidas. Ainda se decidiu revogar a possibilidade de médicos objectores de consciência poderem participar nas consultas. PS, BE, PCP e Os Verdes apresentaram projectos de lei propondo a revogação destas alterações introduzidas já no final da anterior legislatura. A maioria votou favoravelmente. Essas alterações, depois de concluídos os trâmites, serão expurgadas do ordenamento jurídico.

      A minha posição quanto à IVG é clara: sou contra quando está em causa a mera opção da mulher. Respeito, contudo, a decisão do povo referendada em dois mil e sete, encerrando (pelos vistos não definitivamente) uma questão que se arrasta há mais de trinta anos. Nesse sentido, era favorável à obrigatoriedade da consulta, podendo discordar pontualmente dos seus moldes, assim como defendia a manutenção das taxas moderadoras. O Estado está obrigado constitucionalmente a proteger a vida. Não deve, por isso, participar nos atentados à vida humana, incluindo intra-uterina. É uma questão de coerência. Quem quer interromper a gravidez, pois bem, pague-o do seu bolso. Parece-me claro.

       Estava também em cima da mesa a adopção por casais compostos por membros do mesmo sexo. Como sabemos, até então qualquer cidadão, preenchendo os requisitos exigidos por lei, podia adoptar singularmente. Contudo, o regime estava vedado a casais compostos por pessoas do mesmo sexo, casados ou unidos de facto. O que a maioria parlamentar pretendeu, e fez aprovar na generalidade (que não tem nada que ver com "no geral"; trata-se de um trâmite que mais à frente explicarei), foi eliminar as barreiras legais que impediam que esses casais pudessem ter acesso ao regime. Sublinhe-se que dezanove deputados do PSD votaram favoravelmente, no seguimento do entendimento da JSD, que não se opôs à adopção por casais compostos por membros do mesmo sexo. Para muitos, fez-se história no Parlamento português com estes projectos de lei do PS, BE, Os Verdes e do PAN. O PCP, que segue uma linha um pouco mais conservadora nesta matéria, historicamente defendendo o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, mas tendo reservas quanto à adopção, não deixou de votar a favor.
     Acompanhando a adopção, discutiu-se também o apadrinhamento civil de menores por casais compostos por pessoas do mesmo sexo, que teve igual desfecho favorável. As leis n.º 7/2001, de 11 de Maio e 9/2010, de 31 de Maio vão sofrer alterações que lhes permita contemplar as novas realidades aprovadas.

           No tocante a estes objectos, a minha posição é totalmente favorável. Uma criança institucionalizada carece de amor, de condições que lhe possibilitem um crescimento saudável, afectuoso, digno. Se um casal, independentemente do género dos seus membros, está disposto a receber uma criança em sua casa, assegurando o seu conforto, a sua segurança e a sua educação, é tudo quanto baste. Deve-se, todavia, esclarecer para um ponto: a adopção é um direito da criança, não dos adultos. Quando ouço falar: "Os homossexuais têm o direito de adoptar", faço um reparo que comporta uma substancial diferença: as crianças é que têm direito a por eles ser adoptadas. Todos têm direito a propor-se a adoptantes.

           Na semana que hoje se inicia, serão ainda confrontados os projectos de lei referentes ao alargamento das técnicas de reprodução medicamente assistida. O regime legal actual apenas permite o acesso à procriação medicamente assistida por casais heterossexuais, casados ou unidos de facto, com problemas de infertilidade. O que se pretende é universalizar o acesso, independentemente do estado civil, da orientação sexual e de quaisquer dificuldades férteis. Preciso madurar a minha posição. Quer-me parecer que quem não tem dificuldades em engravidar deve poder fazê-lo naturalmente, ou seja, recorrendo à relação sexual. Mas, como disse, preciso reflectir melhor, até porque um casal de senhoras tem direito a constituir família.
        O BE apresentou, finalmente, um projecto sobre a maternidade de substituição, vulgo barrigas de aluguer, onde ainda se me levantam maiores dúvidas.


           No que respeita à IVG e à adopção, a aprovação deu-se na generalidade. Foram debatidos, discutidos e votados. Os projectos de lei passarão à especialidade, sendo alvo da análise das comissões. Na especialidade, serão sujeitos a nova votação (artigo 168.º, n.º 4 e 5 da Constituição). Só no final deste processo voltarão a Plenário para a votação final global (168.º, n.º 3, última parte da Constituição), com o posterior envio para o Presidente da República. Há um longo caminho a percorrer até que tudo se conclua. 
            As manifestações de euforia, compreensíveis, devem ter lugar no final, quando, de facto, os projectos de lei se tornarem leis, imperativas junto de todos. É um primeiro passo, primeiro e relevante passo.

18 de novembro de 2015

O homem e o cão.


    Um homem senta-se num banco de madeira, de cor verde carcomida pelo desgaste. Acompanha-o um cão, rafeiro, pequenino, de olhar sadio, brilhante. Deixou-o preso a um saco desportivo, preto, enquanto se dirigiu à superfície comercial. Saiu, minutos mais tarde, carregando um sumo de marca branca e uma caixa, que presumo contendo alimentos já confeccionados. O cachorrinho empoleira-se com as patas dianteiras nas pernas do dono, abanando freneticamente a cauda envolta na pelagem seca e suja.

      Acaricia a cabeça do animal, que cerra os olhos, sentindo o afecto, o carinho de um indivíduo a quem a vida já fez das suas. Alto, de meia-idade, cabelo louro, comprido, amarrado atrás da cabeça por um elástico. Traços caucasianos, sem dúvida, mas não do sul da Europa, eu diria. Enverga um casaco roçado, que pouco desce a cintura, realçando umas calças de padrões quadriculares, castanhos e brancos, excessivamente curtas em baixo.

      Vi-os mais do que uma vez. Têm-se por companhia. Passam indiferentes à vida que os circunda. Aquela que, pelos reveses que lhes foi impondo, os terá impelido à marginalização. Não contribuem, não votam, não existem. Não têm cabimento nos enunciados políticos de boas vontades. São um imenso nada numa sociedade injusta e desigualitária.

       Tornou a sentar-se para se levantar de seguida. Pegou no cão pela trela. Dissiparam-se na névoa da noite.

15 de novembro de 2015

Paris.


    Paris, 13 de Novembro de 2015. Um grupo de homens armados dispara indiscriminadamente sobre inocentes que seguem calmamente as suas vidas. Fazem reféns, gritam palavras de ordem, aludem à Síria e ao Iraque. Matam centenas; comovem milhões. A escolha da capital francesa não terá sido ao acaso. França é um dos pilares da civilização ocidental. Lá, embora fortemente influenciada pela Glorious Revolution, cem anos antes, terminou o Antigo Regime; lá, eliminaram-se as barreiras legais, sociais, culturais que se erguiam entre os homens; lá, defenderam-se princípios que se propagaram pelo mundo, que instituímos por intermédio das revoluções liberais que pautaram todo o século XIX. Pátria-Mãe da Liberdade, da Igualdade, da Fraternidade.

     Se os ataques ao complexo do World Trade Center, em Nova Iorque, feriram o coração dos E.U.A, os atentados do fatídico dia de ontem atingiram um vértice do ocidente. Abalaram um sistema de valores assente na dignidade da pessoa humana e em regimes democráticos, pluralistas. A instabilidade, o caos e os massacres deixaram de ser um distante eles, passando a ser um confinante nós. A França, ali tão perto...

     Não podemos aceitar que o medo vença. Não podemos cair no risco de criar uma sociedade big brother em que o Estado a todos vê e segue. Outros o tentaram, não há muito tempo, e não conseguiram. Se somos tolerantes, flexíveis, complacentes, assim devemos continuar. São esses os valores que propugnamos. Agir em conformidade não significa ceder ao terror, assimilando-o. Tão-pouco retroceder nas conquistas que obtivemos, regressando à barbárie, à espada na mão e ao crucifixo ao peito. Reconhecer e defender a matriz cristã, que faz parte da Europa, da América, prescinde de guerras santas.

      Vê-los como uma facção que não representa o comum islâmico. Porventura, teremos subestimado a sua capacidade em provocar a desordem. Aumentar a segurança sem nos tornarmos demasiadamente securitários. Unir esforços. Perceber que um país não se basta, que as fronteiras políticas, no que a nós diz respeito, não estão por Vilar Formoso ou por Elvas, mas para os confins da Europa de Leste. Evitar sucumbir ao ódio irracional, às reformas legais a quente, ao preconceito. Não esquecer o que se passou a poucos dias. Aprender lições.
        São estes os desafios que espero ver superados.

11 de novembro de 2015

A queda de um executivo.


     No dia de ontem, viveu-se um momento já considerado por muitos como histórico. Em boa verdade, dificilmente preveríamos a consonância entre a(s) esquerda(s). Após semanas de duras e exigentes negociações, PS, BE, PCP e Os Verdes deram os acordos por encerrados, guardando as respectivas assinaturas para o final da manhã de terça.
      O debate e a votação do programa do Governo são exigências constitucionais. A sua não aprovação, do programa do Governo, entenda-se, acarreta a demissão do executivo (195.º, número 1, alínea d) da Constituição). Não se poderá dizer que PSD e CDS esperariam outro desfecho, porquanto a esquerda dissera que apresentaria moções de rejeição ao programa, daí que pouco se tenha discutido o programa propriamente dito, sobretudo no último dia do debate. Assisti a acesos confrontos políticos, numa direita que se sente injustiçada por ter ganho, em seu entendimento, o acto eleitoral legislativo último, e por uma esquerda que, junta, perfaz o número de mandatos mais do que suficiente para derrubar um Governo que careça da sua confiança.
   Formalmente, os governos emanam da composição da Assembleia da República, como tive a oportunidade de esclarecer em sucessivos artigos. Não houve qualquer vício que obstasse à inviabilização de um Governo da PàF. O Parlamento é a assembleia representativa de todos os portugueses, assumindo-se que os deputados, eleitos por sufrágio directo e universal, representando o povo, têm toda a legitimidade para formar alianças (aqui em sentido amplo) com demais forças que tenham obtido assento parlamentar. No caso em apreço destes acordos à esquerda, não estamos perante qualquer coligação, podendo-se falar numa mera convenção parlamentar. À partida, PS formará Governo com o apoio pontual do BE, PCP e Os Verdes em matérias nas quais lograram atingir um consenso. Convergiram nas suas metas comuns, não abdicando, a isso sou levado a crer, das orientações ideológicas irrenunciáveis de cada partido.
     A decisão, uma vez mais, está nas mãos do Presidente da República. O Chefe de Estado agirá em conformidade, tendo-lhe sido comunicada a rejeição do programa do Governo através da votação da moção apresentada pelo PS, com os votos favoráveis de toda a esquerda parlamentar, incluindo do recém-eleito deputado pelo PAN.
       É quase certo que Cavaco Silva tornará a reunir com os partidos políticos com assento na Assembleia. A indigitação (e posterior nomeação de um Governo por ele liderado) de António Costa é um dos cenários possíveis. Outro incide num Governo de iniciativa presidencial, que, todavia, careceria sempre da anuição da Assembleia da República. Desde 1982, com a primeira revisão constitucional, os governos não dependem mais da confiança política do Presidente da República, mas também não podem subsistir sem a concordância do Parlamento. A revisão, assim, diminuiu consideravelmente os poderes do Chefe de Estado. "Caindo" um presumível Governo de iniciativa presidencial, o que aconteceria atendendo à maioria de esquerda coesa, teríamos um Governo de gestão até às próximas eleições legislativas. Um Governo de iniciativa presidencial não seria um cenário inédito em Portugal; houve-os durante os mandatos do primeiro Presidente da República eleito por sufrágio universal após a Revolução de Abril, o general Ramalho Eanes. Há ainda uma terceira possibilidade: manter o actual executivo demissionário em gestão até ao acto legislativo, o que prejudicaria, sobremaneira, Portugal perante os seus parceiros europeus, enfraquecendo-o ainda junto dos mercados (queira-se ou não, necessitamos deles).
        Algo é certo: fechou-se um capítulo. A trama não ficou por aqui.

9 de novembro de 2015

Desafio.


   O Goody, do blogue Good blog Bad blog, seleccionou o meu blogue a participar em mais um dos desafios que pairam na blogosfera. Estes questionários acompanhados de pequenas ilustrações foram muito comuns há uns cinco anos. Regra geral, acabo por aceder de boa vontade. Não faria a desfeita, e sou um pouco como a saudosa Amália: fico sempre emocionado quando se lembram de mim. Há um pouco de hipérbole nesta última afirmação, atente-se. E também não me "caem os parentes na lama" por associar-me a estas iniciativas, que tão-só promovem a interacção e a partilha. É bom para descontrair. Vamos lá...

1. Como escolheu o nome do seu blogue?

   Já contei esta história mais do que uma vez. Ainda que se pense que escolhi As Aventuras como um prenúncio de relatos super emocionantes da minha vida e outros que tais, não tem nada que ver. Em dois mil e oito, havia terminado há poucos meses a tour da Mariah Carey - The Adventures of Mimi - no seguimento do seu álbum multipremiado e o mais vendido do ano (dois mil e cinco) nos E.U.A, The Emancipation of Mimi. Achei piada e inspirei-me. Pronto. As Aventuras... de Mark, eu, claro está. E dá-me certo gozo saber que há quem venha preparado para ler grandes textos pessoais e depois leva com a ocupação neerlandesa do Ceilão.

2. Quantos anos tem o seu blogue?

    Exactamente sete anos e seis meses.

3. Quais eram as suas expectativas quando criou o seu blogue?

   Nenhumas. Daí que durante dois anos não tenha seguido ninguém e tão-pouco alguém me seguia. Escrevia para mim. E ainda hoje não guardo qualquer expectativa. Escrevo porque gosto, porque me faz bem. Não só para mim, evidentemente, de outro modo escreveria num caderno ou algo do género. Mas, em primeiro lugar, tenho o blogue por mim e só porque me dá prazer.

4. Qual o maior desafio em manter o seu blogue?

    Ter assunto. Eu não consigo escrever por escrever. Não tendo uma matéria, que poderá incidir inclusive sobre a minha vida, pontualmente, não me sai uma linha dos dedos. É-me inútil sequer sentar-me em frente ao portátil ou ao híbrido e tentar escrever. A menos que escreva um conto, uma história, whatever, e mesmo aí tenho de estar inspirado.

5. Qual foi a sua maior surpresa na blogosfera?

    Ver relações virtuais extrapolarem para a vida real, digamos assim. Nunca imaginei conhecer pessoas através de um blogue que criei despretensiosamente numa noite de inícios de Maio.

6. O que ainda o motiva a manter o seu blogue?

    Como referi acima, ter prazer na escrita, na partilha. Gostar de dissecar assuntos, escrever sobre temas que me apaixonam.

7. Já teve problemas com comentários de anónimos no seu blogue?

    Já. Há muitos anos. Não passei bilhete. Quem não gosta, tem bom remédio. O que não falta por aí são alternativas. Não ligo a mínima. Se for um comentário ofensivo, nem termino de ler. Apago instantaneamente.

8. O que aconselharia aos novos blogueiros? Quais são as suas dicas?

    Quem sou eu para aconselhar... Talvez para não levarem isto muito a sério. É um blogue, vive-se lá fora. Não ficar preso demais ao virtual. Dicas... Humm, vai um lugar-comum: sejam eles mesmos (risos).

9. Indicar este selo a cinco blogueiros e avisá-los para responderem.

     Como vai sendo de praxe, faça quem quiser. :)




5 de novembro de 2015

In memoriam.


    No último domingo, fui ao cemitério. Talvez por ser Dia de Todos-os-Santos, talvez porque necessitava de um contacto qualquer com familiares que já cá não estão. A maioria deles repousa no mesmo, facilitando em certa medida essas visitas pouco frequentes, pela disponibilidade, pelas recordações que pretendo evitar, pelo carácter algo sombrio de se percorrer aquelas ruas circundadas por lápides antigas, jazigos ao abandono, sepulturas anónimas. O silêncio é apaziguador, quase infinito, perturbado por algumas pessoas que passam; trabalhadores camarários, sobretudo.
     Não pedi a chave do jazigo à avó. Bastar-me-ia depositar umas flores, rezar (não necessariamente as orações católicas, ainda que seja inevitável benzer-me). Há quem sinta a presença dos que o amaram, uma paz. Nada sinto. Em verdade, ali jazem os seus despojos mortais, revelando cruamente (e cruelmente...) o que somos: uma massa disforme que só sobrevive na memória e em suportes criados pela tecnologia. Na falta desses meios, não fosse o registo de nascimento, a certidão de óbito e os contratos que celebrámos atestando a nossa existência, seríamos um algarismo na imensidão das estimativas.
     Como acontece com todas as solenidades pelas quais se pretende honrar ou homenagear alguém, o Dia de Todos-os-Santos e o Dia de Finados, sendo que este é especialmente dirigido às visitas às necrópoles, não deixam de encerrar em si certa hipocrisia, considerando, não obstante, que há sempre mérito na vontade em lembrar um ente que faleceu. Acredito que o mais importante seja o carinho que se tem, as lembranças que se guardam.
      Andei durante algum tempo por lá. É enorme. Não senti que tenha cumprido um dever, pelo contrário, que a minha circunspecção não permite que os esqueça.
      Reservei os momentos finais para conhecer a capela, bonita, intimista, a meia-luz, com um Cristo ao fundo, sofrendo, na cruz. Detive-me à Sua frente e falhei-Lhe directamente, sem rodeios e sem palavras previamente construídas. E senti que me escutou. Revelei-me, a ponto de perceber que conhecia o que ainda não houvera dito, murmurando. Sem intermediários. Eu e Ele.

      Nunca fui um homem devoto. Crente, sim, passando por crises que me levaram a desconfiar de Deus, por sentir que habitamos um lugar terrível e injusto, sem mais. Na necessidade, pela fraqueza, não nego, de me justificar e de me confortar, motivar, procuro-O.
       Estou a aprender a não me sentir mal ou iludido por o fazer.

31 de outubro de 2015

O Pão por Deus.


   Quando os garotos subiam as ruas íngremes de paralelepípedo cinzento, húmido do orvalho de Outono, arredavam os seus medos. Por aquelas horas, sabiam-se os donos da aldeia, fazendo seu cada beco, o antigo pelourinho do sítio, o pátio da banca do Senhor João, que por tantas vezes os presenteava com figos sempre que, vindos da escola, por lá passavam.

    Martinho avisara atempadamente a avó, lavadeira, mulher a quem as moças instavam por conselhos, tornando a velha senhora no oráculo de Figueira da Luz, do seu fito para a noite de Todos-os-Santos. A pele das suas mãos mantinha notável brilho e maciez. Encontravam-lhe a alma, todavia, no olhar quebrantado, que denunciava uma vida que não conhecera sonhos de menina. Não havia quem a enganasse nos dinheiros. A sua argúcia impunha deferência e admiração.

     Corriam desalmadamente sob o signo da lua cheia, batendo de porta em porta, misturando a crendice com a pândega própria de miúdos que tudo quanto conheciam estava nos limites do lugarejo onde nasceram. Não percebiam a fome, os castigos, tareias, não enquanto houvesse casa a salvo do peditório.
     As trouxas, delicadamente cosidas pelas mães e avós, guardavam os doces e os frutos das oferendas. Martinho sustinha a sua, farto de orgulho, costurada pela avó, com o bordado de fio de linho azul. Ostentava-a com cuidado, como uma representação material do carinho daquela mulher a que nem o cansaço inibia de o sentar no seu colo, de lhe afagar o cabelo, de beijar a sua bochecha sarapintada.
        Que na sua casa havia carência de bens, mas fartura de afectos.

28 de outubro de 2015

Tertúlias.


     O Francisco fez-me o simpático convite uns dias antes. Estar com ele e com o Limite numa situação informalíssima: um lanche, que ficou acordado ter lugar na Av. António Augusto de Aguiar, ali pelos lados do El Corte, que adoro, não necessariamente pelo centro comercial (já gostava ainda antes da presença da catedral espanhola do consumo). É uma zona acolhedora, ao menos para mim. Av. de Berna, da Liberdade, Marquês, Parque Eduardo VII, Jardim Amália, ruas circundantes, são os meus locais predilectos na cidade, vá-se lá saber o porquê. Não têm nada de especial.

       O lanche teria outra surpresa, digamos assim: o Sad (desculpa lá, não consigo habituar-me a tratar-te pelo nome), que não via há para lá de dois anos.
       Cheguei primeiro e esperei-os. Pouco demoraram. O Francisco munido do seu guarda-chuva preto, que mal conseguia endireitar devido à força desmesurada do vento. O Limite acompanhava-o, de mochila às costas (como gosto de andar sem pesos, provavelmente terão reparado que deixei a minha Eastpak em casa). Enquanto o Francisco fazia os pedidos, guardei uma mesa, não fosse ocuparem todas. O Limite não tardou em sentar-se.

      Ficámos à conversa por umas duas horas (ou perto disso). Colocar os temas em dia. Um dedinho de prosa é sempre agradável, anima e não faz mal a ninguém. Creio que nos conseguimos abstrair na interacção com os demais. Eu fico melhor humorado. 
         O Sad surgiu passado algum tempo.

      Não saímos dali. As condições meteorológicas não eram favoráveis e o Limite tinha o seu bus para apanhar às dezoito e picos.
         Fica o registo. Com pouco aparato, mais intimista. Gostei.

24 de outubro de 2015

Caminhos.


    Na noite de quinta-feira, o país conheceu a decisão do Presidente da República cessante, Cavaco Silva. O Presidente decidira-se, e isso anunciava ao país, pela indigitação de Pedro Passos Coelho como Primeiro-Ministro de Portugal. Não pormenorizarei o processo que nos levou aqui, tendo abordado essa matéria, na perspectiva do direito, neste artigo. A indigitação distingue-se da nomeação. O Presidente da República tão-só convidou Pedro Passos Coelho a formar Governo. Este apresentará a sua equipa governamental perante o Presidente, que de seguida, concordando com esta, nomeará, em princípio, o Primeiro-Ministro indigitado e os membros que ele propôs. No supracitado artigo, encontrarão as fases subsequentes à indigitação e à nomeação.

     Muitos aplaudiram esta deliberação presidencial, argumentando que a coligação PàF venceu as eleições e que, nesse sentido, nada mais se esperaria do que a indigitação de Pedro Passos Coelho, ainda que vindo a liderar um governo de maioria relativa. Outros, pelo contrário, arguiram que a atitude de Cavaco Silva foi claramente tendenciosa e parcial, ignorando a maioria de esquerda que resultou do acto eleitoral legislativo e que poderia dar corpo a um governo de maioria parlamentar. Com efeito, nenhum mecanismo constitucional obrigaria o Presidente da República à indigitação do líder do partido ou da coligação mais votados. Por maioria de razão, o mesmo se aplica à nomeação. Isso mesmo tive o cuidado de esclarecer num outro artigo. A figura do Primeiro-Ministro indigitado não encontra previsão constitucional; decorre de um mero costume constitucional. É uma situação jurídica informal. Ao que Pedro Passos Coelho está obrigado, a partir de então, é a encontrar uma solução governativa estável e duradoura (o que manifestamente é demasiado complicado, para não dizer impossível). Não tendo uma coligação maioritária no Parlamento e não estando previsto qualquer acordo de incidência parlamentar com alguma das forças políticas que ainda sobram da composição da Assembleia da República, este presumível futuro Governo terá pela frente dias difíceis. Encontrarão, no primeiro link, as consequências deste cenário de instabilidade. Devo, contudo, alertar para uma hipótese que se poderá colocar: sabendo que não dispõe de condições para governar, pode Pedro Passos Coelho recusar formar Governo e devolver ao Presidente da República a decisão sobre uma nova indigitação.


     Considerando menos o direito e mais a política, Cavaco Silva, de modo a evitar uma crise de impasse governativo, tinha ao seu dispor outras soluções. Vim defendendo, e manter-me-ei coerente, que o ideal seria a coligação PàF governar. O povo foi contundente ao dar a vitória ao PSD e ao CDS. Quis que eles governassem, mas quis que o PS, ou outra força à sua esquerda, contrabalançasse os devaneios de um Governo emanado destes partidos, evitando repetir-se o que se passou nos últimos quatro anos. Direi mais: o povo quis chamar à responsabilidade, sobretudo, o PSD, o CDS e o PS - o designado arco governativo. Não tendo sido possível um entendimento entre os dois primeiros, coligados, e o terceiro, tão-pouco num acordo de incidência parlamentar que viabilizaria um governo, Cavaco Silva, que é Presidente e tem funções específicas e concretas, tinha o dever de encontrar outra solução que não esta, que de antemão sabemos inexequível. Acrescente-se que não obstante o Presidente da República não confiar politicamente nas forças à esquerda do PS, elas existem, são legais e devem ser chamadas ao poder. Os partidos não têm como finalidade ser a voz do descontentamento. Os partidos assumem compromissos. O eleitorado destes partidos deve saber que eles existem para governar. Os seus líderes sabem-no, daí que discorde das vozes que se erguem, à direita e até à esquerda, alegando que o eleitorado do BE e do PCP sairia defraudado num possível acordo com o PS. Não vejo o motivo. Se são minoritários e por si próprios não governam, poderão fazer parte de uma solução de consensos. Em defesa do Presidente da República, não de Cavaco Silva, devo dizer, porém, que nada obriga o Presidente a indigitar ou a nomear alguém que careça da sua confiança política, em qualquer dos sentidos que se queira (não obrigaria o Presidente a indigitar e posteriormente nomear Pedro Passos Coelho, como também não está obrigado o Presidente a possibilitar um governo do PS com o PCP, Os Verdes e o BE se nestas forças não confia). Concordemos ou não, é o que temos. Foi o que quis o legislador de 1975.

     Cavaco Silva seguiu a tradição constitucional, herdada de 1976, de indigitar o líder do partido ou da coligação mais votados. Nunca saberemos se o faria se o PS estivesse no lugar em que está, actualmente, a PàF. Em 2009, o PS ganhou as eleições com maioria relativa, e o Presidente indigitou e nomeou José Sócrates. Os tempos eram outros, é certo, mas fê-lo, e conhecemos a orientação política de Aníbal Cavaco Silva. Sejamos coerentes. Podia, é evidente, ter encontrado uma solução à direita. O que se aplica agora, aplicar-se-ia ao passado. Bem sabemos a instabilidade dos anos seguintes, que culminou nas legislativas de 2011.
       Com esta indigitação, Passos Coelho está vinculado a encontrar uma solução governativa. Se com o PS não poderá contar, nem com o PCP, Os Verdes e o BE, confesso que não sei o que acontecerá. Pode devolver a sua indigitação, pode ser nomeado, juntamente aos membros que propor, num governo de vida curta, caindo na votação a uma qualquer moção de rejeição ao seu programa. Por enquanto, a esquerda já demonstrou que está consciente da sua maioria, elegendo Ferro Rodrigues como Presidente da Assembleia da República - é a primeira vez que se elege um Presidente da AR que não pertence ao partido mais votado nas legislativas.
        Tempos complicados se avizinham.

20 de outubro de 2015

Sentimentos.


      Na esteira do que venho sentindo, os últimos dias mergulharam-me em certa apatia que dificilmente supero. Sinto-me a mais. Precisamos, diz a Psicologia, de nos identificar com determinados modelos, assimilando-os. Estou crente de que esse processo não foi tão evidente assim no meu caso.

    Como se caminhasse só tendo-me por companhia exclusiva, não precisando de conversar, ouvir, partilhar. Que me descubro, até na interacção com os outros, que nasci para estar sozinho, mediante que não nos é possível moldar os demais ao nosso gosto, vontade. E aí reside uma das minhas barreiras: convencer-me de que o mundo não é como eu quero, mas como se me apresenta. Aprendi a fazê-lo, a conformar os sentimentos, os anseios, terceiros, ao sabor do que me convinha. Furtaram-me o devido equilíbrio entre a veleidade de um ser meio déspota, como o são todos os pequenos, e a autoridade perene de uma figura da qual se esperaria mais do que carinho e cuidado.

        Hoje, sem embargo, sei que educar é talvez a tarefa mais laboriosa de alguém que a isso se propõe. É um caminho intrincado. Ser progenitor deveria fazer-se acompanhar de um atestado qualquer, uma certidão de aptidões. Quem sabe um dia a ciência evolui a ponto de se poder detectar, pela genética, as predisposições à parentalidade. Evitar-se-iam muitos dos problemas com que nos confrontamos. Eu, particularmente.

        Viver de remendos, um aqui, outro ali, procurando escapar ao mal original, é solução que não se basta.  E lastimar, tão-pouco. Os erros são o que são: erros, e tarde ou cedo terão de ser corrigidos.

14 de outubro de 2015

As Presidenciais.


   Após as legislativas, e ainda em período de indefinição quanto à composição da nova equipa governamental, as atenções pairam em torno das eleições presidenciais, não deixando por isso de se dar o devido destaque às negociações entre os partidos representados no Parlamento tendo em vista a formação de um futuro governo.

     Teremos as eleições presidenciais em Janeiro, em princípio. Partindo da esquerda, Edgar Silva é o candidato do PCP. Um nome desconhecido para a maioria dos cidadãos. Temos ainda outro candidato certo: Sampaio da Nóvoa, que reúne o apoio do LIVRE (e de uma ala do PS). Pelo PS, já é seguro avançar que Maria de Belém, ao que tudo indica a horas de acontecer, anunciará a sua candidatura, com ou sem o apoio categórico do partido. Pelo PSD/CDS, embora não seja ainda o candidato dos partidos, é provável que Marcelo Rebelo de Sousa congregue em si o apoio da coligação, considerando que não será, à partida, o candidato mais tranquilizador para Pedro Passos Coelho. Admito que me falte algum nome e não rejeito a possibilidade de Rui Rio ou Santana Lopes poderem trazer algo de novo nestes dias que se seguem.

         No sistema português, semipresidencialista, o Presidente da República é mais do que a figura de topo da hierarquia do Estado, representando-o. O Presidente goza de prerrogativas constitucionais que o munem de importantes e decisivos poderes. A Constituição enuncia as suas competências. Eleito por sufrágio universal, a sua legitimidade é directa, não emana de nenhum outro órgão de soberania, mas do povo. Nem sempre foi assim. Nos anos da I República (1910-1926), o Presidente era eleito pelo Congresso, que o podia destituir. Em 1959, na sequência dos acontecimentos que abalaram o regime, com epicentro nas eleições presidenciais do ano anterior, em que Humberto Delgado não foi eleito por fraude ardilosamente arquitectada pelo Estado Novo, a eleição do Presidente da República deixou de ser directa, passando para a responsabilidade de um colégio eleitoral, que evidentemente viria da Assembleia Nacional, controlada pela União Nacional, melhor dizendo, pelo regime.

          A imprensa o diz e a popularidade do candidato não a desmente: o Professor Marcelo Rebelo de Sousa é o candidato presidencial melhor posicionado para suceder a Cavaco Silva. Uma vez mais, a Comunicação Social interfere decisivamente num acto eleitoral, manipulando o eleitorado, levando em braços um candidato até Belém. Eu arriscaria a dizer que de forma nunca antes vista no nosso país, recordando-me, de momento, do candidato Collor de Mello, no Brasil, que foi apoiado expressamente pela Globo, chegando, assim, ao Planalto. Emídio Rangel, já falecido, comentava com certa ironia: «Dêem-me uma estação de televisão que eu dou-vos um Presidente.», sabendo, de antemão, do poder dos órgãos de Comunicação Social junto das pessoas.

          Ninguém duvida da simpatia do Professor, do seu espírito leve, descontraído, e talvez por isso agregue em si tanta empatia, carinho, esperança. Intenções de voto... Eu seria a pessoa menos insuspeita para falar do Professor. Não fui seu aluno, embora o conheça, o respeite e o admire. É um homem encantador. Humilde. Não há aluno que lhe aponte um defeito, uma injustiça cometida, um impropério dito ou um tique arrogante e sobranceiro. Politicamente, todavia, não poderíamos estar em pólos mais opostos. Não sou religioso, não sou da sua área política tendencial e não acredito, como não poderia deixar de ser, em «Presidentes de todos os portugueses». Essa fórmula, inventada por Mário Soares para apaziguar a sociedade portuguesa depois das duras (e renhidas) eleições presidenciais de 1986, não fará mais sentido algum, sabendo nós que os Presidentes são homens com naturais inclinações políticas, cedendo à tentação de favorecer os governos e os partidos das suas famílias políticas. Tem sido assim desde 1976, conquanto venham a  suspender a  filiação partidária. Não passa de um malabarismo, mera manobra de distracção, quase um imperativo ético.

       A esquerda, por seu turno, encontra-se dividida, apresentando vários candidatos. Poderão até, havendo uma segunda volta, apoiar determinado candidato contra a direita, não obstante a dificuldade quase doentia em conseguir um entendimento alargado. Maria de Belém não é consensual. A sua maior vantagem está, e com noção do ridículo o digo, no facto de ser uma senhora. Há quem queira ver, onde me incluo, um pouco da sensibilidade feminina em Belém, que os géneros são iguais em direitos e em deveres, mas são manifestamente distintos em tantas vertentes. É biológico. Não é opinião. Os candidatos mais à esquerda do PS e todos quantos se apresentem por partidos politicamente insignificantes, tomando como bitola a representatividade, ou não, na Assembleia da República, nomeadamente, são mero efeito desestabilizador, atraindo o voto dos descontentes. Com toda a legitimidade na corrida, a vitória de um candidato do LIVRE não é sequer ponderável.

            Assume-se a eleição legislativa como o paradigma dos actos eleitorais. Por certo, eleger os deputados que nos representarão na AR é da maior importância. Dela resultará um Governo, que por uma legislatura, quatro anos, liderará os destinos do país. Mas eleger um Presidente comporta responsabilidades que não podem ser subestimadas. Termino como comecei: o Presidente não governa, preside, com amplos e significativos poderes. Um Presidente, querendo, poderá ser um aliado do povo, em sentido amplo, moderando os devaneios próprios de governos. E isso teremos de ter em conta na hora de delinear a cruz no boletim de voto.

10 de outubro de 2015

Rainy.


      Gosto dos dias cinzentos. Proporcionam-me bons momentos de introspecção. Quando as manhãs nascem escuras e frias, invernosas, é como se o dia tivesse sido concebido à minha medida.

      Levantei-me bem cedo, enquanto todos dormiam. Fui para a rua. Caminhei, chapinhei nas poças, senti os pingos escorrendo-me pelo braço esquerdo, que ergui, molhando um pouco da manga da camisa branca. Sob o guarda-chuva negro, avancei pelos semáforos, de luzes reflectindo-se no piso húmido, dando algum alento à avenida. Vi o meu rosto no vidro de uma loja de antiguidades. Já sou um homem feito. Sentir-me adulto, responsável, não implicou - não que o tenha percebido - um caminho de certezas e de significados. Continuo perdido, ainda à espera de um rumo. Há quem se demore por um grande amor ou por uma oportunidade profissional irrenunciável. A nada disso me refiro. Aguardo, isso sim, por uma justificação, uma razão que explique a minha existência. Acredito que a maioria aceita a sua sem esperar, em contrapartida, por qualquer resposta. Eu preciso-as.


       Fico extenuado. Se invoco a Deus, não as obtenho. Se me socorro dos homens, tudo o que recebo é um chorrilho de palavras aparentemente contraditórias. Sou tomado pela trágica lassidão que me impede de argumentar, trazer factos, confrontar com o que não faz sentido. Resigno-me no momento.
     A vida cansa-me. Por vezes quero fazer tanto que faço tão pouco. O meu corpo não acompanha os comandos do cérebro. Fervilham em mim mil ideias.

      Entrei numa pastelaria. Observei os candeeiros lustrosos, iluminando o salão principal, a montra de iguarias irresistíveis. Pedi uma meia de leite e uma torrada simples, com pouca manteiga. Nas mesas circundantes, casais tomando o pequeno-almoço em alegre cavaqueira. Ao longe, uma mesa composta de senhoras já de certa idade, sorrindo, entre cada trago no chá. Podia ver-se as chávenas fumegando. Senti-me rodeado de amizade, confiança, entrega, ainda que estivesse só. Acalentou-me.

         Regressei sem as respostas. Não será calcorreando as ruelas da cidade que as encontrarei. É provável que nem as haja. E que o mistério da vida (e o seu encanto, se é que o tem) resida na incerteza sobre o eu, o outro e o futuro.

5 de outubro de 2015

Rescaldo Eleitoral.


    O dia de ontem foi decisivo para Portugal. Acompanhei, como milhões, o escrutínio, as projecções. Cumpri com o meu dever cívico depois do almoço. Desde logo fiquei surpreso com a afluência às urnas, a maior de sempre desde que voto, transmitindo essa percepção a quem me acompanhava. A noite revelaria, contudo, que a diminuição da abstenção não foi tão expressiva.
     As sondagens, nomeadamente a da Universidade Católica para a RTP, confirmaram as expectativas geradas: a coligação PàF obteve o maior número de votos; o PS foi o grande derrotado da noite. A extrema-esquerda, mormente o Bloco de Esquerda, aumentou a sua representatividade no Parlamento. A CDU foi ultrapassada pelo Bloco no número de mandatos, atingindo, ainda assim, um resultado digno. O PAN (Pessoas- Animais-Natureza) elegeu um deputado.

     Em democracia, ganha quem obtém o maior número de mandatos. Nesse sentido, a coligação PàF ganhou e nada mais resulta do escrutínio de ontem. Goste-se ou não, eu não gosto, é a realidade que há e é com esta que temos de contar. Uma vitória pouco expressiva, consubstanciando uma maioria relativa, e não absoluta, pela qual clamava, e o PS. Os mandatos que conseguiu são insuficientes para um governo estável. Não mais se bastarão. A anterior maioria, agora minoria de direita, precisará de consensos. Consensos com o PS, uma vez que o BE e a CDU (desmembrando-se em PCP e PEV) não aceitarão quaisquer acordos, e bem, fiéis ao seu eleitorado, com a coligação. Convém que nos elucidemos de momentos próximos que poderão comportar instabilidade política. O que se segue a este acto eleitoral é um processo notório: o Presidente da República ouvirá os partidos com assento parlamentar, respeitando os resultados eleitorais (187.º, número 1 da Constituição, doravante CRP), e dada a sua ideologia política é natural que convide a coligação a formar Governo. Ainda que goze de relativa discricionariedade e que nada o obrigue a nomear Primeiro-Ministro alguém que careça da sua confiança, acreditamos que o faça e que indigite, num primeiro momento, e depois nomeie (133.º, alínea f) da CRP) Pedro Passos Coelho. Há uma coligação que se propõe a formar Governo, portanto tudo o indica. António Costa referiu que respeitará a decisão do povo, que manifestamente aponta no sentido de um governo da PàF, excluindo-se qualquer coligação pós-eleitoral com alguma das forças mais à esquerda do PS, o que poderia, embora altamente improvável tratando-se de Cavaco Silva, originar um cenário nunca antes visto de governo coligado à esquerda.

      Após a nomeação do Primeiro-Ministro e restantes membros, o Governo entra em funções, todavia circunscritas à prática de actos necessários para assegurar a gestão do país (186.º, número 5 da CRP): estamos perante um Governo de gestão. A Constituição obriga à apresentação do programa de Governo na Assembleia da República no prazo máximo de dez dias, o que extraímos do artigo 192.º, número 1 da CRP. É neste momento que recaem todas as atenções, porque pode ocorrer algum destes cenários. Vejamos: pode ocorrer que um dos grupos parlamentares proponha a rejeição do programa do Governo, apresentando uma moção nesse sentido; assim acontecendo, se por maioria absoluta dos deputados em efectividade de funções for aprovada a rejeição do programa do Governo, o Governo fica automaticamente demitido (artigo 195.º, número 1, alínea d)), seguindo como Governo de gestão até ser substituído; se a moção de rejeição do programa do Governo não obtiver o número de votos suficientes para ser aprovada, o Governo entra em funções plenas. Numa segunda hipótese, pode o Governo solicitar a aprovação de um voto de confiança à Assembleia da República, podendo também ocorrer uma de duas situações: por maioria simples, o Parlamento pode aprovar a moção de confiança, entrando o Governo em funções irrestritas; o Parlamento rejeita a moção de confiança, o Governo fica demitido, uma vez mais (desta feita a alínea e) do artigo 195.º, número 1), permanecendo como Governo de gestão até à sua substituição. Pode ainda, numa terceira hipótese, não existir nenhuma proposta de uma moção de rejeição do programa, nem o Governo solicitar um voto de confiança; não havendo qualquer votação, o debate do programa do Governo prossegue e o silêncio do Parlamento vale como um voto de silêncio positivo tácito (expressão doutrinária minha), entendendo-se que a Assembleia permite que o Governo entre em plenitude de funções.

       Sem maioria absoluta e sem qualquer acordo à vista com o segundo partido mais votado, a vida de um governo minoritário é difícil. Escapar às moções de censura da Assembleia da República, de maioria contrária, já não é possível com a sua expressão eleitoral. Um governo com maior número de deputados facilmente contornaria este mecanismo de controlo político do Parlamento. Também a aprovação de uma moção de confiança pode ser inviável, implicando a demissão do Governo. Num momento posterior, a apreciação do Orçamento de Estado por um Parlamento cujas cores políticas superam a cor política do Governo também poderá acarretar consequências graves para a sobrevivência de um governo minoritário. A apreciação dos decretos-lei do Governo pela AR é uma forma de controlo político que ganha contornos distintos, e gravosos, estando perante um governo de minoria parlamentar. E fazer submeter decretos-lei sob propostas de lei, no Parlamento, não garante a sua aprovação, que careceria de maioria absoluta (que assim escaparia ao veto absoluto dos decretos-lei pelo Presidente da República, absolutíssimo tratando-se de matéria reservada à competência legislativa do Governo).

         O PS, não tendo ganho estas eleições legislativas, e verificando-se o cenário que tracei de constituição de governo PàF, minoritário, desempenhará uma função essencial, quer na aprovação (abstenção ou desaprovação) do programa do Governo, quer mais tarde, quando o Orçamento de Estado for apresentado na Assembleia da República. A coligação de direita não se basta, precisando de entendimentos com outras forças emanadas da eleição de ontem. A coligação PàF, por seu lado, terá de perceber o ligeiro cartão amarelo do povo, que se expressou na inexistência de uma maioria que lhe permita governar tranquilamente. O que infiro desta composição do Parlamento é o seguinte: o povo quer que a coligação continue a governar, acreditando num crescimento económico e no aumento do emprego expectáveis depois de tantas medidas de contenção e de austeridade, mas quer que o PS contrabalance, dê o seu aval em medidas sensíveis e cruciais. O BE e a CDU são a expressão desse descontentamento e da derrota do PS em assumir-se como alternativa credível e confiável. Não entrarei na análise à continuidade de António Costa no PS, decisão que compete aos militantes do partido. Gostei do seu discurso ao final da noite, ponderado, tão distinto dos discursos da coligação PàF, agressivos, pedantes, o que me leva a duvidar que tenham apreendido com clareza a vontade dos cidadãos.

          A tarefa do Presidente da República reveste-se de especial relevo e cuidado. Também a Assembleia da República, quer a coligação, quer os demais partidos nela representados, deverá atender às necessidades do país. A instabilidade política, que de certo modo antevejo, traria um agravamento dos nossos problemas estruturais.

           Conjunturas que se confirmarão, ou não, nas próximas semanas. Algo é certo: constituindo Governo, a coligação passará por momentos penosos no panorama parlamentar português desde a primeira reunião da Assembleia da República.