24 de outubro de 2019

Longa Noite.


  Há muito a se dizer sobre o Longa Noite. Desde logo, quando vemos aquela realidade galega sentimos a proximidade à nossa. Aquela Galiza rural e ostracizada reporta-nos a um Portugal que conhecemos muito bem. Nesse sentido, é um importante contributo para o retrato sociocultural da Galiza nos anos do franquismo, e não será difícil imaginar que a situação no norte de Portugal provavelmente não diferiria em muito.

  O primeiro aspecto que me veio à ideia quando ouvi aquelas pessoas foi a similitude do léxico ("ninguém", "lembrar", "esquecer", entre muitas outras), da colocação pronominal ("Vista-se!") e da ausência do ditongo "ue" no galego ("puerta" = "porta", como no português). Não obstante tantas semelhanças, sem legendas teria entendido pouco. O galego tem uma fonética muito própria e um jeito de pronunciar as palavras que me é estranho. Com tristeza, digo que mais facilmente entendo o castelhano, provavelmente por estar mais exposto a esse idioma. Entre os galegos, há o costume de se chamar "castrapo" à variante galega misturada com o castelhano, um género de deturpação, de corruptela. Não senti que os actores falassem "castrapo", porque, em vocábulos como Deus, por exemplo, pronunciaram-nos tal qual o fazemos em Portugal. Longa Noite  é manifestamente um filme político, falado em galego, que pretende mostrar a agruras de uma Galiza sufocada pelo centralismo do Estado espanhol e pela repressão franquista.

   As semelhanças entre a Galiza e Portugal vão muito além do léxico e da gramática, e neste filme são notórias. A melancolia, a desesperança, a crença na não-crença, os queixumes e a resignação, por fim. A Galiza tem sido uma das regiões mais devotadas ao abandono pelo Estado espanhol. Os galegos são vistos como cidadãos de segunda. Já o eram nos duros anos do franquismo, o que os levou a uma maciça emigração pelo mundo - e até nisso somos parecidos. No Longa, logo ao início, vemos um galego que se pretende estabelecer na América. Mais à frente, sabemos de outra que está em Buenos Aires. A diáspora galega confunde-se com a portuguesa. Como amigos galegos me vêm dizendo, não raras vezes portugueses e galegos confraternizavam amigavelmente nessas paragens, com os galegos a preferir a companhia dos portugueses à dos espanhóis.




   Outro aspecto que não foi esquecido - e nem podia - é o dos presos políticos e o da diglossia que afecta a Galiza no presente como no passado. Um dos personagens está preso, e vai-nos relatando os duros tratamentos na cadeia. Numa carinhosa carta escrita à mulher, em galego, naturalmente, deixa-lhe breves palavras de conforto, quando nem ele acredita, lá no fundo, numa possível escapatória. Quando se dirige ao Generalíssimo Franco, esperando por um indulto, fá-lo em castelhano, exaltando Espanha. Eis o quadro de diglossia que se arrasta na Galiza até aos nossos dias. O galego convive paredes-meias com o castelhano, sofrendo fortes influências deste e tornando-se, à medida em que o tempo passa, um idioma da resistência, dos galegos que se recusam a ceder ante o aniquilamento das suas raízes pelo Estado espanhol. Naqueles tempos, o galego era a língua da família, dos afectos (miña queridiña), e não da vida pública. No presente, é co-oficial com o castelhano, com claro predomínio do último.

   Franco surge numa fotografia emoldurada. Velhos galegos jogam às cartas e referem-se ao Chefe de Estado com palavras de agradecimento e veneração. Talvez ironicamente, talvez já dominados pela política de assimilação. Franco era de Ferrol, antiga Ferrol del Caudillo. Galego, portanto. Não surpreende que fosse admirado por alguns galegos. Outra interpretação leva-me a encarar as cartas que jogavam como o próprio destino da Galiza, que lhes escapava por entre os dedos.

  Simultaneamente, dois mendigos, que pediam à porta da Igreja e partilhavam um pão seco, sem nada mais, vêem passar um padre. Amaldiçoam-no. Um diz que "os matava a todos, se nom fosse católico". A Igreja Católica, em Espanha, é nacional. Abraçou a causa centralista e rejeita os independentismos. Há dias, o arcebispo de Oviedo veio pedir a confissão dos pecados a todos quantos apoiem o secessionismo catalão. Falamos da mesma Igreja que, nos anos 70, recebeu os líderes independentistas das ex-províncias ultramarinas, da que tem dois pesos e duas medidas. Não interessa à Europa que se crie um conflito na Catalunha. Nem às instituições europeias e nem à Igreja Católica, que lida também ela com a perda de fiéis e inúmeros escândalos. Uma crise institucional com Espanha não lhe seria nada benéfica. Um terrível jogo de interesses em que os perdedores são sempre os mesmos, os povos.

   O que guardarei deste filme são as indiscutíveis semelhanças com os portugueses. Como referiu Eloy Enciso, que esteve presente nesta sessão inaugural no DocLisboa e que se dirigiu à plateia num português imaculado, Longa Noite é quase incestuoso. Portugueses e galegos são irmãos. Iguais nas torturas de que padecem e no sofrimento que se auto-infligem. Naquelas personagens, eu vi os portugueses. Aquele filme poderia ser português.

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