29 de abril de 2017

April 29.


    Outro ano se passou. O calendário é testemunha. Neste aniversário, entretanto, não senti a aproximação do dia com angústia, não. Não fosse a mãe avisar-me e ter-me-ia esquecido de encomendar o bolo, discreto, sem floreados.

     São 15h. O pai ainda não me ligou. Não posso crer que se tenha esquecido, não, falamos todos os dias, ou quase todos os dias. Eu tenho a sensação de que são todos, porque quando conversamos sinto que lhe conheço os dias, assim como ele conhece os meus. Da avó, sua mãe, o telefone também não deu conta.

     Queria que os meus aniversários fossem diferentes. Não só os aniversários, a bem dizer. Sei que está nas minhas mãos mudar o destino, somos nós que o delineamos. Mas a vida assusta. Assusta vivê-la. Invejo, invejo aqueles que lhe vêem um encanto qualquer. Que dizem que é bela. O mal deve estar em mim, sim, mas não a vejo assim. Encaro-a mais como um fardo, amenizado por mansos instantes.

       Em contrapartida,  a imprevisibilidade deixa-nos na expectativa de um amanhã risonho. Quem sabe ele venha.

Actualização.: Poucos minutos após a publicação do post, recebi um telefonema do pai e da avó.

26 de abril de 2017

Dalida.


   « La vie m'est insupportable. Pardonnez moi »

   Foi com esta mensagem, deixada à cabeceira da cama, que Dalida, aos 54 anos de idade, se despedia da vida, do público e dos poucos íntimos que a acompanharam nos derradeiros meses. A sua carreira somava três décadas. Iolanda, de seu nome verdadeiro, nasceu no Egipto, sendo filha de imigrantes italianos. O pai, segundo o filme biográfico, foi preso e enviado para um campo sob a acusação de uma ligação perniciosa aos nazis. Quando regressou, era outro homem. Tornou-se violento consigo, com o irmão e a mãe. Foi o primeiro dos traumas de Dalida, talvez o que influiria decisivamente até à sua morte.

    Dalida passou por uma leva de sucessivas desilusões amorosas. Quis casar e ser mãe, « ser normal como as outras mulheres », quando o seu empresário, e futuro esposo, a via como um produto comercial. Constituir família, numa carreira em ascensão, poderia acarretar uma interrupção prolongada e, consequentemente, afastá-la do público. Com um mês de matrimónio, descobriu o amor nos braços de outro homem. Embarcou numa aventura que pouco durou, pois haveria de descobrir que Iolanda, a mulher, estava com a sua recente paixão assolapada, enquanto que Dalida, a artista, continuava a amar o marido.

     Os casos e descasos sucederam-se. Três dos homens com os quais se envolveu, incluindo o desditoso marido, haveriam de se suicidar. Dalida não trouxe a morte para si apenas. A beleza, a timidez e aquele jeito muito informal de ser, espontâneo, cativavam os homens, deixando-os desesperados na sua ausência. 
     Engravidou de um fã, um estudante de vinte e dois anos. Naquela que teria sido a oportunidade de ser feliz e de, finalmente, se afastar da ribalta com um rapaz que não a queria pela fama, faz um aborto, que mais tarde descobre que a impossibilitou de poder vir a ser mãe. Outra mágoa.
     Falece-lhe a mãe. Orlando, o irmão e quem geria a sua carreira nos últimos anos, vê a cantora e a actriz, mas não se apercebe dos sinais de exaustão física e psicológica de Dalida, que na década de 60 já havia tentado o suicídio. Finalmente, desiludida com as tragédias que se lhe abateram e sem esperança no futuro, tira a vida na sua casa de Paris.


     O filme é a história de Dalida, a artista extraordinária que marcou uma era na Europa com as suas canções populares românticas dos anos 50 e 60, e também na transição, mostrando a sua irreverência e versatilidade na disco, o que a levaria até aos EUA e a uma bem sucedida temporada no Carnegie Hall. Como a artista não se distingue da cantora, eu creio que houve um bom equilíbrio com a sua vida privada.
     A actriz que lhe dá corpo, Sveva Alviti, é uma mulher lindíssima - faz totalmente o meu género. Conseguiu recriar a Dalida sensual, mas frágil, extremamente carente de afectos, que todavia se transfigurava em palco e sacava do público ovações entusiastas. Profissionalíssima, Dalida nunca desapontava.

      O realizador procurou evitar tornar o filme num melodrama aborrecido e cliché. E bem. O filme é a Dalida. É a infelicidade. E a Dalida e a infelicidade caminharam juntas.

25 de abril de 2017

O 25 de Abril.


    Salvo erro, em 2013 e em 2016 não assinalei a data da Revolução. Está tudo dito, por mim e por todos. Já falámos do passado, do futuro, sobretudo em 2014, ano em que, por ocasião do quadragésimo aniversário, lhe dediquei uma extensa análise. Fará sentido, posto isto, evocar o 25 de Abril?  Acredito que sim, particularmente num ano em que assistimos a uma perigosa involução. A História repete-se, é cíclica. Regra geral, os intervalos temporais que medeiam as ideologias são maiores; por ora, quase que regressamos às primeiras décadas do século passado. Os discursos acesos e nacionalistas estão aí e convencem o eleitorado. Enquanto vos escrevo, os franceses decidem quem será o futuro Chefe de Estado. Pelo meio, Marine Le Pen, a líder da Frente Nacional, que embora não sendo a favorita, está bem posicionada, defrontando Emmanuel Macron na segunda volta.

    A Revolução de Abril de '74 foi ideológica. Fortemente marcada pelo marxismo. O país não conheceu a democracia, não sem antes passar por uma experiência insólita de tutela militar, até 1982, sob o manto de uma Constituição que enunciava direitos e deveres, também ela, como todas. Vincadamente socialista, da qual o preâmbulo é um remanescente histórico. O bom senso imperaria. O período 74 - 87 foi convulso. A adesão às Comunidades refrearia, definitivamente, a instabilidade política. Sucessivas revisões constitucionais, nomeadamente as duas primeiras (1982 e 1989), depurariam a Lei Fundamental.

     O povo português é tolerante. Salazar chamar-lhe-ia "o povo de brandos costumes". O Presidente do Conselho, em si, foi um pequeno ditador à portuguesa. Franco diria que a modéstia era o seu único defeito. Termos contornado a II Guerra Mundial, muito pelos esforços de Oliveira Salazar, fez-nos passar o século XX na pasmaceira. Posteriormente, não vivemos um Maio de '68. Sofremos reflexos. Acompanhávamos o que se passava na Europa à distância. A Europa assemelhava-se a uma realidade remota, a nós, isolados. A Revolução trouxe a libertação, não só a política; a social. Os costumes mudaram. A sexualidade aflorou. O povo saiu à rua. O ensino escolar foi efectivamente universalizado. Ler, escrever e contar não mais bastava.

     Conseguimos traçar um quadro fidedigno de quem éramos e de quem somos. Não só no espectro económico. Portugal conheceu um desenvolvimento significativo, já o sabemos. Falo-vos do povo, da nação portuguesa. Mudámos. Temos jovens qualificados, que consideramos intransigentes e mal-educados, sim, mas que são infinitamente mais cultos do que os seus avós. Aceitamos melhor a diferença. A televisão e a imprensa livre ajudaram-nos nessa transição entre país profundamente atrasado, em variadíssimos domínios, para membro da vanguardista Europa. Devemo-lo a Abril. Temos razão quando reivindicamos mais e quando cremos que quarenta anos dariam para um salto maior. Sim. Aí, entretanto, há a somar os intoleráveis índices de corrupção que temos e a podridão que perpassa a classe política.

      Só alguém desprovido de sentimento patriótico poria em causa a pertinência do golpe de Estado. Ou um saudosista, da velha guarda. Com todos os erros, e foram certamente muitos, Abril foi necessário. E foi benévolo. Contornámos uma guerra fratricida, evitámos um round two a outro autoritarismo, sabe-se lá se pior do que o primeiro, e desenvolvemos. Desenvolvemos. Muito. E eu não conheci o Portugal do Estado Novo, que mo fazem chegar através de testemunhos vivos.
      Viva Abril, Viva Portugal.

21 de abril de 2017

A tirania turca.


     É uma síndrome que percorre a Europa, não de uma ponta à outra, que Portugal tem-se sabido comportar condignamente, e damos uma lição à Europa dita civilizada. O extremismo recolhe poucos frutos no mais ocidental dos países do Velho Continente. Não conhecemos os discursos xenófobos, extremistas, que diabolizam minorias. Da Europa dita civilizada não faz parte a Turquia, que ainda é Europa, geograficamente, e que dirige a sua política externa para o ocidente. Aliado de primeira linha dos EUA, a Turquia é membro fundador da NATO, em 1949; do Conselho da Europa, no mesmo ano, e há perto de trinta anos acalenta o sonho de aderir à União Europeia. Em matéria de direitos humanos, o país retrocede, muito embora a abolição da pena de morte, num primeiro momento, tenha surgido como um sinal positivo que a Turquia parecia querer dar aos seus futuros parceiros.

      A Europa olha-a com desconfiança, e motivos não lhe faltam. Erdogan, o actual Chefe de Estado, sujeitou uma lei de revisão constitucional a plebiscito, por imperativo constitucional. O povo votou-a e fê-la aprovar. A partir de 2019, a Turquia, até então regida por um sistema parlamentar - em que o Governo depende do Parlamento -, tornar-se-á numa república presidencialista, ultrapresidencialista, eu diria, com um Presidente que acumulará os poderes legislativo, executivo e ainda terá a prerrogativa de nomear grande parte dos juízes dos tribunais superiores. O que teremos, em suma, será o fim da divisão tripartida de poderes e do sistema de checks and balances, em que os poderes se autocontrolam e autolimitam. A democracia sucumbiu aos devaneios autoritários de Erdogan. A Turquia, que contrastava com os demais países de maioria muçulmana pela sua relativa abertura, pelo Estado laico, pelo multipartidarismo, adensará a longa lista de Estados fanáticos.

     O país está dividido. Erdogan, que pede respeito pelo resultado, terá de lidar com a oposição, que não reconhece a vitória, já contestada e marcada por suspeitas de ilegalidade. Não me admiraria que o resultado do escrutínio tivesse sido obtido às custas de fraudes nas urnas. O Sim obteve pouco mais de 50 %. A sociedade turca está manifestamente dividida, e os poucos pontos percentuais que afastavam Erdogan do resultado que lhe seria favorável estão longe de convencer os analistas internacionais acerca da transparência no processo de contagem.

     Este retrocesso agudizará o preconceito ocidental contra o Islão. A Turquia é um ponto de passagem dos refugiados, lida há anos com revoltas na sua parcela do Curdistão. É frequentemente acusada de etnocídio do povo curdo.

      A adesão da Turquia à UE é improcedente. Não estão reunidas quaisquer condições. O regime turco demonstra rumar em sentido oposto aos princípios e aos valores que sustentam o bloco europeu. Bem assim, a deriva extremista na Turquia não auspicia nada de bom. Está em estado de emergência por um período indefinido, com sucessivas prorrogações. Há perseguições políticas. Pela sua importância estratégica e pela proximidade à Síria e ao Iraque, temo que o caos naquela região, tradicionalmente instável, aumente. A ventura de Erdogan será um estímulo aos populistas europeus que em breve enfrentarão a decisão popular. No ano de Trump e compinchas, nada me surpreende.

17 de abril de 2017

Quem Tem Medo de Virginia Woolf?


   Uma tarde de Páscoa pouco convencional, diria eu à partida. Pelo contrário, a evidência contornou-me as suspeitas: sala cheia, um preço agradável por ser Dia Mundial da Voz (e domingo de Páscoa) e uma peça fantástica, adaptação do filme de 1966 com a magnífica Elizabeth Taylor.

    A peça - deixo o filme para que o vejam; eu vi-o há muitos anos num dos serões da RTP2 - trata de uma noite entre dois casais, o anfitrião e o convidado. Alexandra Lencastre e Diogo Infante são, respectivamente, Martha e George, um casal na meia-idade, de classe média-alta, que vive em permanente conflito. Martha é filha do reitor da universidade local; George, professor no departamento de História. Convencem-se de que melhor será destruir os vinte e três (ou dois) anos de casamento pejados de mentiras, de humilhações - de infidelidades - muito embora tenha havido amor entre eles (se é que deixou de haver por algum momento).

    A meio da madrugada, entre copos a mais, passa-se de tudo, sendo que Martha é o vértice do perigoso desafio que aceitam implicitamente. Martha domina George. O seu pai, omnipresente, surge sempre que é necessário diminuir o marido, mostrá-lo como um tipo omisso, inerte, que vive na sombra do sogro, influente e rico na região. A desavença entre ambos, naquela noite, depressa envolve o jovem casal convidado, Nick, professor do departamento de Biologia, e a fútil e imatura Honey. Fica evidente um conluio de interesses que os une, a George e a Martha, e a Nick e a Martha e a Honey. Eles aproximaram-se delas em busca de uma concretização pessoal qualquer, e no caso de Nick, julgando Honey grávida de um filho seu (verificar-se-ia que era verdade). George propõe um jogo, pondo a nu os pecados da mulher, do colega e da mulher do colega. Revela-se o passado, descobrem-se as fragilidades de cada um dos quatro. Às tantas, a verdade e a mentira ombreiam-se mutuamente.

    Um casamento de farsa necessita de um estímulo, e Martha e George encontram-no na fantasia. Ao alvorecer, a "morte" do filho enfraquece-os, era essa a ligação que tinham. Nick e Honey, interpretados por Lia Carvalho e por José Pimentão, saem com os primeiros raios de sol, apercebendo-se da fragilidade daquele vínculo sem afecto, cercado de inseguranças e de  segundas intenções.  Martha e George, entretanto, terminam num abraço de desalento, exaustos do confronto, órfãos da ilusão que haviam criado e meio que descrentes no dia seguinte.

    A peça e o filme são um retrato dos defeitos e dos vícios que nos acompanham. Da desilusão. Da raiva, da necessidade de afirmação no ataque reiterado. Da desordem sentimental, do desequilíbrio emocional, do histrionismo. Do oportunismo. Da carência afectiva. Da frustração, na incapacidade em superar o fracasso pessoal e profissional.

    Gostei particularmente do desempenho de Alexandra Lencastre. Esteve fenomenal. Afinal, parece-me que consegue fazer melhor do que aquelas novelas de cacaracá. Diogo Infante sente-se seguro em palco. A idade amadureceu-lhe o talento. Os jovens actores como que ainda se procuram no meio artístico, mas vi-os com interesse.

     A peça estará no Teatro da Trindade, no Chiado, até ao dia 11 de Junho, e bem vale a pena.

12 de abril de 2017

Caveman.


   Pegando no convite de dois amigos, esta terça conheceu uma pequena alteração. Gosto imenso de teatro. Sem embargo, o teatro envolve uma interacção dos actores com o público, seja na comédia ou no drama, inexistente no cinema. Já experimentei ir ao teatro sozinho e, bem como ao cinema, sinto um vazio, pelo que procuro evitar. Na medida em que a companhia nem sempre está disponível, acabo por passar largos meses sem assistir a uma peça.

   Fomos ao Villaret. A peça foi importada da Broadway, como tantas. Chama-se Caveman, ou, em português, o Homem das Cavernas. Em registo de monólogo, com a tónica inteiramente no humor, Jorge Mourato, de quem nem sou fã, aborda os estereótipos e todo o fosso que se estabeleceu entre o homem e a mulher, numa análise histórica, sociológica, mitológica e psicológica, através dos tempos, desde o início da humanidade até à actualidade. Sozinho em palco, tendo o dever de nos fazer rir, e com uns poucos utensílios ao dispor, Mourato provocou gargalhadas entusiastas do público.

    Não falamos de um humor requintado. Rimos dos nossos papéis, das mesquinhices do quotidiano, de em como o homem e a mulher são distintos. O mais interessante, a par da peça em si, foi perceber a reacção dos casais, sobretudo a do casal que se sentou imediatamente à minha frente. A cada constatação, anuíam, como que se revendo naquela atitude, naquela situação, naquele contexto em particular. É uma generalização, claro está. Assistimos cada vez mais à reversão de papéis, que se acentuou com a emancipação da mulher e com o consequente abandono da função de guardiã do lar. A sociedade actual já não é , porque ainda é em parte, aquela que Jorge Mourato expõe durante duas horas. É-o em larga medida, e acaba por sê-lo após certa idade, ou precisaremos de envelhecer para ter a noção de como mudámos. Milénios de modelos estabelecidos não se alteram como que num breve compasso de tempo.

    Não é só para casais, embora os tenha visto em abundância. Todos acabamos, de uma forma ou de outra, a ter de lidar com estes estereótipos, pelos nossos pais, pelos nossos amigos ou conhecidos. E, a dado momento, nós agimos assim amiudadas vezes, como se fôssemos um objecto de estudo, vendo-nos desde a perspectiva do actor.

     A peça esta em (re)exibição todas as terças-feiras, pelas 21h:30m.

10 de abril de 2017

A justiça portuguesa.


   Desde que terminei a licenciatura e deixei o mestrado num impasse, afastei-me um pouco dos meandros do Direito. Continuo a subscrever a minha revista jurídica, continuo a ler os artigos que lia, embora tenha deixado de lado, definitivamente ou não, a jurisprudência e os sites que visitava. De igual modo, os manuais e os códigos aguardam na prateleira, meio que desconhecendo o seu destino. Eu diria que os dias de esperança já lhes passaram diante.

    O universo da justiça, em Portugal, provoca o desânimo e a consternação. Agudizou-se sobremodo a promiscuidade entre procuradores e alguns órgãos de Comunicação Social. Os julgamentos sumários, a tabloidização dos processos, as reiteradas violações dos direitos das vítimas e dos arguidos levam-me ao descrédito. Os processos estão anos sob investigação, quando há muito os suspeitos já têm a sentença lida perante a opinião pública. Os procuradores extravasam as suas competências, investindo-se do papel de julgadores quando não o têm. O segredo de justiça é uma piada. Ninguém o respeita.

    O jurista, aquele que terminou a licenciatura, acarreta o preconceito de uma área de formação depreciada, regra geral. Será o advogado inescrupuloso que de tudo fará para ganhar as suas causas, aproveitar-se-á da política para vingar na vida, embarcará numa relação íntima com os OPC e os magistrados, e os governantes, para daí extrair vantagens pessoais. Poucos se lembram de que aquele ou aquela jovem poderá querer marcar a diferença, honrando a lei, o compromisso assumido perante a sua consciência, primeiramente, e a sociedade.

    Não estamos perante uma escolha fácil. Só a vocação e o amor ao Direito justificarão a aventura que é ser jurista num país que não respeita o Direito, que não dignifica a justiça e que não confia nas profissões que estejam directa ou indirectamente relacionadas ao Direito. Como o amor desde sempre me faltou, prefiro dedicar-me a outras áreas de interesse, que me dêem menos problemas e que me tragam uma maior concretização pessoal. E é aí que me encontro.

6 de abril de 2017

A Bela e o Monstro.


     Um clássico do renascimento da Disney. De entre eles, talvez aquele cuja mensagem, a dita lição de moral, ganha um significado acrescido: a beleza reside no interior, e nem sempre quem é mau, é-o irremediavelmente.

     Temo sempre estas adaptações. A maioria delas rouba a magia dos filmes de animação. Em primeiro lugar, porque o desenho animado permite uma liberdade de movimentos e uma fantasia que nós, humanos, representando com o corpo, não temos. Em segundo lugar, o desejo de inovar, de trazer algo de inédito, frequentemente descaracteriza a história. Foi o que aconteceu com o Maleficent, de 2014, que seria o prelúdio de A Bela Adormecida. Era um novíssimo argumento, muito válido, sim, mas quem compra o bilhete, na maior parte dos casos, quer mergulhar no universo Disney das suas memórias, sem perder o fio à meada e sem sentir que não há uma correspondência lógica com o filme que dá o mote à sequência.

      O objectivo foi alcançado, no meu entender. O filme manteve todo o encanto do original, superando-o em realismo, e mal seria se assim não fosse. As características de cada uma daquelas personagens reportaram-me de imediato à Bela, ao Monstro, ao Gastón e aos artefactos vivos. Os efeitos especiais, dignos de nota, num filme que é todo ele circundado de encantos, primaram pela qualidade. As poucas discrepâncias face ao original conjugaram-se bem no todo, foram-lhe um bom complemento.

      O Le Fou, o amigo e companheiro do Gastón, conheceu uma curiosa transformação. Se bem me recordo, tratava-se de um idiota, fraco de espírito, que acompanhava o vilão nas suas façanhas e crueldades. Nesta versão, tornou-se na primeira personagem homossexual de um filme da Disney. Embora caricaturado, é divertido. Nutre pelo violento Gastón um amor mal dissimulado, mas eu diria que são os trejeitos que o actor lhe imprimiu que melhor denunciam, por assim dizer, a sua orientação. A derradeira cena de Le Fou, no baile final, é deliciosamente provocadora.

      Gostei do desempenho pessoal da Emma Watson. A Bela era uma miúda doce, frágil, transfigurando-se numa heroína corajosa quando assim tinha de ser, e a actriz soube encarná-la sem descurar qualquer das facetas da Bela do filme de animação. Fisicamente, entretanto, presumia que a Bela fosse mais bela, com mais presença. A Emma ficou aquém desse protótipo físico que construí da Bela, ainda que nada mais lhe tenha a apontar, e cada um tem o corpo que Deus lhe deu.

      Se me colocassem na inevitabilidade de escolher entre o original e a adaptação, ficaria com o primeiro. Os motivos, entretanto, enunciei-os logo no parágrafo segundo. Perdeu-se, neste caminho tecnológico, uma simplicidade qualquer, insuprível por 3Ds. Ou a idade é outra e o problema está em mim.

      A quem gostou do original de 1991, esta versão é-lhe fiel na banda sonora, na caracterização, na narrativa e na densidade das personagens (na última, tanto quanto possível). Vale a pena ver.