31 de agosto de 2019

Stockholm.


   A Síndrome de Estocolmo é sobejamente conhecida por todos. Até nos causa alguma perplexidade: como é que uma vítima pode vir a nutrir sentimentos de simpatia e afeição pelo seu algoz? Após o assalto, com subsequente tomada de reféns, ao Kreditbanken, em 1973, na capital da Suécia, a ciência tentou explicar o porquê de aqueles funcionários continuarem a defender insistentemente os sequestradores. Chegaram à conclusão de que a nossa mente é prodigiosa em encontrar um modo de contornar o perigo e o stress emocional. A identificação com o agressor, após sequestros prolongados, é um deles.

   Este filme vem precisamente contar-nos o que terá ocorrido naquela manhã de Agosto de 1973, quando um criminoso invade o átrio do banco e faz três reféns. Aos poucos, eles apercebem-se de que terão mais possibilidades de sair com vida colaborando com os assaltantes do que confiando nas operações de resgate da polícia.


   Não há muito a dizer sobre o filme, do ponto de vista da crítica cinematográfica. O desempenho dos actores está ao nível do esperado. Está longe de ser deslumbrante. É mais uma recriação do emblemático assalto, que se eternizou na memória pelas suas implicações com a ciência e a medicina. Tem um travo a humor, que aligeira a narrativa - um daqueles criminosos era um verdadeiro palhaço -, e mesmo sabendo nós, de antemão, como tudo viria a terminar, deixa-nos sempre na expectativa de saber que passos darão, polícia e criminosos, para levar a sua por diante.

   Intuí certa mensagem política. Governava a Suécia de então o mítico Olof Palme. Nos contactos trocados com os reféns, resultou certa apatia quanto à sorte daquelas pessoas, como se fosse indiferente ao governo sueco que sobrevivessem ou não, mediante que a imagem internacional do país não fosse afectada. Também não é menos verdade que a Suécia jamais havia lidado com ums situação semelhante. Tal grau de alarme social e de mediatismo num crime era-lhes estranho.

  Exigia-se mais. O argumento tinha potencial, sem dúvida alguma.  Se tivessem dramatizado mais, provavelmente estaria, agora, a elogiar o filme. E não estou.

28 de agosto de 2019

Variações.


   Variações é mais um dos inúmeros filmes recentes da cinematografia portuguesa que nos podem orgulhar. É um filme tão bom, tão bem conseguido, que poderia figurar nas salas de cinema de qualquer país do mundo. É isso que me apetece dizer às pessoas, sejam lá de onde forem: se puderem, assistam ao Variações. Aprendemos, finalmente, a fazer filmes sem aborrecer as pessoas com voltas e voltinhas que, por mais que nos digam que pertencem a um determinado estilo culto, não têm potencial de encher salas de cinema e ainda menos de nos projectar lá fora.

   João Maia conseguiu fazer um filme sobre António Variações, o que já pecava por tardio, sem politizar a imagem do icónico intérprete, termo que lhe faz mais jus do que o de cantor, afinal, António Variações era também compositor, e um compositor de excelência, que sem qualquer formação musical criava magia através de um simples gravador, aproveitando o eco que a sua casa de banho lhe proporcionava e sempre inspirado na diva Amália. Acredito que tenha sido tentador banalizar Variações, a sua vida e carreira com uma atenção desmesurada na faceta pessoal do artista. O filme contorna-a. Bom, não é possível falar-se de Variações sem aludir à sua sexualidade. Foi um ex-amante seu, ou ex-namorado, Fernando Ataíde, que lhe estendeu a mão e lhe permitiu inaugurar a impactante discoteca Trumps logo na primeira noite. António apresentou temas rejeitados pela Valentim de Carvalho, que evidentemente fizeram furor, ficando logo no ouvido e nos lábios de todos os presentes naquela madrugada de 1981.




   Não se pense que o seu percurso foi fácil. Luís Vitta, da Rádio Renascença, falecido em 2015, foi um dos mais acreditaram no seu potencial. Um homem como António Variações dificilmente obteria a confiança de qualquer editora, acostumadas que estavam a outro tipo de sonoridade. Portugal saíra poucos anos antes do Estado Novo. A falta de formação musical fazia com que António fugisse ao tempo das canções. Era complicado para os restantes músicos, e António cantou em bandas, acompanhá-lo. As canções viviam dentro de si. Ele era a prova viva de que a música nasce com as pessoas. O talento não se compra nem se ensina: ou se tem ou não se tem. Mais importante do que conhecer os homens com quem António Variações se deitou, João Maia trouxe-nos o artista e a sua saga para vingar numa indústria corporativista e antiquada.

   A interpretação de Sérgio Praia é inenarrável. Há factores que ninguém controla, como as semelhanças físicas entre Variações e o actor. E é um factor que ajuda a que, inconscientemente, acreditemos na história que nos está a ser narrada. Pesa mais do que possamos à partida pensar. Depois, claro, vem a qualidade da interpretação, da caracterização, dos cenários, enfim, do contexto em que todas as personagens são inseridas. Houve esmero e brio. Sérgio Praia arrebatou o direito a vestir a pele de Variações. Passou, com nota francamente positiva, no teste de nos trazer, trinta e tal anos depois da sua morte, o homem que escandalizava a moralista sociedade portuguesa com os seus brincos exóticos e roupagens andróginas, que oscilava entre a moralidade e a religiosidade de Amares e a excentricidade de uma Amesterdão que o modificou para sempre. Este filme vem fazer justiça ao homem, ao artista, que - diz quem conheceu - era de uma simplicidade e timidez únicas. Fazia falta falar-se de Variações no grande ecrã.

27 de agosto de 2019

Chernobyl.


   De volta a Lisboa. Antes de ter partido para férias, andei a acompanhar uma série no canal de streaming HBO, que subscrevera dias antes. Chernobyl. Devem ter ouvido falar. Pois então, é uma mini-série de cinco episódios que relata os trágicos acontecimentos do dia 26 de Abril de 1986 na central nuclear de Chernobyl, naquele que ficou conhecido como o pior acidente nuclear da História. A zona de exclusão, que hoje ascende a várias centenas de quilómetros, segundo os especialistas, só será habitável dentro de 900 anos, quando a radioactividade permitir a ocupação humana. No seguimento do desastre, morreram dezenas de pessoas expostas a níveis elevadíssimos de radiação, sucumbindo à síndrome aguda. Pelos anos, vários milhares pereceram de cancro devido à acção prolongada e letal de doses de radiação no organismo. Milhares de crianças nasceram com malformações. Mais tarde, veio-se a descobrir que o acidente se deu por erro humano, numa conjugação de falhas na segurança dos reactores com testes mal efectuados.

   Deixam-nos com vontade de a devorar num serão. A caracterização está excelente. Vemos os terríveis efeitos da radiação no corpo humano, o sofrimento daqueles homens, não só dos trabalhadores da central como também dos bombeiros que acudiram ao incêndio que se seguiu à explosão. Provavelmente, nem eles teriam noção do perigo a que se expunham, tal o voluntarismo em fazer cessar tudo aquilo, todo aquele cenário dantesco. A radioactividade produzia um halo luminoso no céu de Pripyat. Uma matéria incolor e inodora é tão destruidora.




   Embora o foco incida sobre o acidente, os trabalhadores e os funcionários soviéticos e os quadros do regime, nas suas horas, dias e meses seguintes, há um núcleo amoroso, numa tentativa de humanizar a tragédia. O que ela representou para as pessoas comuns, que lidaram, num momento inicial, até às evacuações, com absoluta naturalidade. A radiação não era perceptível. Há uma cena na qual vários habitantes se juntam para assistir aos vapores emanados pela central engolida nas labaredas e aos halos luminosos desde uma pequena ponte, ponte essa que ficaria conhecida por ponte da morte. Nenhum sobreviveu.

   A sonorização complementa um quadro de horror. Os medidores de radiação produzem um zunido que nos faz sentir isolados no meio de um veneno que não se sente. O mérito da série é exactamente esse: a recriação, o mais fidedigna possível, do que terá sido Chernobyl para os seus intervenientes. É uma quase ficção científica sem o ser. Aconteceu realmente, ainda que nos pareça ter sido impossível. A luta contra um inimigo que não se vê e nem se cheira, e que previamente já levou a melhor.

  A URSS começou por negar o acidente. Mais tarde, assumi-lo-ia. Há historiadores que aventam Chernobyl como um dos factores que levaram ao colapso do estado soviético, em finais de 1991. Chernobyl, e Chernobyl, em itálico, revelaram ao mundo fragilidades de uma superpotência que já não o era tanto, que se esforçava ingloriamente para competir com os americanos. Que dispunha de material ultrapassado e inoperante. Entre personagens reais e algumas fictícias, e a fronteira entre a ficção e a realidade não é clara, o HBO tem, aqui, uma grande aposta, que certamente reúne as condições para atrair novos subscritores. A mim, foi precisamente Chernobyl que me levou a aderir. Veremos se as séries seguintes lograrão fazer-me ficar.

17 de agosto de 2019

Holidays.


   A blogosfera já não existe e eu também ando a perder o gás, mas, ainda assim, gosto de vos dar conta dos meus passos (alguns). Vou até ao Algarve, por uns dias, fazer e praia e piscina, que gosto tanto e que tão bem me faz. No regresso, conto-vos como foi. 

   Boas férias, se for caso disso!

16 de agosto de 2019

O Impiedoso País das Maravilhas e o Fim do Mundo.


   Inauguro, aqui no blogue, a primeira crítica literária. É a primeira vez, julgo eu, que me debruço sobre um livro. A minha relação com os livros é caricata. Adoro ler. Nem sempre tenho paciência para tal. Antes de entrar na faculdade, lia imenso. Depois, perdi a vontade. Fui esmorecendo. Voltei em força com este O Impiedoso País das Maravilhas e o Fim do Mundo, de Haruki Murakami. É, também, o meu primeiro livro deste autor.

  Andei meses para o terminar. Pelo meio meteu-se a faculdade, e lá o deixava de novo na prateleira, à minha espera, e esperou muito.

   A obra é de 1985, e arrecadou o equivalente japonês ao nosso Prémio Camões, o Tanizaki. Através de uma linguagem simples, ligeira, Murakami vai-nos relatando cenas do quotidiano, triviais, como viagens curtas de carro, ao som de Bob Dylan, ou molhos de tomate na cozinha. O livro tem poucas personagens que intervêm decisivamente. Está dividido em dois núcleos. As duas principais de cada núcleo parecem estar sempre no limite da esperança e da apatia. Deixam-se levar no embalo das consequências das decisões que vêm tomando. Há um pesar, latente, lamentos constantes do que ficou para trás ou eventualmente por viver. 

   Murakami foi bastante descritivo. As descrições tomam-lhe tempo. Não se esgota nelas, contudo. Temos de atender ao ano em que foi escrito - 1985. O autor levanta questões éticas e sociais. Naquele tempo, a ficção científica ocupava-nos o imaginário. Estavam a começar os loucos anos da era tecnológica, que tantas coisas boas (e más) nos trouxeram. Como em Tóquio, numa enorme metrópole, um jovem adulto, praticamente abandonado e sem família, se sujeita a experiências científicas. Por baixo dos pés de milhões de seres humanos, havia um submundo subterrâneo que se movimentava na penumbra e que só esperava pelo momento oportuno para atacar.

   Fiquei com imensa pena da Sombra. Acompanhei o seu definhamento com tristeza, o que me compelia a querer avançar. No fundo, o seu enfraquecimento estava directamente ligado ao desligamento deste mundo, ao desprender.

  Murakami é o mestre da alegoria. Discorre sobre as tragédias do tempo contemporâneo. Eu diria que Murakami é um escritor dos aforismos, das metáforas. E da solidão. E do desalento. E do fatalismo.

   « A verdade é que o meu corpo existe, pensei, tratando de me convencer a mim próprio. Se tivesse desaparecido, deixando para trás apenas a alma, de certeza que me sentiria melhor. Porque se a alma tivesse de suportar eternamente feridas na barriga, úlceras gástricas e hemorroidas, onde diabo estaria a salvação? E se a alma não se separasse do corpo, onde diabo encontraria a sua razão de existir? » p. 298

11 de agosto de 2019

The Professor (Richard Says Goodbye).


   Pela primeira vez, estive no Oeiras Parque. Fui com um amigo, que me convidou para assistirmos ao The Professor, com Johnny Depp no papel principal.

  The Professor é uma tragicomédia, repleta de mensagens subliminares. Johnny Depp tem, a meu ver, um desempenho fora de série. O modo como ele conjuga, em Richard, o desespero e a aparente alienação face ao seu estado de saúde é notável. Quer-se dizer, o desespero e a conformação, paradoxalmente misturadas, que acompanham aquele homem em dias terrivelmente difíceis. Richard, contextualizando, é um professor que vem a saber, através de uma consulta, ter um cancro do pulmão em estágio 4, terminal. Vive um casamento curioso, atribulado, meio relação aberta, em que ambos têm conhecimento dos casos do outro, ou Richard dos casos da mulher.

   O que mais nos conquista, neste filme, é a aparente leveza e descontracção com que os assuntos são explorados, com raros momentos em que a seriedade toma definitivamente conta das personagens. A fotografia é requintada, e o mesmo se diga dos cenários e dos figurinos. O filme respira a classe, a mesma classe média-alta daqueles docentes de um instituto de ensino norte-americano.


   O que faríamos se soubéssemos que teríamos de seis meses a ano e meio de vida? Levaríamos o resto dos dias a chorar ou, pelo contrário, procuraríamos aproveitar ao máximo, jogando para trás das costas o politicamente correcto, sem medo do que os outros pudessem pensar? Estou em crer que o grande mérito do filme é o de deixar a questão a pairar sobre nós: como seria? 

   No que se prende às relações, outra questão se retira da longa: importaria mais a fidelidade do leito ou a lealdade da vida em comum, da partilha? Porque o amor não precisa do sexo, e nem devemos reduzir uma relação à cama e ao cumprimento dos deveres conjugais (que não o são). O companheirismo, que existia no caso de Richard e da esposa, prevaleceu até ao final, com mútuas declarações de amor na hora da derradeira despedida.

   É provável que saiam da sala meio desconfortáveis, até pelos sintomas da doença de Richard, que se vai agravando à medida em que os capítulos - o filme está dividido em capítulos - se sucedem, mas na certeza de que aquele homem escolheu morrer à sua maneira.