29 de abril de 2019

April 29.


   Pensei se faria sentido assinalar o meu aniversário aqui. A bem ver, talvez não. Não falo muito de mim. Falo de actividades que desenvolvo, o que é diferente. O blogue, há muito tempo que deixou de ser um espaço onde me exponha. Creio já nem ter idade para isso, embora saiba que há gente mais velha que se expõe, e que bom que assim é.

   Os aniversários perderam o encanto, também já o disse. Já não há presentes, já não há almoços em família. Já não há família, sequer. Já não há nada. Há um amontado de situações desorganizadas que me levam ao desespero e ao desencanto. Este dia é apenas aquele dia em que ainda corto o bolo porque sim, como que cumprindo um ritual. Não há absolutamente nada que o torne diferente, pelo contrário: a passagem dos anos começa a amedrontar-me. Os votos de feliz dia sucedem-se, sim, estimulados pelas redes sociais. É evidente que há sempre uma energia de quem se predispõe a deixar uma mensagem, um comentário, e isso eu agradeço e até gosto.

  A publicação também tem outro objectivo: há pessoas que só me acompanham por aqui e que sei que gostariam de ser lembradas desta data, porque não é exigível que dela se lembrem. Ocorrem-me duas, com quem só tenho contacto pelo blogue.

   É tudo.

28 de abril de 2019

25 de Abril [parte 2].


   No feriado, aproveitei que o Palácio de São Bento esteve aberto e decidi passar por lá. Por incrível que pareça, nunca antes havia estado no interior de São Bento, palácio novecentista (embora o espaço seja bastante anterior, remontando a um mosteiro), que sediou as Cortes constitucionais, o Congresso da I República, a Assembleia Nacional do Estado Novo e, desde 1976, a Assembleia da República - de 75 a 76, como sabem, esteve reunida por lá a Assembleia Constituinte, que elaborou a nossa actual Lei Fundamental. É um palácio em estilo neoclássico. Aceita visitas com marcação prévia. Em verdade, quero ver se lá volto, porque a afluência foi tanta que não pude ver tudo quanto queria com o tempo e a atenção devidos.



   Estive mais de uma hora na fila, que por acaso até andou bem. Dava literalmente a volta ao palácio, contornando-o. Faz-me lembrar a que apanhei quando fui ao Palácio de Belém, assim que Marcelo tomou posse.



  A par do hemiciclo propriamente dito, foi-nos mostrada a sala de visitas da presidência, a sala do arquivo histórico e a sala da comissão parlamentar. Acredito que houvesse mais para ver, mas era tanta gente… Não consegui visitar a Residência Oficial do Primeiro-Ministro, que estava encerrada, havendo gente que, contudo, não hesitou em violar as demarcações que impediam a passagem, nas barbas dos seguranças e dos agentes da polícia. Arriscam-se por pouco.



   Embora não concorde com a revolução, não deixei de colher alguns cravos. Até me tiraram umas fotos com eles. Já sabem que poderão ter acesso a elas através das minhas redes sociais, isto para quem me segue. Deixo-lhes, porém, algumas aqui.



    Porque as flores e os dias têm os significados que lhes queremos atribuir.


Todas as fotos foram captadas com o meu iPhone. Uso sob permissão.

25 de abril de 2019

25 de Abril.


   Com o passar dos anos, a minha posição em relação ao 25 de Abril foi mudando, ao cambiante do amadurecimento, também das novas leituras, já escolhidas por mim, que me afastaram da retórica que nos impingem desde pequenos. Quando julgamos que o revisionismo histórico é algo que só acontece lá fora - e há dias, na publicação sobre o fascismo e o nacional-socialismo, alertei para isso -, esquecemo-nos de que nós também fomos envolvidos na lavagem cerebral.

   É indesmentível que o Estado Novo era um regime atávico, que já ninguém queria defender, que terá caído por si próprio. Os capitães limitaram-se a dar um empurrão. Creio mesmo que até o Presidente do Conselho, o Prof. Caetano, não acreditava naquilo. O homem era um académico, não um político talhado para resistir a tanta pressão. Queria uma verdadeira evolução, que não lha permitiram. O Spínola também fantasiou um Portugal diferente, federal.

   Ninguém de bom senso põe em causa que ganhámos nas liberdades individuais. De facto, em nome da autoridade, que nem sempre se compagina com a livre opinião, livre imprensa, por aí, o indicador liberdade é aquele que mais frequentemente é invocado pelas pessoas. A partir daí, as mais instruídas saberão que os alicerces do estado social, da previdência, e até do serviço nacional de saúde, bem assim como o sufrágio feminino, vieram já no consulado de Marcello Caetano. Quer dizer, parece claro que a mudança estava iminente. Entraríamos, certamente, num período de transição que nos levaria à democracia. Não tenho dúvida alguma. A Ala Liberal é mais uma demonstração de que, politicamente, na Assembleia Nacional, se admitia um vislumbre de pluralismo político.

    O radicalismo que se lhe seguiu nada veio permitir. Aqui, claro está, entra a guerra colonial, um enorme disparate - e determinante para a ocorrência do golpe -, quando a solução sempre foi política e não militar. É um chavão que partilha lugar com a verdade absoluta. O que se fez em 1971, com a Lei Orgânica do Ultramar, elevando-se Angola e Moçambique ao estatuto de Estados, devia ter sido feito antes, décadas atrás, ou seja, falhou uma visão de futuro. Em rigor, Salazar tinha-a, porque revogou o Acto Colonial e procurou, tanto quanto possível, agilizar o processo de identificação, que prefiro ao de assimilação, que acarreta um tom pejorativo que me desagrada. O tempo foi-lhe escasso. A partir de 1945, com a bipolarização, tudo se foi sucedendo de forma extraordinariamente rápida, e o regime não foi capaz de acompanhar as novas percepções, os novos valores. Seguiu-se o isolamento e, mais tarde, pouco mais, os cuidados paliativos de Caetano.

   No meio de tudo, sobra a ideia de que o corte de 25 de Abril de 1974 não trouxe nada de bom. A democracia viria muito mais tarde, em 1982, finda a tutela militar, e porque os partidos se entenderam quanto ao destino a dar ao país. O período que medeia 1974 - 1982/3 foi trágico para os portugueses, para os africanos, para os asiáticos (Timor), para a economia portuguesa. Imagino que tivéssemos conseguido o mesmo em liberdade, lá vem a liberdade, e em desenvolvimento, se, sabiamente, o que não fomos, tivéssemos conseguido contornar aqueles terríveis anos de caos social e institucional. E provavelmente teríamos saído, todos, numa posição bastante mais vantajosa. Sim, eu acredito que tinha sido possível um Portugal pluricontinental, talvez com menos do que aqueles territórios, só com alguns, não se sabe. Sim, eu acredito que podíamos ter evitado a deriva à extrema-esquerda, com nacionalizações, perseguições pessoais, saneamentos, etc. E sei que estávamos no caminho para mudar. Torno ao bom senso. Ninguém, ninguém, admitiria uma conjuntura pensada para 1933 - 1945 em 2019. Os regimes, as leis, as ideias, os homens têm a sua época. Contudo, há diversos caminhos para se chegar ao mesmo resultado, e o caminho que seguimos foi, no meu entendimento, profundamente errado, e sentimo-lo todos os dias: somos um grande nada num mundo cada vez mais global - curioso, tão curioso, quando nós inventámos a globalização. Somos, convém lembrá-lo ciclicamente, uma marioneta nas mãos de interesses superiores. Não somos soberanos. Não vale a pena insistir nessa ideia de soberania. Abril conduziu-nos tragicamente para a dependência, para o sacrifício, para as crises cíclicas, para a pequenez (territorial e não só), para a subserviência. Obrigou-nos a entrar numa espiral da qual não sairemos, ou dificilmente sairemos. O que resultou daquele quadro precipitado pelos revoltosos foi isto. Hoje em dia, efectivamente, não temos um partido único, mas temos uma multiplicidade de partidos que fazem refém a nossa democracia. Não há democracia sem a ditadura dos partidos, que, como tão bem sabemos, depois servem fins vergonhosos, como o proveito pessoal e o favorecimento familiar.

    Nada mais haverá a fazer quanto ao passado. Ele está lá. Estático. Mas podemos, até para tocar na ferida, procurar mostrar como teria sido. A pessoas têm o direito a saber o que também lhes foi negado. A multiplicidade de vantagens que teríamos tirado de uma evolução, ou transição, mais gradual, que escapou ao poder de Caetano, claro, mas que decerto não à sua vontade. E, se há algo a comemorar, será a certeza do que poderia ter sido e não foi.

24 de abril de 2019

Medellín.


   Quando ouvi a nova canção da Madonna, perguntei-me: "Onde estarão as influências portuguesas?" Não as há, é verdade. Há quem garanta que o álbum as terá. Não sei. É claro que Madonna não foi indiferente ao último ano e meio que passou em Lisboa. Acredito que o álbum contenha, quando mais não seja, um cheirinho a Portugal. Ela assumiu, inclusive, que a ideia do Madame X nasceu aqui. Os serões nas casas de fado tê-la-ão inspirado.
    É de lamentar que, depois da polémica com o cavalo, na quinta, a artista se tenha decidido a deixar, zangada, o país. Não sou dos que considera que Madonna tenha dado muito a Portugal, como ela julga. A bem dizer, Portugal já estava na moda antes de Madonna. A própria, estou em crer, foi mais uma das conquistadas pela nossa paz social, pelo clima e pela beleza das nossas paisagens naturais e monumentos. Quando ganhámos o Europeu de 2016, por aí, começámo-nos a tornar apetecíveis para os estrangeiros. Mas não nos afastemos do seu próximo trabalho.

   Ao olhar para o alinhamento das músicas do disco, deparei-me com colaborações brasileiras (Anitta, e um Faz Gostoso), um toque cabo-verdiano e, depois, aquele reggaeton latino-americano misturado com a pop. É, de resto, assim que se apresenta Medellín, a faixa que inaugura Madame X, ainda a ser lançado. A canção já está disponível no YouTube e nas plataformas digitais de streaming, como a Apple Music. Já a adicionei à minha biblioteca pessoal.

    Não se deixem levar pela primeira impressão. De facto, ao ouvi-la, pela primeira vez, odiei-a. Camille Paglia, uma célebre feminista norte-americana, acusou, há uns bons anos, Madonna de se ter rendido ao marketing. Com efeito, a rainha da pop já não é o que era. Os tempos também mudaram, verdade seja dita. Madonna foi a primeira artista a criar um pop de massas, a mostrar um lado sensual e erótico da mulher, no despontar dos 80. Não sendo particularmente bonita ou boa cantora (como Cher frequentemente lembrou, talvez por algum despeito…), Madonna soube vender bem o produto. Vender-se bem. Ela vende o que tem como ninguém, e deu certo. Deu certo até hoje. Longe dos lugares cimeiros das tabelas nos anos 80 ou 90, Madonna é Madonna. Sempre se fala nela, sempre se ouve o que ela manda cá para fora. Nos últimos anos, e o último álbum seu que comprei foi o Hard Candy, em 2008, Madonna tem procurado resgatar um público mais jovem, colaborando com artistas como Justin Timberlake, Timbaland, Nicki Minaj, etc. Ela sabe, porque é perita no assunto, que o mercado musical é particularmente mau com as mulheres. Os homens, com a idade, ficam charmosos; as mulheres, ficam trapos. Às cantoras internacionais, quando atingem certa idade, resta uma de duas: ou viram lendas, e todos as admiram mas já ninguém compra um produto novo que lancem, ou caem no esquecimento.

   Voltando a Medellín, é uma canção imprópria para se ouvir por mais de duas vezes, correndo o risco, o incauto, de ficar viciado num ritmo que nos faz querer dançar até amanhã, de refrão pegajoso que se gruda à nossa pele e de lá mais não sai. Conta com a participação - que há quem diga até em doce excessiva - de Maluma, um cantor colombiano (e giro, até), que veio a Portugal a convite de Madonna. Andou pela noite lisboeta na companhia da diva, tirou fotos na Praça do Comércio, e, pelo visto, divertiu-se. Menos mal que nos queda Portugal. Deixo-a aqui.


20 de abril de 2019

Dina (1956 - 2019).


   Assim como assim, eu não era fã da Dina. Sabia-a doente, porque havia lido sobre isso, algures, e até sabia que era algo pulmonar. Desconhecia os contornos. Dina sofreu de fibrose pulmonar - uma doença que me era completamente desconhecida - durante treze anos, quando a maioria dura três. Já não fazia nada sem a botija de oxigénio. No ano passado, deu a sua última entrevista, não se deixando fotografar para que o público se lembrasse de si saudável e ainda bem. É de mulher, de grande mulher.

   A Dina sofreu daquele mal que aflige muitos artistas em Portugal: a injustiça. Quando se é mulher, lésbica e se participa no Festival da Canção, é meio caminho andado para se cair na maledicência do povo e no boicote das rádios. É que, em Portugal, facilmente se catalogam as pessoas. Não conheço os números porque há muito tempo que não se ouve nada sobre o assunto, mas recordo-me de que praticamente não se passava música portuguesa nas rádios nacionais. Só estrangeira. Às vezes, quando queriam colmatar um espaçozinho minúsculo em língua portuguesa, recorriam à música brasileira ou aos GNR, Xutos, Rádio Macau e por aí. Sempre os mesmos. Os clássicos. Espero que tenha mudado. Depois, temos inúmeros preconceitos com a nossa música. Arranjamos um monte de catálogos, que vão desde a erudita, à menos comercial, à música pimba, ultimamente rebaptizada como ligeira. Eu também não a consumo, mas não veria com maus olhos se separássemos alguma e a colocássemos nas rádios. A Dina, enquanto letrista, tinha canções engraçadas, melódicas, que ficavam bem na sua voz e que me parecem bastante apropriadas para a rádio. E, indiscutivelmente, Dina era mais do que o Amor d'Água Fresca, que a popularizou e eternizou entre os portugueses. A minha preferida, do seu repertório, é uma canção menos conhecida, de seu nome Acordei o Vento.

   Evidentemente, foram as participações no Festival da Canção e na Eurovisão, em 1992, que marcaram uma geração. A minha, inclusive. Eu guardarei na memória a imagem da mulher roliça, de brinco na orelha e viola entre braços, a enfiar uma catrefada de frutos num cesto bastante colorido e melódico, canção de refrão pegajoso, que entra do ouvido e de lá não mais sai. E é esse momento que deixo aqui.


17 de abril de 2019

O fascismo e o nacional-socialismo serão movimentos de esquerda?


   Recentemente, sobretudo pelas redes sociais, que têm este dom de propagar todo o tipo de teorias ao sabor de partilhas, surgiu uma corrente que afirma que o fascismo e o nazismo, vulgo nacional-socialismo alemão, são de esquerda. Não haverá apenas aqui ingenuidade dos utilizadores das redes sociais. Bolsonaro, nomeadamente, também o afirmou, assim, levianamente, como leviano é tudo em si, desde a escrita às ideias. Não tardou a que meia dúzia de sujeitos com as mãos calejadas de tanto onanismo adoptassem os dislates do presidente brasileiro como dogmas de fé. A estes juntam-se os filósofos de redes sociais, os sociólogos de divã, enfim, hoje em dia cada um diz o que bem entende, e que bom que assim é, vivemos em liberdade. O lado mau é este péssimo revisionismo.

   Desde logo, o grande pecado dos liberais é limitarem o conceito de direita ao domínio económico. Se defende o Estado mínimo, direita; se olha para a nação e para o seu engrandecimento, esquerda. Para Mussolini, o centro de tudo era a nação, e nada podia atentar contra ela. Já Hitler, por sua vez, opunha-se a programas políticos, quando Mussolini já havia entendido que precisava de uma doutrina.

  O nacional-socialismo e o fascismo são um produto da guerra, da I Guerra Mundial. Foram uma reacção imediata à derrota e à destruição. O fascismo e o nacional-socialismo são, em suma, um nacionalismo de vencidos e de humilhados, reaccionário. Surgiram em meio da carência, do desemprego e da angústia. Opunham-se ao liberalismo e às promessas de modernização e desenvolvimento. O liberalismo e a quebra de regras quanto aos grandes interesses económicos apenas conduz à ruína. O nacional-socialismo surge, assim, como uma nova leitura do socialismo, é certo, porém profundamente anti-marxista, e é aqui que surgem as confusões: não se admite que possa haver um socialismo não-marxista, por um lado, e, pelo outro, restringe-se a direita apenas ao maior ou menor intervencionismo estatal na economia.

   Goebbels rejeitou peremptoriamente qualquer luta de classes. Pelo contrário, pretendia que elas se unissem sob a égide de uma grande comunidade nacional. Goebbels não acordou inspirado, certo dia. Esta sua concepção do nacional-socialismo e das suas bases dogmáticas vem na esteira de autores como Fichte, List, Rodbertus, Lassale, Dühring e ainda dos grandes doutrinadores da revolução alemã, Oswald Spengler e Arthur Moeller Van den Bruck. Spengler foi essencial na construção do nacional-socialismo alemão. Em Preussentum Sozialismus, Spengler disserta sobre o papel a atribuir à Alemanha: impedir que as raças não europeias perigassem a cultura do Velho Continente. Urgia, nesse sentido, expurgar o marxismo do socialismo, que conduzia ao internacionalismo e à luta de classes. Pelo contrário, e imbuído na tradição prussiana, deveria adoptar uma concepção de autoridade e disciplina. Van den Bruck, em Das Dritte Reich, defendeu que o socialismo existia em cada povo, e que Marx, uma vez que era judeu, não compreendia o sentimento nacional, e que luta de classes deveria ser substituída por uma ideia de solidariedade nacional.

  Para Mussolini, o fascismo era uma filosofia de certo modo espiritualista. E, tal como sucedeu com os teóricos do nacional-socialismo, também ele condenava a luta de classes. Ia mais longe: postulava que o fascismo se opunha ao socialismo. Para o carismático duce, o socialismo rejeitava a unidade do Estado e sobrevalorizava a luta de classes. Claro que esta pretensão de restaurar o « verdadeiro socialismo » não mais era do que farsa. Ambos os movimentos mantiveram as oligarquias intactas, bem assim como o grande capital. Maurice Duverger apelidou mesmo o fascismo e o nacional-socialismo de "ditaduras conservadoras", pela base social que os apoiava, composta por terratenentes e os grandes industriais do Rur e da Lombardia.
  Seria falso desconsiderar-se que ambos os movimentos atraíram sobretudo as classes médias industriais e mercantis, amedrontadas com o desenvolvimento tecnológico e a proletarização. Também elas eram as principais vítimas das crises e das guerras. Em todo o caso, não é certo concluir-se que o fascismo era um movimento composto pela classe média. Ainda que os quadros especializados sejam oriundos dela, também entre os operários se encontravam simpatizantes. O fascismo não foi apenas, ou não foi, de resto, um movimento da pequena burguesia. Houve, sim, participação popular. Pelo que podemos observar, dos mais ricos ou mais carenciados, foram movimentos aglutinadores.

   Robert Brasillach, que viria a ser executado pela sua proximidade ideológica sobretudo ao nazismo, chegou a afirmar que o fascismo era "a poesia do século XX". Com efeito, o fascismo era um movimento das massas, dos aglomerados, dos cânticos. Era uma amizade, um «fascismo universal da juventude». Era ainda uma poesia da disciplina e da ordem. Uma poesia do corpo, quase recuperando os ideais de beleza clássicos. Da vida ao ar livre, do desporto, da virilidade, do corpo sadio. O homem tinha de se afirmar como capaz concorrente à modernização e à maquinaria. Por fim, era uma poesia da guerra, da revolução. A guerra permitiria um reconciliação universal, da qual resultaria uma "fraternidade dos combatentes ».


   Tal como com o cultuar do corpo, o fascismo, por ser um movimento do espectáculo, da encenação, da teatralidade, vive de um grande líder carismático, que se afirme e que seja capaz de galvanizar as massas. Hitler era um mestre da oratória. Soube, aliás, como ninguém, subjugar o romantismo alemão a uma ideologia, a um programa. Nesse sentido, estabeleceu-se uma ligação nunca antes vista pelo chefe e o povo. E é uma ligação tão forte, tão intensa, que roça o histerismo e o êxtase colectivo. O chefe representa a alma do povo, reúne os elementos que lhe são comuns. Em todo o caso, o Führer deveria ser quase omnipresente; alimentar uma aura de mistério sobre si. Surgir nos momentos decisivos. Ser curto e conciso. Imponente. Há, aqui, quase uma comparação ao Criador.

   Para o nacional-socialismo e o fascismo, não havia qualquer ideia de igualdade. Como Hitler viria a proferir, num discurso, « só interessa acreditar, obedecer e combater ». Mussolini, em 1922, exaltaria a nação: « Nós criámos o nosso mito. O nosso mito é a nação, a grandeza da nação. » Estavam criadas as condições para, aliada a oratória ao chefe que tudo sabe e vê, surgir o mito, numa concepção quase soreliana. Hitler e Mussolini rejeitavam a igualdade - o que os afasta da esquerda definitivamente. Rejeitavam, ainda, a democracia igualitária ou o sufrágio universal. Ambos eram profunda e visceralmente contra qualquer ideia de democracia representativa, e não raras vezes, nos seus discursos, zombavam da ideia de se eleger alguém de valor pelo sufrágio.

   Mussolini e Hitler ainda partilhavam concepções muito particulares sobre o papel a desempenhar pelos predestinados. Ocupou-lhes algum tempo. Ambos rejeitavam  os fracos. No caso de Hitler, com desenvolvimentos particularmente dramáticos, como sabemos. Mussolini, mais comedido, fazia pender sobre os governantes o destino da sua cara nação. É o culto da irracionalidade e do utilitarismo.


  O papel que o Estado desempenhou para os dois governantes é que tem suscitado grande controvérsia, sobretudo por parte de quem vê no Estado a única característica que nos atribui o rótulo da esquerda ou da direita - e houve quem julgasse que a dicotomia estava morta! Viva, tão viva.
   Para o fascismo, o Estado era tudo, que tinha um primado absoluto. O indivíduo não existe fora do Estado e é um meio ao serviço deste. O Estado é totalitário e avesso à separação de poderes. É uno, é um todo. Mussolini, em 1925, definiu claramente o que Estado era para si e para o fascismo naquela que é, talvez, a sua fórmula mais intemporal: « Tudo no Estado, nada fora do Estado ».
   Ambos, quer Hitler, quer Mussolini, subordinaram o domínio económico à política e aos interesses do Estado. Hitler chegou a afirmar que a economia era um assunto de somenos importância. Para si, o Estado não era uma "organização económica", mas sim "racial".

   Marcel Prélot definiu bem o regime de Mussolini: uma estatocracia, ou seja, uma mistura de monocracia e autocracia. Mussolini levou a exaltação do Estado a um paralelo nunca antes visto. Mussolini quase que antropomorfiza o Estado, como se de um ser pensante se tratasse: o Estado, para o Duce, "é a consciência imanente da nação", nas palavras de Prélot. É um facto espiritual e ainda moral. Um Estado ético. E no confronto entre o Estado e a Nação, Mussolini parecia rejeitar que a última originasse o Estado, senão o contrário, desde uma óptica anti-naturalista. É o Estado que leva o primado sobre a nação. E é o Estado, nesta linha de entendimento, que consciencializa o povo da sua unidade moral e, consequentemente, de uma existência plena.
    A concepção hitleriana era díspar. Para Hitler, o Estado era um mecanismo. A essência estava no povo. Povo esse que abrangia uma realidade histórica e étnica - muito importante - que ia muito além do século XX. Embora tardiamente reunificados, a Alemanha de Hitler era uma entidade que, graças ao labor dos filósofos e historiadores alemães, bem assim como pela força das suas tradições, dispunha de uma coerência social que Mussolini se viu, em certa medida, obrigado a forjar.

    O corporativismo e racismo foram outras das características primordiais do fascismo e do nacional-socialismo alemão. A primeira, do fascismo. As corporações, várias, estavam ao serviço do Estado italiano. No fundo, foi uma engenhosa forma de Mussolini pôr em prática a sujeição da economia ao Estado. Já no que respeita ao racismo, Hitler não foi precursor. Antecederam-lhe outros, como Gobineau (este último com uma ligação notável ao Brasil), Vacher de Lapouge ou Chamberlain, mas foi em Mein Kampf  que o racialismo encontrou maior expressão, sobretudo no capítulo XI da obra que há relativamente pouco tempo (dois anos) entrou em domínio público. E foi talvez aqui que Hitler e Mussolini mais divergiram. O fascismo estava ligado a uma ideia de imperialismo sobre outros territórios, numa perspectiva de grandeza do Estado; já o nacional-socialismo, entretanto, pugnava pelo mesmo, mas sob a égide de uma raça e de um povo superiores. O darwinismo ao serviço de interesses duvidosos. O Espaço Vital. A GrossDeutschland, que não se deve confundir com o pangermanismo alemão do século XIX, surgido numa era de concorrência entre os mercados. O dito pangermanismo hitleriano era bem mais político do que económico. Em 1932, Hitler deixaria evidente que é através do Estado que a Alemanha se expandiria. Um vez mais, como referido acima, o nacional-socialismo era místico, militar e político. Hitler assumia que todo o alemão podia fazer parte do Terceiro Reich, contanto que a ele pertencesse. Importa o número sobre a riqueza. O poder sobre tudo.

   Deixaria de parte o franquismo e o salazarismo, que não importam explorar aqui dado que, embora partilhassem elementos comuns com o fascismo, não foram fascismos. Parece indiscutível para a historiografia mais imparcial e esclarecida.

   Observando tudo o que foi explanado, e retomando, anos depois, as grandes análises políticas, em suma constatamos que o fascismo e o nacional-socialismo foram tudo menos movimentos de esquerda. Pelo contrário. Opunham-se à ideia de igualdade. À luta de classes. Engrandeceram o Estado que para Marx seria abolido, na última fase do comunismo. Eram nacionalistas. Profundamente anti-marxistas. Capitalistas, favorecendo os grandes interesses.  E se podemos vislumbrar, na sua génese, pretensões de se restaurar o verdadeiro socialismo, foram, na verdade, uma extrema-direita no aspecto ideológico e dogmático, oposto ao liberalismo.

7 de abril de 2019

A revolução nos transportes públicos.


   Pelo que consta, desde o 25 de Abril que não se via algo tão surpreendente nos transportes públicos de Lisboa e do Porto. A medida já havia sido anunciada há uns bons meses, e resulta do acordo entre o Governo e os municípios. Entrou em vigor no dia 1 do presente mês. Por, no máximo, 40 euros mensais, podemos viajar nos 18 municípios da Área Metropolitana de Lisboa. A mim, que desde 2015 moro no concelho de Vila Franca de Xira, deu-me imenso jeito. Eu não ando de carro. Tenho a carta há uns bons anos, contudo não me ajeito a conduzir. Mal de família. A minha mãe nunca conduziu bem, o meu pai idem, e o meu finado avô também não. Enfim. 

   A minha poupança mensal é de 60 euros. O anterior passe, que na verdade eram dois, custava em torno de 100. Poucos cêntimos faltavam. Leram bem, dois passes: um para o comboio e o metro, e outro, porque não havia combinado, apenas para o autocarro, porque da estação da cidade onde moro até ao edifício ainda distam quase dois quilómetros. Além do mais, o passe não me dava para ir a Belém, por exemplo, ou a Benfica, ou à Ajuda, and so on. Estava circunscrito ao percurso normal e às carreiras de uma determinada empresa de transportes. Com este passe, tenho liberdade total dentro da Área Metropolitana. Posso ir ao Carregado, a Mafra, a Setúbal, Sintra, Cascais, enfim. Em todas as empresas de transportes. Sair onde quiser.

  Parece que descobri a pólvora, não? Faz-me diferença no orçamento anual, e a milhares de famílias. A ideia vai ser estendida a todo o país, pelo que li. Embora acredite que isto terá um preço mal o PS ganhe as eleições - porque é uma verdadeira bomba eleitoral em ano de legislativas e europeias -, não deixa de ser uma excelente medida que ajudará à mobilidade, à qualidade do ar na cidade (tirando carros das ruas) e à poupança. Era cansativo depender de bilhetes e carregamentos para ir a qualquer lugar não abrangido pelos respectivos títulos mensais. Perdia-se tempo e vontade.

   Hoje mesmo, fui a Belém, de comboio, e voltei de autocarro. Fui já ao final da tarde, só mesmo para caminhar um pouco. Será uma zona mais explorada por mim a partir de agora, claro está. Entrarei de férias no dia 12, e tenho em vista, talvez, se o tempo e a disposição ajudarem, umas visitas pela área metropolitana.

   Se as pessoas forem sensatas, não darão a maioria ao PS. As maiorias obstam aos consensos e quase esvaziam o conteúdo útil do parlamento: um governo, com maioria, instrumentaliza o parlamento. Sabe que tudo o que sujeitar à Assembleia da República será aprovado. E sabe, por sua vez, que poderá inviabilizar tudo o que venha da oposição. Tem a faca e o queijo na mão, em rigor. Isto supondo que o PS irá ganhar as legislativas. Com o esbatimento do PSD e a dificuldade do CDS em se afirmar definitivamente como força política governativa, creio não restarem grandes dúvidas. Os passes ajudaram.


3 de abril de 2019

Kursk.


   Aproveitei que a professora de Contencioso não pôde dar a aula teórica e fui ao cinema ver um filme que me suscitou o interesse. Kursk. Para quem não sabe ou já não se lembra, o Kursk era um submarino da marinha russa, que afundou no dia 12 de Agosto de 2000, com mais de uma centena de militares no seu interior. Houve duas a três explosões no submarino, que transportava armamento nuclear. Às primeiras duas, umas duas dezenas de militares sobreviveram, emitindo sons para que a equipa de resgate soubesse que havia sobreviventes. Seguiram-se alguns dias difíceis para a comunidade internacional, para os seus familiares e, sobretudo, para aquelas pessoas, ali, claustrofobicamente presas e desconhecendo o seu futuro.

   Com o fim da Guerra Fria, a corrida armamentista também conheceu um desanuvio. Em 2000, nove anos após a queda da União Soviética, muito do arsenal russo já estava obsoleto. Pese embora seja o maior país do mundo, tenha vários interesses em pontos distintos do globo e ainda careça de manter o seu status, a doentia disputa com os Estados Unidos da América deixara de fazer sentido. Quando sucedeu a tragédia no Kursk, os russos depararam-se com uma evidência: os submarinos de resgate eram velhos, deteriorados, e depressa as autoridades russas perceberam que não tinham condições de fazer aqueles homens regressar à superfície. Fizeram algumas tentativas, e todas saíram goradas. A imprensa mundial acompanhava a situação com apreensão. Eu mesmo, sendo miúdo, lembro-me perfeitamente do caso. Era Verão, e estava de férias com os pais.

   Alguns países disponibilizaram desde logo a sua ajuda, designadamente os EUA, o Reino Unido e a Noruega. Os russos negaram-na durante dias, por dois principais motivos: temiam que incursões de estrangeiros ao submarino pudessem desvendar segredos militares, motivo atendível, que todavia cedia perante a necessidade de se salvar aquelas pessoas, e o medo da descredibilização entre os seus parceiros e o mundo: a grande Rússia, afinal, nem os seus conseguia tirar das águas em segurança, carecendo da ajuda dos ocidentais. Estava muito em jogo. O orgulho russo levou a que, quando finalmente permitiram que uma equipa inglesa descesse ao Kursk, se confirmasse o pior dos cenários: ao abrirem a escotilha, os ingleses deram-se conta de que todos tinham morrido.



   Thomas Vinterberg esmerou-se em tentar, com a maior verossimilhança possível, reconstruir as últimas horas da vida daqueles homens. Cá fora, sem nada saberem, e ainda sujeitos à contrainformação falsa do governo russo, os familiares desesperavam.
   Os actores têm interpretações ao nível do que seria expectável num filme do género, em que o peso da situação quase se consegue sobrepor ao desempenho individual. Ainda assim, eu destacaria Léa Sydoux, que no filme é a mulher de um dos marinheiros, Mikhail Averin, oficial que, após as explosões, liderou o conjunto dos sobreviventes, procurando manter o discernimento de todos enquanto esperavam pelo socorro.

   Não deixa de ser curioso que o mais sangrento dos séculos, o século XX, terminasse com uma tragédia assim. Foi um fim digno para um século de guerras, de mortes, de desenvolvimento tecnológico também no campo militar. Não o foi, seguramente, para aquelas pessoas, que morreram em vão, vítimas da quase indiferença do seu governo. Dos maiores receios da Rússia ao nível de efeitos da sua imagem no exterior, no que respeita ao desastre Kursk, creio que resultou um terceiro dano, não enumerado por mim: entre o medo de que se descobrissem os seus segredos militares e o medo de passar uma mensagem de país fraco que precisava da ajuda de terceiros para lidar com assuntos seus, vingou sobretudo a ideia geral de que o estado russo é capaz de ser frio e calculista quando lida até com vidas humanas suas, de gente que o serve. Um estado que abandona os seus e quase os deixa à sua sorte. Não haverá nada pior.