Recentemente, sobretudo pelas redes sociais, que têm este dom de propagar todo o tipo de teorias ao sabor de partilhas, surgiu uma corrente que afirma que o fascismo e o nazismo, vulgo nacional-socialismo alemão, são de esquerda. Não haverá apenas aqui ingenuidade dos utilizadores das redes sociais. Bolsonaro, nomeadamente, também o afirmou, assim, levianamente, como leviano é tudo em si, desde a escrita às ideias. Não tardou a que meia dúzia de sujeitos com as mãos calejadas de tanto onanismo adoptassem os dislates do presidente brasileiro como dogmas de fé. A estes juntam-se os filósofos de redes sociais, os sociólogos de divã, enfim, hoje em dia cada um diz o que bem entende, e que bom que assim é, vivemos em liberdade. O lado mau é este péssimo revisionismo.
Desde logo, o grande pecado dos liberais é limitarem o conceito de direita ao domínio económico. Se defende o Estado mínimo, direita; se olha para a nação e para o seu engrandecimento, esquerda. Para Mussolini, o centro de tudo era a nação, e nada podia atentar contra ela. Já Hitler, por sua vez, opunha-se a programas políticos, quando Mussolini já havia entendido que precisava de uma doutrina.
O nacional-socialismo e o fascismo são um produto da guerra, da I Guerra Mundial. Foram uma reacção imediata à derrota e à destruição. O fascismo e o nacional-socialismo são, em suma, um nacionalismo de vencidos e de humilhados, reaccionário. Surgiram em meio da carência, do desemprego e da angústia. Opunham-se ao liberalismo e às promessas de modernização e desenvolvimento. O liberalismo e a quebra de regras quanto aos grandes interesses económicos apenas conduz à ruína. O nacional-socialismo surge, assim, como uma nova leitura do socialismo, é certo, porém profundamente anti-marxista, e é aqui que surgem as confusões: não se admite que possa haver um socialismo não-marxista, por um lado, e, pelo outro, restringe-se a direita apenas ao maior ou menor intervencionismo estatal na economia.
Goebbels rejeitou peremptoriamente qualquer luta de classes. Pelo contrário, pretendia que elas se unissem sob a égide de uma grande comunidade nacional. Goebbels não acordou inspirado, certo dia. Esta sua concepção do nacional-socialismo e das suas bases dogmáticas vem na esteira de autores como Fichte, List, Rodbertus, Lassale, Dühring e ainda dos grandes doutrinadores da revolução alemã, Oswald Spengler e Arthur Moeller Van den Bruck. Spengler foi essencial na construção do nacional-socialismo alemão. Em Preussentum Sozialismus, Spengler disserta sobre o papel a atribuir à Alemanha: impedir que as raças não europeias perigassem a cultura do Velho Continente. Urgia, nesse sentido, expurgar o marxismo do socialismo, que conduzia ao internacionalismo e à luta de classes. Pelo contrário, e imbuído na tradição prussiana, deveria adoptar uma concepção de autoridade e disciplina. Van den Bruck, em Das Dritte Reich, defendeu que o socialismo existia em cada povo, e que Marx, uma vez que era judeu, não compreendia o sentimento nacional, e que luta de classes deveria ser substituída por uma ideia de solidariedade nacional.
Para Mussolini, o fascismo era uma filosofia de certo modo espiritualista. E, tal como sucedeu com os teóricos do nacional-socialismo, também ele condenava a luta de classes. Ia mais longe: postulava que o fascismo se opunha ao socialismo. Para o carismático duce, o socialismo rejeitava a unidade do Estado e sobrevalorizava a luta de classes. Claro que esta pretensão de restaurar o « verdadeiro socialismo » não mais era do que farsa. Ambos os movimentos mantiveram as oligarquias intactas, bem assim como o grande capital. Maurice Duverger apelidou mesmo o fascismo e o nacional-socialismo de "ditaduras conservadoras", pela base social que os apoiava, composta por terratenentes e os grandes industriais do Rur e da Lombardia.
Seria falso desconsiderar-se que ambos os movimentos atraíram sobretudo as classes médias industriais e mercantis, amedrontadas com o desenvolvimento tecnológico e a proletarização. Também elas eram as principais vítimas das crises e das guerras. Em todo o caso, não é certo concluir-se que o fascismo era um movimento composto pela classe média. Ainda que os quadros especializados sejam oriundos dela, também entre os operários se encontravam simpatizantes. O fascismo não foi apenas, ou não foi, de resto, um movimento da pequena burguesia. Houve, sim, participação popular. Pelo que podemos observar, dos mais ricos ou mais carenciados, foram movimentos aglutinadores.
Robert Brasillach, que viria a ser executado pela sua proximidade ideológica sobretudo ao nazismo, chegou a afirmar que o fascismo era "a poesia do século XX". Com efeito, o fascismo era um movimento das massas, dos aglomerados, dos cânticos. Era uma amizade, um «fascismo universal da juventude». Era ainda uma poesia da disciplina e da ordem. Uma poesia do corpo, quase recuperando os ideais de beleza clássicos. Da vida ao ar livre, do desporto, da virilidade, do corpo sadio. O homem tinha de se afirmar como capaz concorrente à modernização e à maquinaria. Por fim, era uma poesia da guerra, da revolução. A guerra permitiria um reconciliação universal, da qual resultaria uma "fraternidade dos combatentes ».
Tal como com o cultuar do corpo, o fascismo, por ser um movimento do espectáculo, da encenação, da teatralidade, vive de um grande líder carismático, que se afirme e que seja capaz de galvanizar as massas. Hitler era um mestre da oratória. Soube, aliás, como ninguém, subjugar o romantismo alemão a uma ideologia, a um programa. Nesse sentido, estabeleceu-se uma ligação nunca antes vista pelo chefe e o povo. E é uma ligação tão forte, tão intensa, que roça o histerismo e o êxtase colectivo. O chefe representa a alma do povo, reúne os elementos que lhe são comuns. Em todo o caso, o Führer deveria ser quase omnipresente; alimentar uma aura de mistério sobre si. Surgir nos momentos decisivos. Ser curto e conciso. Imponente. Há, aqui, quase uma comparação ao Criador.
Para o nacional-socialismo e o fascismo, não havia qualquer ideia de igualdade. Como Hitler viria a proferir, num discurso, « só interessa acreditar, obedecer e combater ». Mussolini, em 1922, exaltaria a nação: « Nós criámos o nosso mito. O nosso mito é a nação, a grandeza da nação. » Estavam criadas as condições para, aliada a oratória ao chefe que tudo sabe e vê, surgir o mito, numa concepção quase soreliana. Hitler e Mussolini rejeitavam a igualdade - o que os afasta da esquerda definitivamente. Rejeitavam, ainda, a democracia igualitária ou o sufrágio universal. Ambos eram profunda e visceralmente contra qualquer ideia de democracia representativa, e não raras vezes, nos seus discursos, zombavam da ideia de se eleger alguém de valor pelo sufrágio.
Mussolini e Hitler ainda partilhavam concepções muito particulares sobre o papel a desempenhar pelos predestinados. Ocupou-lhes algum tempo. Ambos rejeitavam os fracos. No caso de Hitler, com desenvolvimentos particularmente dramáticos, como sabemos. Mussolini, mais comedido, fazia pender sobre os governantes o destino da sua cara nação. É o culto da irracionalidade e do utilitarismo.
O papel que o Estado desempenhou para os dois governantes é que tem suscitado grande controvérsia, sobretudo por parte de quem vê no Estado a única característica que nos atribui o rótulo da esquerda ou da direita - e houve quem julgasse que a dicotomia estava morta! Viva, tão viva.
Para o fascismo, o Estado era tudo, que tinha um primado absoluto. O indivíduo não existe fora do Estado e é um meio ao serviço deste. O Estado é totalitário e avesso à separação de poderes. É uno, é um todo. Mussolini, em 1925, definiu claramente o que Estado era para si e para o fascismo naquela que é, talvez, a sua fórmula mais intemporal: « Tudo no Estado, nada fora do Estado ».
Ambos, quer Hitler, quer Mussolini, subordinaram o domínio económico à política e aos interesses do Estado. Hitler chegou a afirmar que a economia era um assunto de somenos importância. Para si, o Estado não era uma "organização económica", mas sim "racial".
Marcel Prélot definiu bem o regime de Mussolini: uma estatocracia, ou seja, uma mistura de monocracia e autocracia. Mussolini levou a exaltação do Estado a um paralelo nunca antes visto. Mussolini quase que antropomorfiza o Estado, como se de um ser pensante se tratasse: o Estado, para o Duce, "é a consciência imanente da nação", nas palavras de Prélot. É um facto espiritual e ainda moral. Um Estado ético. E no confronto entre o Estado e a Nação, Mussolini parecia rejeitar que a última originasse o Estado, senão o contrário, desde uma óptica anti-naturalista. É o Estado que leva o primado sobre a nação. E é o Estado, nesta linha de entendimento, que consciencializa o povo da sua unidade moral e, consequentemente, de uma existência plena.
A concepção hitleriana era díspar. Para Hitler, o Estado era um mecanismo. A essência estava no povo. Povo esse que abrangia uma realidade histórica e étnica - muito importante - que ia muito além do século XX. Embora tardiamente reunificados, a Alemanha de Hitler era uma entidade que, graças ao labor dos filósofos e historiadores alemães, bem assim como pela força das suas tradições, dispunha de uma coerência social que Mussolini se viu, em certa medida, obrigado a forjar.
O corporativismo e racismo foram outras das características primordiais do fascismo e do nacional-socialismo alemão. A primeira, do fascismo. As corporações, várias, estavam ao serviço do Estado italiano. No fundo, foi uma engenhosa forma de Mussolini pôr em prática a sujeição da economia ao Estado. Já no que respeita ao racismo, Hitler não foi precursor. Antecederam-lhe outros, como Gobineau (este último com uma ligação notável ao Brasil), Vacher de Lapouge ou Chamberlain, mas foi em Mein Kampf que o racialismo encontrou maior expressão, sobretudo no capítulo XI da obra que há relativamente pouco tempo (dois anos) entrou em domínio público. E foi talvez aqui que Hitler e Mussolini mais divergiram. O fascismo estava ligado a uma ideia de imperialismo sobre outros territórios, numa perspectiva de grandeza do Estado; já o nacional-socialismo, entretanto, pugnava pelo mesmo, mas sob a égide de uma raça e de um povo superiores. O darwinismo ao serviço de interesses duvidosos. O Espaço Vital. A GrossDeutschland, que não se deve confundir com o pangermanismo alemão do século XIX, surgido numa era de concorrência entre os mercados. O dito pangermanismo hitleriano era bem mais político do que económico. Em 1932, Hitler deixaria evidente que é através do Estado que a Alemanha se expandiria. Um vez mais, como referido acima, o nacional-socialismo era místico, militar e político. Hitler assumia que todo o alemão podia fazer parte do Terceiro Reich, contanto que a ele pertencesse. Importa o número sobre a riqueza. O poder sobre tudo.
Deixaria de parte o franquismo e o salazarismo, que não importam explorar aqui dado que, embora partilhassem elementos comuns com o fascismo, não foram fascismos. Parece indiscutível para a historiografia mais imparcial e esclarecida.
Observando tudo o que foi explanado, e retomando, anos depois, as grandes análises políticas, em suma constatamos que o fascismo e o nacional-socialismo foram tudo menos movimentos de esquerda. Pelo contrário. Opunham-se à ideia de igualdade. À luta de classes. Engrandeceram o Estado que para Marx seria abolido, na última fase do comunismo. Eram nacionalistas. Profundamente anti-marxistas. Capitalistas, favorecendo os grandes interesses. E se podemos vislumbrar, na sua génese, pretensões de se restaurar o verdadeiro socialismo, foram, na verdade, uma extrema-direita no aspecto ideológico e dogmático, oposto ao liberalismo.