3 de outubro de 2019

Can You Ever Forgive Me?


   «A minha gata foi a única alma que me amou. Talvez desde sempre.»

  Em primeiríssimo lugar, não se compreende como é que um filme tão bom não tenha estreado em Portugal. Baseado numa história verídica, Can You Ever Forgive Me? fala-nos de uma biógrafa de famosos que já nada vende, Lee Israel, e que se apercebe do seu verdadeiro talento literário ao acrescentar post scripta a cartas de famosos, tornando-as raras pelo seu conteúdo íntimo. Com a ajuda do amigo Jack Hock - "igual a cock" - vende-as a coleccionadores.

    A longa é ambientada em 1991, e é do mais envolvente que há, desde logo por nos mostrar uma Nova Iorque clássica que ainda se permitia a sonhar, longe da paranóia e da deriva securitária que a dominariam no início deste século. Lee Israel é o espelho da decadência. Lésbica, viciada em álcool, é uma intelectual em fim de carreira que "gosta mais dos gatos do que de pessoas". Damos conta de uma tendência para a trafulhice desde cedo, quando a vemos apropriar-se de um casaco que não era seu, o que não terá feito por desespero - como as falsificações, para poder pagar as suas contas. Na verdade, Israel já pouco se importava com o politicamente correcto, com as convenções sociais. Há muito que o descaso e a indiferença haviam entrado na sua vida, solitária vida, dividindo um apartamento sujo com uma velha gata de 12 anos, doente. Jack Hock, a outra personagem, é um velho dandy, sombra do que fora, algo entre um descendente de uma nobreza inglesa e uma bicha promíscua. Em termos de escrúpulos, tem tantos ou menos, mas o encanto destas duas personagens, maravilhosamente interpretadas por Melissa McCarthy e Richard E. Grant, que estiveram, inclusive, nomeados para os Oscars deste ano - faz com que sintamos pura afeição. Conheceram-se num bar "de esquina" e a amizade surgiu da profunda solidão que os atravessava. A forma de com ela lidar é que era diferente: Lee tornara-se quase uma reclusa de si própria, aborrecida consigo e revoltada com o mundo, ao passo que Jack dormira com "Manhattan inteira". A cena final de ambos, quando se vê Jack no último estágio de HIV/SIDA, é particularmente comovente, e um banho de talento daqueles dois actores.




   A narrativa foi bem construída e os diálogos são inteligentes, sólidos e convincentes. Não estamos perante um drama no sentido estrito da palavra, mas de um drama com laivos cómicos. É que a actividade daqueles dois se torna hilariante em alguns momentos. Longe de serem dois criminosos, são duas pessoas que se movimentam para sobreviver, claro que recorrendo a esquemas sórdidos e reprováveis. A intenção da realização e da produção foi a de nos fazer simpatizar com Lee Israel e Jack Hock, e conseguiram-no. O tom jazz, que se alia à magnitude de uma Nova Iorque fria e elegante, tornam este filme num dos melhores a que pude assistir nos tempos recentes. Woody Allen ficaria orgulhoso.

    De realçar a subtileza com que a homossexualidade feminina foi tratada, sempre com uma enorme discrição e até saudável ingenuidade.

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