31 de agosto de 2012

Matriculas tu, matriculo eu, matriculamos nós.


   Depois de vários problemas informáticos, começou a saga das matrículas para o próximo ano lectivo. Fiquei surpreendido e incomodado. Nunca acreditei em astrologia, apesar de me identificar com mais de metade das características que apontam ao meu signo astrológico. Talvez por isso, sofro ao deparar-me com uma situação nova; o comodismo faz parte de mim, ganhando, até, uma estima pelo contínuo difícil de esquecer. Foi essa a reacção ao deparar-me com a nova secretaria virtual da minha faculdade.

   A surpresa viria com o fôlego a modernidade que por lá se respira. A madeira das velhas carteiras ainda clama pelo retorno de Oliveira Salazar; os professores lançam comentários e observações maliciosas e inquisitórias sobre colegas; a qualquer altura, arriscaria dizer que a probabilidade de um membro renascido da polícia política entrar por entre os anfiteatros mantinha-se elevada. Os novos sítios informáticos são aroma de orquídeas por entre ervas daninhas crescentes. A velha bibliotecária, que olha para um mouse como um colonizador para um indígena no Novo Mundo, palpita sobre passos a dar, dados a preencher e disciplinas a inscrever. Os seus dedos e o seu cérebro, mal acostumados, tiveram de sucumbir diante da modernidade. Uma colega fez-me o favor de relatar a saga maldita.

   Qual herói destemido, escondendo o medo na gaveta da escrivaninha, lancei-me no desafio da inscrição virtual. O manual de instruções, atempadamente publicado, foi o formato PDF que mais detestei nos últimos tempos. Ironia do destino, uma faculdade da I República necessitar de um manual de instruções (!) para a realização das matrículas.

   "Se bloqueares, desata a clicar em tudo o que é link!"

   Sábias palavras. Depois de muita insistência (ou persistência), consegui. Imprimi o recibo e terminei a inscrição. 
   Senti-me um autómato e tive medo de, pela primeira vez, ser invadido no meu quarto por seres alienígenas diferentes do E.T. Os seus corpos seriam computadores da década de 80, as suas cabeças o monitor, as suas orelhas as colunas arcaicas e os seus membros posteriores mouses de dois metros de extenso fio branco. Um modelo Compaq.
   
   Com sorte, encontro um modelo semelhante na minha faculdade.

27 de agosto de 2012

A Lua acordou mais cedo.


   Em pequeno achava que podia atingir a Lua com uma pedra. As suas áreas disformes, gigantescas, seriam o resultado de meninos grandes e maus, tão diferentes de mim, que impulsionando as suas mãos com determinação e coragem, lançariam enormes pedregulhos ao único satélite natural da Terra. Por esse motivo, não raras vezes imaginava que seria possível alcançá-la com uma viagem simples e rápida, afinal, estava tão perto e brilhante. Assemelhava-se a um enorme disco reluzente colado no firmamento. Para mim tinha luz própria, provavelmente onde seres lunáticos dariam enormes e brilhantes festas sob o clarão amarelado que iluminaria o seu solo.

   Quando me falaram da influência da Lua nas marés terrestres, fiquei surpreendido e confuso. Sairia a Lua de noite, sorrateiramente, puxando os mares para trás ou, também, devolvendo-os para o areal? Era, então, a Lua a responsável pelo recuo das águas e, por isso, pelo aparecimento repentino das rochas e dos mexilhões que, habitualmente, estavam cobertos. Era ela a culpada por, negligenciando os avisos da mãe, dirigir-me para as rochas, cortando a planta do pé nas conchas afiadas e delgadas dos pequenos moluscos.

   Mais tarde aprendi que não seria tão fácil visitá-la como pensara. Para além de, necessariamente, se ter conhecimentos para tal, além de alguma robustez física, era impossível atingi-la com pedras ou rochas, conhecê-la numa breve curta viagem ou poder correr por aquilo que julgava ser grandes buracos. Não estava distante da realidade, mas quiseram os astrónomos chamá-los de crateras. Estragaram-me os planos.

   Ontem, olhando para o céu, dei com a Lua antes das dezanove horas. Parecia um objecto de tamanho e contornos indecifráveis, transparente. Riu-se de mim pela ideia que fizera dela há uns bons anos.

   O encanto do primeiro homem que a pisou, recentemente falecido, não divergiria muito dos sonhos de uma criança de tenra idade.

23 de agosto de 2012

Porque faz sentido recordá-los.


   Durante muito tempo, os últimos dias de Agosto desapareciam do calendário no lado paterno da minha família. Uma apatia reinava, misturada num desconforto latente que era visível nos rostos do pai, dos avós, dos tios e de todos os membros que, pela idade e pela consciência da perda, não conseguiam disfarçar o incómodo.

   A bisavó, verdadeira matriarca, partiu nos finais de Agosto do longínquo ano de 1997, era eu uma criança pequena. Porém, é fácil recordar-me do seu afecto quando sentia que eu estava com as vias respiratórias inflamadas, perguntando à mãe se já telefonara ao pediatra; das suas carícias no meu cabelo quando, por algum motivo, deixava de lado a bicicleta das duas rodinhas pequeninas de lado depois de percorrer os trilhos do jardim da avó de um lado para o outro; de quando, no meio de uma terrível tormenta de chuva e vento, afastou o medo com os seus braços envelhecidos, pegando-me na pequenina mão com a sua mão cansada e enrugada. 
   Da sua morte, pouco ou nada resta na minha memória. Um dia de calor, uma tarde entediante, a mãe que recebe uma chamada e que depois pede a uma amiga que me leve para a sua casa. A tenra idade não me permitiu qualquer sofrimento. Lamento não ter chorado a sua partida, pois hoje sei que, acima de tudo, era uma pessoa extraordinariamente dócil e bondosa.

   Em 1999, a dois dias de se completarem os dois anos sobre a morte da bisavó, o pai recebe uma chamada no telemóvel. Alguém (que mais tarde vim a saber tratar-se da sua primeira esposa) dá-lhe uma terrível notícia, algo para o qual nenhum progenitor se sente preparado. Um choro repentino assustou-me. A mãe prontamente pediu que fosse para o quarto, mas, manifestando o desrespeito típico de crianças, fiquei a espreitá-los de longe, movido pela curiosidade. O pai chorava copiosamente. Falecera o seu filho mais velho, meu meio-irmão, pouco depois de completar vinte e nove anos.
  Vi-o poucas vezes. Duas ou três, salvo erro. Guardo algumas imagens dos parcos momentos que passámos juntos: lembro-me de um afago no meu cabelo, de um sorriso numa festa, da sua altura e nada mais. Umas sombras, pouco nítidas, é tudo o que resta.
   Não chegou sequer a entrar na casa dos trinta. Ficou por perto. Esse terá sido um dos motivos que levou à perplexidade dos familiares que lhe eram mais chegados. Deveria ser proibido sujeitar um pai ou uma mãe à morte de um filho. Dizem que é a maior das dores - concluo pela veracidade dessas afirmações.

  
   Na altura da morte de ambos, a mãe não deixou que fosse aos respectivos funerais. Compreendo, aceito e até agradeço as suas sensatas decisões. Sempre fui demasiado impressionável para estar à altura de ver tanta dor e sofrimento. Redimi-me mais tarde, em jovem adulto, com visitas ao jazigo de família. Para alguns não fará sentido; para mim fez bastante. Como se me deslocando, despendendo algum tempo, significasse uma merecida homenagem. Era como algo que desse por eles. Sentia-me bem ao fazê-lo.

   Com o tempo, apercebi-me de que o melhor que podia fazer seria lembrar-me deles, não necessariamente da ocasião das suas mortes.
   Lembrar-me, tão somente, de que existiram. 

20 de agosto de 2012

Fuga permanente.


  O quotidiano tem um efeito devastador em mim. As horas ganham um peso extraordinário, sentindo cada minuto a passar no relógio. Em casa da avó, onde ainda reside um velho habitante de pêndulo, relíquia de gerações anteriores, somos assombrados à passagem do tempo.

  Comecei, então, a pensar na faculdade com carinho. Creio que é devido ao facto de estar a meio de concluir a licenciatura. Apercebo-me da seriedade do que faço, uma vez que, quase sempre, ajo mais por instinto do que por premeditação, não deixando, contudo, de decidir conscientemente acerca dos momentos mais importantes da minha vida.

  Dizem que o terceiro ano é a trave-mestra do curso. Que nele se encontram as disciplinas mais difíceis, as matérias mais densas. Que exige mais estudo, uma maior atenção e dedicação. Parecia-me tão longe, distante, mas afinal está a menos de um mês de se concretizar. Algum temor que existisse deu lugar à expectativa, à vontade de recomeçar. Devo ser dos poucos que não começa a olhar para o calendário com um ar de desilusão, rogando-lhe maldições infinitas por já ser perceptível um odor a Setembro.
 Terei crescido mais um pouco. As férias, provavelmente, perderam a réstia de infância ou de sonho que ainda teriam.

  Aguardo pela compra do material. Quero uma pasta igual à de uma colega. A pasta dela, em tons verde-claro e de plástico, armazenava-lhe as folhas das aulas na perfeição, poupando-lhe infinitas dores de cabeça e horas de exaustivo trabalho. Nada que não fizesse com o meu dossier laranja, embora evite estragar as argolinhas das folhas, para além de evitar o embaraço de ver algo que tanto estimei convertido num objecto velho e usado, de capa sulcada pelos aros do arquivador metálico.

  Penso em aulas, estando de férias. 
  Indubitavelmente, são as primeiras férias de adulto que vivo.

14 de agosto de 2012

A spanish friend.


 Parecia que caminhava sobre brasas, sentindo a pele a latejar na areia. A terrível mania que tenho de me descalçar mal entre na praia. De pequenos em pequenos pulos, aproximei-me, por fim, do lugar onde ficaríamos.

 Molhei os pés na água fria do Atlântico. Adiei imediatamente a busca por tesouros perdidos; a temperatura não estava absolutamente nada convidativa. Reparei na limpidez da água, quando pude observar a areia sem pedras no fundo, agitando-se apenas um pequeno peixe que rapidamente se desviou de mim. Vi que estava numa baía, entre dois paredões que se circunscreviam sobre a porção de água que mais se assemelhava a um pequeno mar. Os barcos, pequenos e pouco velozes, deslocavam-se da esquerda para a direita e vice-versa, por vezes saindo da baía. Perguntei-me para onde iriam.

 Os avisos feitos à mãe aquando da nossa chegada revelaram-se infundados. Uma primeira impressão, atenta, levou-me a gostar do lugar e da praia, calma e semi-deserta, como gosto. O ambiente algo familiar tranquilizou-me.
 Ouvia-se castelhano à distância, por entre algum alemão e francês. Nas ruas, provavelmente mais solitárias pela crise, alguns turistas desafiam os revés da economia europeia, destacando-se os turistas espanhóis, cuja alegria e a boa disposição, típicas, contrastam com o manto negro, xaile de misérias, do lado de cá da fronteira. Passam mulheres de meia idade, de sacos na mão, cambaleando entre as pernas inchadas, queixando-se da vida num sotaque imperceptível aos ouvidos não acostumados, num dialecto que identifiquei como sendo uma mescla de alentejano e algarvio.

 tac... tac... (...) tac... tac... (...) tac... tac... (...) tac... tac... (...) tac... tac... (...) tac... tac... (...)

 O som de uma bola, que supus de ténis, levou-me a abrir os olhos. Por momentos esqueci-me de que não estava deitado, em casa. Síndrome de desabituação a viagens longas de carro. Um rapaz, quase esquelético, de cabelo aparado nos lados e mais comprido à frente, caído sobre o lado direito da sua cabeça, jogava com uma mulher da nossa idade, provavelmente, ruiva, que pressupus sua namorada. Todavia, um olhar mais atento revelou uma relação familiar, quiçá de irmãos. Turistas espanhóis.
 Por cima da minha cabeça passava o fumo do cigarro da mãe, denotando a ausência de vento. Falava ao telemóvel com um empresário qualquer, justificando os seus dias de férias como se de um capricho se tratasse. Dei especial atenção ao som da bola de ténis cor-de-rosa, de forma a abafar a voz da mãe e as suas lamúrias.

 Desta vez fiz poucas cerimónias e molhei o corpo até à cabeça. O rapaz espanhol decidiu entrar na água na mesma altura, mergulhando destemidamente (algo que nunca consegui fazer, nem nos anos em que tive natação por imposição do pediatra). Ao emergir, sacudiu a cabeça e olhou para mim. O seu cabelo ficara  engraçado, colado à cabeça esguia. Parecia mais desordenado do que o meu, mesmo tendo-o mais comprido. Virei costas e continuei a nadar em direcção oposta.
 Vi que continuava atento à minha presença, aproximando-se subtilmente. Murmurou umas palavras quaisquer, às quais acedi com um sorriso contemplativo e aí começámos a falar, em português e castelhano, despacito, de forma a nos entendermos. Soube que, habitualmente, vem a Portugal nas férias, é quase da minha idade, não aprendeu nada da língua portuguesa por preguiça e lamenta as águas frias da nossa costa atlântica.

 Diariamente, o ritual repetia-se. Chegava mais cedo à praia e, algum tempo depois, chegava ele e a sua família. Trocávamos acenos, chegámos a jogar ténis de praia (sendo que fiz má figura).

 Três dias bastaram para que me desse o seu email, que prontamente aceitei, tentando-o escrever na perna molhada com a ponta do dedo indicador. A pele absorveu cada letra soletrada. Não houve outro remédio que não memorizá-lo no telemóvel.
 O meu último pensamento, ao regressar, viajou até aos rochedos, na praia, onde, sem saber o porquê, fui por momentos feliz.

11 de agosto de 2012

Litoral.


 Ritual da praxe: verificar o estado do tempo para os próximos dias. Cumprido. Assim que vi os sóis debaixo dos dias correspondentes, senti uma pontinha de alegria mal dissimulada. Sou demasiado transparente para a alegria ou a desilusão.

 Levo sempre mais roupa do que a necessária. Aprendi com a mãe. Receio sujar-me a comer um gelado, ou ao deixar cair um pedaço de comida enquanto uma gargalhada repentina me é roubada com uma piada qualquer.
 Na auto-estrada tento contar os sobreiros que vejo pelo vidro. Chego à conclusão de que são centenas e que se afastam de mim, não tendo a percepção (ou não querendo) de que, de facto, sou eu que me afasto deles. A mãe olha pelo espelho retrovisor e ri. Encosto o joelho à porta do carro e fico estático a olhar a paisagem alentejana, ignorando por completo a música que ouvia pelos headphones. Ouviria mesmo? A potência do carro não conseguia acompanhar a velocidade dos meus pensamentos, que a esta altura se fixavam no destino. A roupa contraía-me os músculos e aumentava o calor que subia pelo meu corpo. A adrenalina de um destino imprevisto e novo aguçava as minhas expectativas. O facto de estar com a mãe, os dois, nuns dias de ameno convívio sem preocupações, muito era do meu agrado.

 "Onde está o mar? Já vês o mar?"

 A mãe fingia não ouvir as minhas perguntas. Saíam-me sem que pensasse. Difícil seria se ela o visse e eu não. Abri o vidro da janela para sentir alguma maresia. Nada. Tentei alcançar o máximo que os meus olhos podiam suportar e comecei a vislumbrar uma ténue linha azul, distante. Era, efectivamente, o mar.
 Chegámos ao hotel e agora a tarefa de me manter quieto revelava-se complicada de cumprir. Contive os ânimos e esperei pelo dia seguinte.
 Qual o motivo de tanta pressa? 
 Nos próximos dias o mar seria meu, para inveja dos barcos de pesca que atraíam as gaivotas para terra.

1 de agosto de 2012

Olimpíadas.


 A sobremesa estava enjoativa. Não sei se dos fios de ovos que afastava com o garfo ou se dos pedaços de noz que não conseguia digerir, a verdade é que a fatia de bolo depressa se desmoronou com o terramoto que infligi no pobre prato. A avó franzia os olhos à minha indiferença pela deliciosa iguaria, sabendo, contudo, que nunca fui chegado a doces. Bom, pelo menos não a doces que consigam afastar-me do semblante sisudo que jurei manter durante todo o dia. Digamos que não quis esboçar qualquer sorriso de satisfação e, com certeza, não o teria conseguido evitar.

 Na televisão passava a prova de judo, seguida de variadas provas às quais prestei alguma atenção, influenciado pelo ambiente monótono que se vivia num espaço que, apesar de amplo, ainda espelhava a correria dos empregados durante a enchente da hora de almoço.
 Fiquei impressionado pela fugacidade da esperança e da crença numa vitória. Em poucos minutos caem sonhos mantidos e alimentados durante anos, sustentados com carinho, trabalho e dedicação. Um esforço que se torna inglório. Os contrastes do choro criaram uma linha invisível que entrou pelas minhas órbitas, atravessando as minhas córneas, deixando impressas na retina imagens que me mantiveram a atenção. Para o atleta judoca cubano que acabara de perder, nem uma salva de prata consolaria aquele pesar. Meio como o bolo que desfizera minutos antes, quando o último troço de noz foi triturado pela colher de sobremesa.