29 de julho de 2022

Diesel (2014?-2022).


   Sendo sincero, já me custa estar sempre a escrever desgraças, mas que poderei fazer eu? Creio que me lançaram um mau olhado, ou algo do género. Não sou dado a acreditar neste tipo de coisas (inclusive considero-me agnóstico), mas por vezes deparo-me com determinadas circunstâncias, pessoais e nos outros, que me levam a considerar a existência de más energias, pelo menos. Não sei se isso implicará deuses.

  Fazendo-o quase em jeito de relatório, depois do meu padrasto (05/03), da minha mãe (10/03), da minha avó paterna (03/07), da minha tartaruga (11/07), na sexta-feira passada morreu-me o Diesel, o meu cãozinho, que adoptara há dois anos, pouco tempo depois de vir viver para Espanha. Na quarta-feira estava perfeito. Na quinta de manhã, tive de ir a Vigo tratar duns assuntos no vice-consulado de Portugal, e despedi-me dele. O meu marido levou-o a passear antes de ir para o consultório e logo me disse que o Diesel vomitara. Bem, não fiquei preocupado. O Diesel vomitara várias vezes antes, era-lhe comum, até depois de comer ervas, que lhes servem como purga. À noite, tarde, quando chegámos, tínhamos tudo vomitado, e decidimos esperar pelo dia seguinte para levá-lo ao veterinário. Morreu de manhã, pelas 10h, no corredor. Diz quem conhece mais do assunto que eu (o meu marido e o veterinário) que provavelmente morreu envenenado. Se de forma intencional ou não, não se sabe. Levantaram-se-me mil e uma dúvidas, inúteis, porque não há nada a fazer quando nos deparamos com estas situações.

   Reajo quase de forma apática a estas últimas mortes. Racionalmente, tartarugas e cães há muitos, e da minha avó nem gostava particularmente. O que esta sucessão de mortes vem fazer é agudizar-me a dor pela morte da minha mãe, e questionar-me sobre o porquê, o porquê disto tudo, destas mortes que se somam sem parar num espaço temporal tão curto.

14 de julho de 2022

In memoriam.


   Hoje, ao vasculhar o meu e-mail lá por 2014/2015, dei com umas fotos antigas de que nem tinha conhecimento. Duas fotos onde surjo com o meu amigo Miguel Botelho, um dos bloggers mais antigos, falecido em 2019 após vários anos, muitos mesmo, de uma luta inglória contra um tumor agressivo. O Miguel relatava no seu blogue, que poderão encontrar aqui (um voo cego a nada), todos os processos médico-cirúrgicos por que passou ao longo do tempo, e foram muitos, que lhe provocaram um enorme sofrimento, sem que porém se resignasse. O Miguel enfrentou o cancro sempre com a mesma tenacidade e coragem. A sua morte, entretanto, assim espero, trouxe-lhe finalmente a paz que não pôde encontrar em vida.

   Estive com o Miguel algumas vezes, e recordo-me que, aquando da notícia do seu falecimento, me lastimei por não ter, presumia eu, uma foto consigo, onde constássemos os dois. Encontrei hoje, misteriosamente, uma, neste ano horrível. Ali estamos nós, no jardim Amália Rodrigues, perto do Parque Eduardo VII, numa cálida tarde de Verão. Depois, fomos almoçar numa das transversais à António Augusto de Aguiar. Não sei se terá sido a última vez que estivemos juntos. O que sei, sim, é que a doença já se manifestava de uma forma ostensiva, não lhe permitindo estar mais do que alguns minutos sem que tivesse que acudir de novo, uma e outra vez, à casa de banho. E todos nós, os que ali estávamos com ele, éramos testemunhas daquele sofrimento e incómodo, que o Miguel dissimulava com um sorriso, a sua simpatia e educação. É este o Miguel que recordo: um homem educado, culto, ávido devorador de livros, e discreto. Discreto nas relações pessoais, íntimas e menos íntimas.

    A descoberta da foto, chamemos-lhe assim, foi o mote para esta publicação. Deixo-a aqui, e faço-o porque sei que o Miguel não se importaria. Ele mesmo tem fotos suas no espaço que nos deixou como legado, por assim dizer.



    A propósito, e porque talvez algum de vocês saiba interceder junto seja de quem for, a minha tartaruga faleceu há três dias, depois de 27 anos e 7 meses comigo. A quarta morte do ano, uma mais que se vem somar ao rol de tragédias.

8 de julho de 2022

Annus Horribilis.


   A vida ensina-nos. Sempre o ouvimos vindo de pessoas mais velhas que nos precedem em anos e experiência, mas frequentemente só entendemos a dimensão desta lição quando passamos por determinados acontecimentos que nos provocam verdadeira dor. A partir daí, aprendemos a relativizar tudo o que antes colocávamos no epicentro das nossas preocupações. 

    A separação dos meus pais, em 2006, pareceu-me o fim do mundo. Tinha vinte anos. Nunca antes houvera passado por um período tão duro. Foi o desmoronar dos meus alicerces, da estrutura que me suportava mentalmente. Vi-me sozinho, com uma pessoa nova na minha vida, cuja existência não se deveu a uma decisão que tenha tomado. Vi-me, em suma, no meio de um caos total que os meus pais provocaram. Foi o culminar de anos de decisões erradas que me prejudicaram tanto... A custo, a muito custo, fui-me reerguendo, e (re)nasci mais forte, é certo. Aquele ano trouxe uma viragem decisiva, crucial, contudo, pelo sofrimento que me acarretou, ficou conhecido por mim como o meu annus horribilis. Sabia -é fácil deduzi-lo- que outros chegariam. Talvez não tão cedo. 

     Perdi a minha mãe. Creio que agora o consigo escrever. Como escrever sempre me foi mais natural do que falar, paradoxalmente, consegui dizê-lo antes de o conseguir escrever. Como se o escrevê-lo o tornasse num facto assumido, consolidado, irreversível. Cinco dias antes, não perdi, mas morreu o seu companheiro de dezasseis anos, o homem que demonizei por tanto tempo, apercebendo-me agora de que fora excessivo. Só nos damos conta da futilidade dos ódios quando as pessoas partem. Na debilidade dos outros vemos a nossa própria. Tudo se acaba tão rapidamente. E aquele homem que quis longe dos meus olhos, a quem desejei tudo do pior, foi-se. Não fomos amigos. Nem sequer nos respeitámos. Hoje, entretanto, vejo que algum bem me fez, que não lho reconheci, e que dou por mim a pensar nele todos os dias.

     Na sexta-feira santa, a minha avó paterna, a avó Maria, adoeceu. Adoeceu de um momento para o outro. Entre internamentos e exames, descobriu-se-lhe um cancro de pulmão. Morreu no dia 3 deste mês. 

     Este ano, num espaço temporal inferior a quatro meses, perdi duas das mulheres mais importantes: a mais importante de todas, a minha mãe, e a minha avó que, com a minha mãe e o meu pai, também me criou. Duas perdas dolorosas, abruptas, inesperadas. À sensação de estranheza, de abandono, dificilmente dou corpo. Em primeiro lugar, vem a evidência de nunca mais voltarmos a ver aquelas pessoas que sempre estiveram presentes, para o bem e para o mal. De seguida, a certeza de que já lá não estarão para nós se precisarmos. É um confronto com a nossa solidão, com o desamparo. E vêm as tentativas de remediar isto e aquilo, reunir este e aquele caco, resolver esta e aquela pendência, sempre com o fito, mais ou menos consciente, de procurar escapar à causa primária de tamanho desconforto.

    Daqui em diante, não sei o que irá suceder. Vivo um período de profundas transformações que se iniciou em 2020. Estes terramotos que me sucedem de tempos em tempos, que me provocam um medo tremendo, e que nunca sei como me deixarão.