31 de dezembro de 2014

Retrospectiva.


   Último dia do ano. As pessoas caminham apressadamente. A excitação é perceptível no ar. Renovam-se os votos de um "bom ano". A velhinha que saúda uma transeunte mais nova. As mãos, encarquilhadas do frio e adivinhando uma vida de árduo trabalho, seguram nas da jovem, ágil, plena de força, desejando-lhe "o melhor que há", descrendo o mesmo para si. É viúva, e os sonhos já lá vão.

    A camisa está-lhe claramente apertada. António não quer saber, chama-o o amigo, ao longe. Corre pela avenida com uma caixa de pastelaria, qual malabarista, de telemóvel em riste. Acerta com a mulher os últimos pormenores "do jantar".

"Não enchas os miúdos de bolos antes da hora d'almoço!"

    A moça estava à frente no multibanco, mas o cavalheiro de nariz empinado atravessa-se, indiferente à prioridade de quem está atrás. Há exaltação! A rapariga excede-se, manda-o "bugiar". O homem ajeita o cachecol, indignado. Ele, que é um senhor!, vai lá perder a sua compostura com uma moçoila de lábios ressequidos e de cabelo desalinhado...

    Espreito para dentro do estabelecimento e cumprimento a Dona Adelina. Sai detrás do balcão e vem dar-me um beijinho. Elogia-me. "Está tão crescido, e a barba fica-lhe tão bem, menino! Então, e já temos doutor?" Entre um café, curto, meias de leite e sandes de queijo que vai servindo aos clientes, pergunta-me pelos avós, pela mãe, pelo pai - já vos disse que ainda há quem pense, quase dez anos volvidos, que eles estão juntos?

    Saio. Tenho frio. São onze da manhã e palmilhei ruas e ruelas. Olho para o ano que finda sem saudade alguma. Como previra, foi mau, não tanto como outros que o antecedem, mas, ainda assim, mau. Junto as mãos à boca, em concha, e expiro o ar quente que trago nos pulmões. Esfrego-as. Esqueci-me das luvas em casa... Enfio-as nos bolsos e sigo.
       
     O ano que se aproxima não será melhor. Quanto a mim. A menos que surja algo inesperado e positivo. Não se confirmando esta última e irrealista hipótese, que seja um seguimento equilibrado deste do qual me despeço.
       Encontrar-nos-emos em dois mil e quinze. Até lá!

27 de dezembro de 2014

Dias de Dezembro.


   Passei o Natal tranquilamente, entre diálogos e alguns sorrisos, sinceros. Sendo três, nem por isso descurámos a ornamentação da mesa. A mãe teve o cuidado de comprar os doces habituais, que prontamente dispersámos pela sala de jantar.
     O meu irmão chegou perto da hora da consoada, já o aguardávamos com impaciência. Gosto de o ver. Admiro a sua agilidade de raciocínio, o sentido prático. Vinha com três grandes caixas na mão e dois sacos na outra. Fiquei tão alegre ao vê-lo entrar por aquela porta, despir o casaco, jogá-lo inconscientemente, abraçar-me e à mãe cheio de carinho. Pediu-me para que tirasse os dois embrulhos dos sacos e os colocasse na árvore.
     Como se aqui não tivesse morado, tece observações sobre isto e aquilo, tal um hóspede íntimo. Torna-se caricato e engraçado. A mãe fica sempre entusiasmada quando o vê. O regresso do seu menino. Um amor que transborda olhares, gestos. Relacionado com o seu pai. Há qualquer coisa mal resolvida com aquele relacionamento relâmpago que deu um fruto, o melhor do pomar da mãe, digo-o eu.


    Depois do jantar, polvo cozido com legumes, abrimos uma garrafa de licor e até fiz um brinde. Ao momento, não ao futuro. Os sonhos, esses, expiraram algures. Não retive na memória. Entretanto, comi dois
      À meia-noite, poucos minutos a mais contava o relógio, abrimos os presentes. Oito embrulhos. Dois da mãe e dois do meu irmão, e cada um deles recebeu dois presentes, um de cada. A mãe ofereceu-me um telemóvel novo, com aplicações que nunca tinha visto. Recebi um perfume, também. Do meu irmão recebi um livro com citações do Nietzsche, que a juntar ao que comprei perfaz dois livros para mim, e uma gravata. Prescindia de tudo aquilo apenas pela companhia, pelas horas tão reconfortantes. Senti-me protegido, de um modo que não sentia há muito. Eles estavam ali, éramos uma família.

        Ficou por cá. Deitei-me sobre a colcha da sua cama de solteiro, e falámos, falámos.
        A madrugada dormiu tarde.

24 de dezembro de 2014

Feliz Natal.


   O Natal é uma festividade cristã que se estendeu para além dos seus fiéis, conquistando pessoas de outros credos. Fica bem patente o carácter universal, estimulado pelo impacto das sociedades ocidentais por todo o mundo. Associado, inevitavelmente, à neve, ao frio, aos jantares à beira da lareira, aos filmes ternos cómico-românticos, às reuniões familiares, à doçaria característica, aos presentes, a dias de paz e de comunhão, há quem o passe com muito calor, no hemisfério sul, sem lareira. Quem o passe só, sem ter acesso aos doces e demais iguarias, aos presentes. A fazer a guerra. Nisto, como em tudo, sobressai as desigualdades. Será mais um dia do calendário, ou dois.


   É, seguramente, uma quadra bonita. Colorida, de cheiros e sabores, gargalhadas soltas. De partilhas. Algumas lágrimas. De recordar os que já não estão. De dar e receber, mais do que receber, por vezes, para alguns. Por tudo isso é Natal, com as imperfeições humanas cunhadas na celebração do nascimento do seu Messias.

      A todos, indiferentemente de onde ou como se encontrem, os votos de um feliz Natal.

22 de dezembro de 2014

Christmas.


    As aulas terminaram na sexta, não sem a entrega de um relatório a ser corrigido durante a época festiva. Já saí da faculdade tardíssimo, dado que estive a conversar com um professor. Descobri que a faculdade está sempre aberta, de noite, vinte e quatro sobre vinte e quatro horas, de portas fechadas para o exterior. Há professores que ficam lá dentro... Há quatro anos que lá estou e só agora o soube. Curioso.

    O Natal será com a mãe e o meu irmão. Apenas os três. À semelhança do ano passado, a mãe atendeu ao meu pedido de não nos juntarmos com qualquer outro familiar, a não ser a minha irmã, que por sua vez passará com a família do marido.
    Lá tive de lhes comprar uns presentes. Não que desgoste presentear os que me são mais próximos. Nada disso. Apenas pelo simples facto de querer, este ano, e pela primeiríssima vez, evitar centros comerciais.

     Passei pelo El Corte Inglés. Para o meu irmão, comprei um perfume. À mãe, um relógio. Ela gosta e tem imensos. Animou-me andar por lá, sentir a azáfama, a alegria das pessoas. Ouvir, inevitavelmente, as suas conversas nos elevadores, nos corredores. Muito embora me sentisse só. Por momentos, tinha setenta anos. Já não era jovem, agradável à vista, não suscitava qualquer reacção nos outros, preparando-me para uma consoada vazia. Recordava-me de amigos falecidos, alguns da blogosfera, e era tolhido por uma dor e uma solidão devastadoras. Parecia um pesadelo desperto. Tive de molhar o rosto e acalmar-me um pouco.

  Um livro é sempre um bom amigo. Nada queria comprar para mim. Entretanto, vi um livrito historiográfico, A Vida na Corte Portuguesa, de José Barata, que me interessou.
     O balcão dos embrulhos, este ano, ficou no piso térreo, por fora. Uma moça fez-me os embrulhos e reparou que não estava muito bem. Perguntou-me, num assomo de atrevimento/compaixão: "Que cara é essa?". Apenas consegui sorrir. Achei despropositado dizer algo. Não faria sentido.

      Lanchei no piso superior e depressa voltei para casa. Depositei os presentinhos aos pés da árvore.
      Será um Natal no recato do lar.

16 de dezembro de 2014

Os estilhaços da orfandade.


      A algum custo, armei a árvore de Natal. É grande, quase gigante, tem dois metros. Coloco-a, tão discreta como possível, a um canto da sala de estar. Bolinha ante bolinha, fui compondo-a sem entusiasmo. Ficou bonita. Não gosto de enfeites demasiado ostensivos, nem de árvores excessivamente ornamentadas. Este ano ficou em tons azuis e creme. Nada de cores quentes.

     Fi-lo sozinho. Há muito que se perdeu o espírito natalício. A mãe passa pouco tempo em casa. Tem dias que não vem. Sabe-me crescido, e sabe também que fico bem. A Ana está sempre por aqui. Ficar só por algumas noites tem sido perturbador. Ausências que me incomodam.
     Disse-lhe, há tempos, que devíamos mudar de casa. Esta é espaçosa demais e já não serve para o efeito. Talvez me sentisse mais aconchegado numa menor. Como sempre, ouviu-me entre leituras, sem me dar grande atenção. Nunca tem em consideração o que eu digo. Pensei em ir para a casa dos avós, mas isso provocaria algum alarme, um rol de perguntas.

    Ainda não sei onde estarei daqui a uma semana. Devo dizer que não me preocupa. Qualquer lugar, por mim, é bom. De preferência com poucas pessoas, recatado. Evito reuniões familiares, ainda que sabendo que o Natal, tendencialmente, é uma época de comunhão e harmonia. Muito desvirtuada do seu sentido primitivo, transformada que está em dias de consumismo desenfreado, em que se apela à solidariedade que não chega ao final do ano. Acredite-se ou não na palavra de Cristo, é provável que não apoiasse o circo criado em torno do seu nascimento (que, à partida, nem foi em Dezembro). Alimento a hipocrisia cristã, menos do que em anos anteriores, na linha do meu proto-ateísmo que tem vindo a acentuar-se nos últimos meses. Creio que consequência de um esvaziar de sonhos perante a constatação da solidão humana. Perante os deuses e perante os demais espécimes. Na senda de Hobbes, o Homem é mau. É o seu próprio lobo. Ataca sem piedade os que o rodeiam, e só não o faz com traços de crueldade sádica porque tem medo das consequências que advêm desse comportamento. Os que não o fazem. E se a religião e a cultura têm o dom de amenizar o instituto selvagem que jaz, latentemente, em nós, tanto melhor. Foi com o deus monoteísta que o Homem, enquanto ser criado à imagem e semelhança de Deus, passou a estar revestido dessa aura de respeito pela sua condição. Jesus pregou a igualdade, rejeitando o culto imperial. E por isso morreu. Por ser um profeta do amor, do desprendimento, da salvação que estava vedada até então. Bela e válida mensagem, seja como for.
      Assim a sigamos, na medida da nossa fraqueza.

11 de dezembro de 2014

Carta.


   Lisboa, aos onze de Dezembro de dois mil e catorze,

   A ti,

 
   Outro Natal se aproxima. Em todo o lugar me pedem sorrisos, os mesmos que forço para não ser questionado sobre o que me leva a não ter o optimismo e a sagacidade próprios da idade. E não preocuparia a mãe e a avó em vão, dado que nós sabemos o que sentimos e os nossos limites, mas os que nos amam não o sabem. Apoquentar quem mais me quer não consta dos meus planos para esta Consoada.

  Os estudos correm bem, felizmente. Estou quase de férias, depois de inúmeros relatórios e demais apresentações orais. Creio que venci a hesitação em falar, que demonstrei por variadíssimas vezes durante a licenciatura. Enriqueci as minhas capacidades de orador. Da vez inicial, o coração batia acelerado, a respiração era mais ofegante, as mãos estavam enregeladas. Para o fim, já o fazia razoavelmente descontraído e com o à-vontade exigível.

   Os dias não têm sido fáceis. Por fora, uma paz aparente; por dentro, estou aos gritos. Há dias, deixei cair a garrafa de água, a pasta, alguns livros e o estojo ao chão. Peguei em tudo aquilo de modo brusco, tremendo, sentindo a cólera no rosto, embora em silêncio, e só depois, olhando em redor, percebi que a minha reacção não fora normal. Desastres acontecem. Um rapaz com o qual troquei olhares, meses antes, observou-me movido por alguma compaixão, talvez desalento. Não soube interpretar o significado da sua expressão.

  Pondero nada comprar, inclusive para mim. Não há essa vontade, esse ânimo em encher-me de bens materiais que apenas abrandariam os ventos mais agrestes que sopram por aqui. Nenhum objecto traz conforto quando a instabilidade habita cá dentro. Alguns passeios têm surtido efeito. Por vezes, afastar-me, ainda que momentaneamente, tem sido benéfico. Munido de um caderninho, onde imprimo, a cunho, breves notas do que me rodeia, e ideias. Aguardo por uns dias de descanso físico.

    Não há pedidos a fazer, desejos a ver concretizados. Quem sabe possa depositar esta pequena cartinha aos pés da árvore, que ainda não viu, este ano, a luz do dia.

     Vai olhando pelos homens e, quando te distraíres, por mim.


lots of love,

Mark

6 de dezembro de 2014

Despojos.


    Outra manhã em branco. Vem-me à memória quando saltava para a cama dos pais e programávamos o dia de sábado, o que faríamos, com quem estaríamos. A que exposição me levariam. Em que restaurante almoçaríamos. Hoje, acordando, sou indiferente ao frio que sinto quando deixo que a aragem gélida irrompa pelo meu quarto, ainda que em finos trajes.
   Tomo o xarope. O corpo ressente-se da atmosfera desconfortável dos anfiteatros. Eventualmente, das aulas tardias.

    Cresci sabendo que necessitava de cuidados especiais. Uma cabeça humedecida pela chuva equivaleria a uma semana de remédios. Daí me protegerem; a mãe não consentir que saísse de casa sem os botões do casaco abotoados, sem calçado quente ou o café da manhã. Tampouco me deixava só, à porta, enquanto esperava pelo transporte do colégio.

     Deixo correr a água, à medida em que o vapor se adensa. E fraquejo. A páginas tantas, o som dos salpicos na banheira meio cheia acostuma o meu ouvido. No recorte da água, a silhueta dos meus sonhos, distorcida, comprimida pelas últimas gotas que se evadem da torneira mal fechada. Que se criam e anulam no infinito manto espesso dos minutos de um dia perdido.

2 de dezembro de 2014

Restauração.


      No primeiro de Dezembro, dia em que se assinala uma efeméride, o Dia Mundial de Luta Contra a SIDA, meritório e sem dúvida pertinente, ainda que em sociedades cada vez mais esclarecidas quanto ao VIH (ou HIV, como preferirem; adopto a norma lusófona), há um acontecimento histórico que teve lugar há alguns séculos e que teima em cair no esquecimento dos cidadãos (a política integracionista europeia não permite que se exaltem valores patrióticos, bem como a crise económica que levou à supressão do próprio feriado comemorativo). Refiro-me, claramente, à Restauração da Independência, que venho, desta feita, abordar.

      A conjura do º1 dia de Dezembro de 1640, não pensada ao acaso, milimetricamente teve lugar. Por volta das nove da manhã, um grupo de fidalgos, jovens, dirigiu-se ao Paço da Ribeira, o palácio real, e, conseguindo fintar a resistência montada por soldados castelhanos, irrompeu pelos salões, jogando Miguel de Vasconcelos, português, secretário de Estado, pela janela, e prendendo a duquesa de Mântua, Margarida de Saboia, representante do rei.
   O golpe de Estado visava, sobretudo, obter a plena independência do nosso reino, não obstante as promessas feitas pelo primeiro dos Habsburgos a reinar em Portugal, Filipe II de Espanha (I de Portugal), que, nas Cortes de Tomar em 1581, ao ser coroado, jurou respeitar as prerrogativas e peculiaridades deste pequeno reino da Europa ocidental. D. João IV seria aclamado Rei no mesmo dia pelos revoltosos, sendo proclamado posteriormente, dias depois.

    O descontentamento surgiu manifestamente a partir de 1612, já decorridas mais de três décadas de Monarquia Hispânica. A crise assentava na diminuição da população e na estagnação económica. A contestação política não foi logo tão evidente. Já em 1619, aquando da visita de Filipe II (III de Espanha), sempre adiada por se temer algum atentado contra a vida do monarca, as Cortes manifestavam insatisfação quanto à administração castelhana e à quebra dos compromissos firmados em 1581, nomeadamente a nomeação exclusiva de portugueses para os cargos do reino e ainda os benefícios da Igreja. Rapidamente os protestos desceram às ruas, com o povo queixando-se de carestia de pão e fomes. Em 1621, eclodiu o primeiro motim, em Barcelos. Em 1629, o povo do Porto, apoiado por nobres, ameaça linchar Francisco de Lucena, secretário de Estado vindo de Madrid com a incumbência de lançar mais um imposto... Durante a década de trinta do século XVII, a carga fiscal não parou de aumentar e, com ela, as sublevações, sendo que a mais grave teve lugar em 1637, meros três anos antes da Restauração, por motivos igualmente fiscais.


     Além do povo, a nobreza queixava-se das mobilizações para os palcos de guerra na Europa, vendo-se ainda atingida nos seus privilégios fiscais pelo duque de Olivares, valido espanhol, o preferido de Filipe III de Portugal. Por outro lado, pelo facto de não haver Corte em Lisboa, os nobres refugiavam-se nos seus domínios rurais, mantendo a nostalgia do esplendor cortesão da época em que havia um monarca português de ceptro na mão. Daí que muitos comecem a aderir à ideia de que era melhor sentar um português no trono.
      Da parte dos funcionários e letrados, também estes eram favoráveis ao duque de Bragança, muito devido ao imposto da meia-nata que pendeu sobre eles.

        A crise económica agudizava-se e agravava a situação já instável em Portugal. O império português, alvo de ataques de holandeses, regra geral, que mantinham um ódio de estimação aos castelhanos, caía, nessa zona remota do globo, mediante invasões às nossas praças a oriente, conquistadas uma a uma, o que alterou o eixo principal do nosso império de oriente para ocidente; as especiarias, em queda, deram lugar ao comércio açucareiro; proliferou uma actividade mercantil espalhada por diversos portos no Brasil, essencialmente, originando uma burguesia numerosa. Por sua vez, a Companhia de Jesus converteu-se, também ela, numa sociedade política e economicamente organizada, o que auspiciava novos ventos.

    A par destes factores, há que referir outros, talvez menos importantes, ou mais, dependendo esta valoração da consciência nacional de cada um. Houve alguns aspectos culturais que pesaram na hora da decisão. A língua portuguesa era, aos poucos, substituída pelo castelhano, optando artistas e escritores cada vez mais por se exprimirem nessa língua. A maior parte das obras impressas em Portugal era-o... em castelhano.

    Em progressivo e crescendo, cada vez mais vozes se erguiam contra esta dominação estrangeira, o subalternizar da nossa língua e cultura perante forças opressoras. Surgiu alguma literatura que reclamava a independência, o que levou, consequentemente, ao aumento da censura nos últimos anos da "união ibérica".

       Todo este conjunto de factores ajuda a explicar o golpe do 1 de Dezembro de 1640. Foi, primeiramente, um acto político, com um significado profundo de libertação do domínio castelhano. O reencontro com o passado e o desejo de retomar as velhas glórias. Algo, todavia, não deixa dúvidas: tratou-se de um projecto assumido por todos, do camponês ao mais alto representante de linhagem.

28 de novembro de 2014

Memories.


   As lembranças. Elas trespassam-me como a luz no vidro. O eterno paralelismo com a pessoa que era imediatamente antes da separação dos pais e após. As imagens, que eram nítidas, começam a ficar esbatidas, como aquelas velhas fotos que passam de mão em mão. Os pormenores fogem à minha concentração. Ainda assim, e nove anos volvidos desde o início das hostilidades, vejo roupas, refeições, semblantes, dor. Indiferença. Consigo sentir a desconstrução do que julgava sólido. E não exagerarei se disser que perdi o pé.

    Era novo, demasiado ingénuo para perceber o que se passava. Julgava uma fase, como outras, de maior animosidade. Ou tampouco tinha opinião formada. Limitava-me a viver nesse manto de abstracção que me proporcionava a idade. O pouco conforto que conseguia extrair do que me rodeava provinha daí e de alguns sonhos que pairavam como uma nuvem branca, isolada, no meio do céu carregado.
    Não me questionaram acerca das minhas necessidades, dos receios. Do impacto que o turbilhão teria na frágil estabilidade emocional. Que nunca pedi sacrifícios de maior. Só cautela e cuidado. Foram céleres em desatar os laços. E, aí, tenho a agradecer. Um golpe único, certeiro, consegue ser um acto de misericórdia.

    Desconheço o que me leva a manter algumas tradições que já não farão sentido. O espírito de época, não tendo ainda esse soçobrado diante da realidade. Uma luta em vão, a de cultivar a aparência de normalidade, de comunhão, que não existe mais. Que, porventura, haverá cada vez menos.

   A hora dos silêncios, perturbados pelo som dos meus passos. Da casa vazia, inabitada. Imaculada e disfuncionalmente arrumada. Pelos corredores ecoam as vozes do passado. Onde fiquei.

23 de novembro de 2014

A Mediatização da Justiça.


     A detenção de José Sócrates deixou o país em estado de estupefacção. Nunca se viu nada assim visando um político que desempenhou funções ao mais alto nível na hierarquia do Estado. O povo, em desconhecimento de causa, muitas vezes, aplaude entusiasticamente as decisões que restrinjam a liberdade de cidadãos mediáticos, fundando esse júbilo na velha máxima de que "os importantes nunca respondem perante a Justiça". Aos juízes, por seu lado, a Constituição impõe a administração da justiça em nome do mesmo povo que por ela clama. Entre eles, a omnipotente Comunicação Social e as fugas no segredo de justiça que, em nome do mediatismo a quanto obrigas, perturbam a realização da própria justiça, seja na ponderação dos órgãos judiciais ou ainda no direito de defesa dos arguidos.
      A Justiça tem dois rostos: o de quem acusa ou julga e o de quem se defende. Dois patamares desnivelados. No limite, um dos rostos, o da verdade, preferencialmente, assume-se como único.

      Ler e ouvir declarações de políticos no activo sobre decisões de juízes e do Ministério Público, esse órgão autónomo e independente, todavia intimamente ligado, e aqui intimamente por imperativo constitucional - e ainda bem que assim o é - aos tribunais, é alarmante. É uma intromissão maquilhada, mas que persiste, de outros poderes na esfera do poder judicial. Deputados congratularam-se com a detenção de uma pessoa, manifestando apoio, como poderiam, no reverso da medalha, manifestar o seu repúdio - e isto é perigoso. A justiça deve cumprir o seu papel na sombra, passando ao lado de manchetes e tablóides sensacionalistas, ou corre o risco de não ser justa. Dir-me-ão, são cidadãos. Com certeza. Mas desempenham funções ligadas ao poder legislativo. Não estamos perante um mero cidadão, como eu, que comenta uma decisão de um órgão judicial ou de uma magistratura autónoma como o é o Ministério Público. A par dos mais ostensivos, Pedro Passos Coelho desdobra-se em comentários altamente tendenciosos e suspeitos, o timing fala por si, com declarações dirigidas claramente a Sócrates e ao seu alegado envolvimento em actos ilícitos. Diz Pedro Passos Coelho que "os políticos não são todos iguais", reafirmando, uma vez mais, a terrível conjuntura em que o país se encontrava quando o seu partido venceu as eleições legislativas últimas. Aproveitando-se de um mau momento de um ex-Primeiro-Ministro, talvez temendo, seguramente temendo, uma derrota eleitoral nas eleições do ano que está aí, Passos Coelho faz campanha, promove-se e às suas políticas utilizando a detenção de um cidadão. Como economista que é, quer-me parecer, não lhe exijo que conheça o princípio da presunção de inocência. Só lamento que os seus consultores jurídicos o ignorem.
      Não comentarei a fundo, como se perceberá, a manifestação do PNR frente ao Campus de Justiça. Um partido que não o é, só lamentando que o Tribunal Constitucional continue a permitir a permanência de uma organização dessa índole junto aos demais partidos políticos, proibida, no meu entendimento, nos termos da Constituição. Podemos concordar ou não com esta restrição aos direitos fundamentais de liberdade de associação política, expressão, com previsão até no direito internacional, mas ela existe, consta na nossa Lei Fundamental, deve ser cumprida.

      Os julgamentos em praça pública, os primeiros, que precedem, eventualmente, aqueles por direito em sede do poder judicial, têm o maior dos impactos. E cego será todo o que negar as implicações que a opinião pública, bombardeada por notícias levianas e por afirmações de individualidades irresponsáveis, exerce nos magistrados, também eles susceptíveis, na maioria dos casos, à mediatização dos processos, estando na mira e nas bocas do mundo. Os juízes, hoje, são "executores e perceptores" de uma qualquer justiça de massas que emana de um populismo descontrolado, alimentado pela Comunicação Social, esse quinto poder que só carece de concretização constitucional.

18 de novembro de 2014

November.


   O frio chega, timidamente. Instala-se no nosso quotidiano, impondo-nos roupas quentes, agasalhos de algodão. De igual modo, a cidade prepara-se para receber outra época de consumismo selvagem, visto pelas montras e pelas ofertas tentadoras, tecnológicas, na sua maioria. Somos escravos do digital e nunca estamos na vanguarda da tecnologia. É irrealista não se ficar confuso perante tanta diversidade. Um assomo de saudade dos tempos em que o game boy, no colégio, tinha o dom de me tornar logo no menino popular. Hoje, muito provavelmente, já haveria outro no dia seguinte, com mais aplicações... 

    O mundo está a ficar muito complicado para mim. Não será pelo avanço. Esse faz parte da humanidade. Estamos condenados à evolução. Os limites serão impostos por alguma entidade superior, a existir. Demasiado confuso porque ainda não aceitei inteiramente que cresci e que vou ficando só, que já não sou mais o menino de bochechinhas rechonchudas que quem passa por perto quer apertar. As bochechas, sim, continuam rechonchudas, mas têm barba, tornando-me num homem. E ser-se um homem envolve estar-se à altura de tal. Não apenas ter qualificações académicas ou dobrar anos. Contar meses não implica estar apto para se enfrentar o mundo de desafios e perigos que nos espera a cada esquina.


    Começo, no processo típico de por quem os anos passam, a sentir falta disto e daquilo. Das saídas com os pais, irrepetíveis. Dos jantares no penúltimo mês do ano, quando a decoração natalícia surgia pelas ruas da cidade, iluminando-as e aquecendo-nos o coração. Dos natais no Alentejo, da sua atmosfera gélida que tornava o ar expirado em fumo. De viver, por fim, no manto de ingenuidade e inocência próprio da parca idade. Aí era feliz, sem o saber, talvez sem o ser, mas, citando Maria Guinot, «troco a minha vida por um dia de ilusão». Já tive direito a esse dia, a esses dias.

12 de novembro de 2014

A Queda do Bloco Soviético.


   Comemorou-se, há dias, o vigésimo quinto aniversário sobre a demolição do muro de Berlim e a reunificação da cidade. Corria o ano de 1989. O muro, construído nos anos sessenta do século XX, era mais do que uma linha imaginária que separava os dois pólos antagónicos. Era, efectivamente, um marco que delimitava as partes ocidental e oriental de Berlim. 
       Mil novecentos e oitenta e nove foi um ano de viragem para o bloco soviético. A par do derrube do muro, já em Novembro, a vitória de Lech Walesa na Polónia e a célebre e pacífica Revolução de Veludo na então Checoslováquia prenunciavam o fim de um regime que se via diante de uma derrota na sua ideologia e expansão.

     Com Brejnev, sobretudo, a União Soviética começou a demonstrar fragilidades e indícios de declínio. A competição com os E.U.A na saga pelo armamento nuclear e a intervenção militar no Afeganistão agudizaram os problemas económicos que se vinham sentindo, a que se juntou o fracasso nas políticas que defendiam a reconversão gradual da produção industrial de bens de equipamento para bens de consumo. Gorbatchov chegou a secretário-geral do PCUS em 1985 e cedo se apercebeu de que reformas eram urgentes, empreendendo assim uma certa abertura à privatização e ao individualismo, negados pelo regime soviético, tendo em vista modernizar e reestruturar não só a própria URSS como também o regime, que estava em causa. A reestruturação económica ficaria conhecida, em russo, por perestroika, e a transparência por glasnost, significando a abertura política e o fim da burocratização estatal. Estes dois pilares, decisivos, reflectiram numa mudança de atitude, nomeadamente em relação aos media, menos controlados, o que permitiu aos cidadãos soviéticos terem acesso a informações que eram terminantemente proibidas até então. Atenuou-se as perseguições políticas aos opositores e defensores dos direitos humanos, dos quais André Sakharov é um exemplo, Prémio Nobel da Paz em 1975, regressando do exílio. No ordenamento jurídico, a Constituição soviética foi revista e pôs-se cobro ao monopólio do poder do PCUS. Houve ainda algum combate à corrupção e um importante estímulo à participação cívica dos cidadãos, falando-se até de eleições livres e pluralistas.

     Não se pense que este clima de reformas foi pacífico. Enquanto que no ocidente Gorbatchov granjeava popularidade junto da opinião pública, no seio da URSS o líder conheceu alguma oposição por parte das forças mais conservadoras, na sociedade e no aparelho do PCUS. O carácter reformista do seu mandato verifica-se facilmente com a assinatura do Tratado Sobre Forças Nucleares de Médio Alcance, com os E.U.A, em 1987, e a retirada do Afeganistão em 1989. No ano seguinte, Gorbatchov receberia ele mesmo o Prémio Nobel da Paz. Nesse ano, a reunificação alemã, por fim, viu a luz do dia. A República Democrática Alemã juntava-se à República Federal da Alemanha, derrubando-se o regime comunista na ex-RDA. Também a Hungria e a Roménia, na última muito pouco pacificamente, os regimes comunistas chegavam ao fim.

   As Repúblicas Bálticas foram as primeiras a libertar-se do jugo soviético, em Dezembro de 1989, proclamando-se independentes de Moscovo, seguindo-se progressivamente as restantes repúblicas soviéticas, uma após a outra. A implosão da União Soviética estava iminente. Gorbatchov sofreu uma tentativa de golpe de Estado em Agosto de 1991 por comunistas reaccionários. Os acontecimentos precipitaram-se. Sendo contra a desfragmentação do Estado, Gorbatchov demitiu-se no dia de Natal de 1991, arrastando o PCUS para a extinção e, finalmente, a dissolução oficial da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, fundada quase setenta anos antes pelo líder Lenine. O caminho para a hegemonia sem rivais à vista, pelos E.U.A, ficou desimpedido.

    O fim da URSS teve um impacto significativo nas artes e na cultura. Até na música, com os Scorpions cantando, no início dos anos noventa, o hino à mudança Wind of Change.

8 de novembro de 2014

Uma tarde.


    Escolhendo não o melhor dia, eu e um amigo combinámos dar uma volta pela baixa. Uma zona agradável que nunca é demais revisitar. Será, também, a área mais cosmopolita e multicultural da cidade. Perco-me entre tantas nacionalidades diferentes.

    Chovia quando saí de casa. Entretanto, São Pedro lá se animou e brindou-nos com apenas umas pingas, embora, a dado momento, tivéssemos de dar uma corrida para nos abrigarmos sob umas varandas. O Tejo estava agitado. As gaivotas em terra. O leito do rio, cheio, quase galgando os limites da margem. Nuvens cinzentas, carregadas, prenunciavam uma tempestade que não se verificou.
     Levou-me ao terraço do Hotel do Chiado, que não conhecia. À noite deve ser bem mais interessante, e sem chuva. A vista é excelente. Conseguimos ter uma visão panorâmica sobre a baixa, o Castelo de São Jorge, as ruínas do Carmo e os prédios pombalinos. Já nas ruas, decidimos lanchar por ali. A nossa primeira escolha incidiu sobre um espaço muito conhecido, de que não me recordo o nome (memória ultra-selectiva), que estava cheio e com pessoas à espera de mesa. Acabámos num outro café simpático, apinhado, claro está, de turistas. As tostas, deliciosas. Nunca tinha comido uma tosta mista de queijo de cabra. O atendimento, ainda que no meio de tanta confusão, conseguia ser o mais próximo possível dos clientes.

  Já de estômago cheio, entrámos numas lojas, vimos as tendências deste Inverno que se aproxima. Concluímos que precisamos dar uma renovada. Vi muitos artigos que me interessaram, desde camisas, a blazers, calças, casacos. Eu sou vaidoso. Não o escondo porque não é nada doentio - prova é que há meses que não compro roupa. No entanto, comprando, sou capaz de fazer uma conta apreciavelmente alta. Tenho é de estar disposto à saga do veste-despe, que detesto.
    Regressámos pouco depois.

    Ontem, recebi o primeiro relatório. Está bom. Agora vêm todos. Segunda tenho uma apresentação oral. Custou a primeira. Senti-me mais confortável nas seguintes. Nada como passarmos pelas dificuldades para as ultrapassarmos com menor ou maior distinção. É o processo de amadurecimento.

     Gosto destas tardes simples, de diálogos com sentido, de conversas interessantes. De pessoas respeitadoras, amáveis e gentis, que não têm segundas, terceiras intenções. 
     Essa integridade de carácter não tem preço - e é tão rara.

3 de novembro de 2014

A Investigação.


    Nunca pensei que fosse tão compensador fazer investigação. Um mundo que se desvenda diante de nós. Por sorte, tenho conseguido trazer para casa uns livros interessantes, muito úteis nos relatórios. Nos próximos, que os que fiz ainda estão a ser corrigidos.

   Escolhi, como optativa, Criminologia. Envolvente e misteriosa. Passo muito tempo debruçado sobre matérias densas, daquelas que preferimos não nos dar conta da existência. Há dias, terminei um relatório sobre os homicídios qualificados e os seus pressupostos. Não sabia eu que um simples artigo, de várias alíneas, teria tanto para se escrever (até sabia...). Quando procuramos informação, surge sempre mais e mais. É difícil inovar. Os caminhos começam a estar todos descobertos. Digo inovar no sentido de criar algo novo, uma corrente doutrinária, uma opinião que vingue, que seja absolutamente oposta a tudo o que há, ou que vá numa direcção contrária, díspar. Perfilhar o que existe é tentador, a mais quando concordamos com alguma das orientações.

    Conhecia todos os professores que tenho, excepto um. A minha professora de Direito Penal, ex-conselheira do Tribunal Constitucional, reconheceu-me de imediato. Recordar-se-á, certamente, das aulas e das orais de melhoria. A Processo Penal tenho também o mesmo professor, pessoa que estimo em igual medida. São de uma simplicidade notável, seja no trato, seja até na forma como se apresentam e como interagem com os mestrandos (já o eram na licenciatura). Pessoas que chegaram onde havia a chegar, atingindo o topo das suas carreiras.

   São aulas complexas. A terminologia usada é muito jurídica e não admite desvios. Ao falar com uma amiga da mãe, advogada, com uma sociedade de advogados, aconselhou-me a entrar na Ordem, que há um déficit, na sua sociedade, de advogados na área do Direito Penal. Em boa verdade, o Direito Comercial, das Sociedades Comerciais, do Trabalho, do Contencioso Administrativo, entre outros, são mais cobiçados - e dão mais dinheiro. Disse-lhe que não quero ser defensor. Poderei, a ponderar, entrar na Ordem, mas não para já. Tenho outros assuntos a ocupar-me o tempo e a paciência.

   O amor pelo Jornalismo, todavia, persiste. É uma centelha que brilha em mim. Extensível à História. Quem sabe no futuro? Nada me impede de tirar duas, três licenciaturas, assim tenha uma vida longa (o que já ponho em causa...) e disponibilidade profissional. O engraçado é que trilho o caminho de muitos juristas que se aventuraram pelo Jornalismo e até mesmo pela História, e são vários os exemplos portugueses, desde Margarida Marante, a Miguel Sousa Tavares, Paulo Portas, Carlos Pinto Coelho, Diogo Freitas do Amaral (História), Miguel Sousa Tavares.

    Veremos a que portos o futuro me leva.

28 de outubro de 2014

As Presidenciais.


  As eleições presidenciais no Brasil, disputadíssimas, numa segunda volta que deu a vitória a Dilma Rousseff, embora sofrida, reportaram-me às eleições presidenciais portuguesas que se realizarão a menos de dois anos a contar desta data. Por terras de Vera Cruz, Dilma ganhou por uma margem mínima. O descontentamento dos brasileiros face ao abrandar da economia e ao despesismo público que o Partido dos Trabalhadores (PT) promoveu, levou a que muitos abandonassem o tradicional apoio às políticas trabalhistas, ou petistas, como dizem, procurando em Marina Silva, primeiro, e em Aécio Neves, depois, uma fuga a esta realidade desconfortante, uma paz de gritos.

   Aécio não convenceu pelas suas características pessoais, pelo seu percurso enquanto político, governador do Estado de Minas Gerais, e por estar conotado com o PSDB e a designada fórmula FMI, que nós, portugueses, tão bem conhecemos de três períodos distintos da nossa história mais recente.
   Dilma recebeu um cartão amarelo, transfigurado de verde à última hora e por escassos votos (três ou quatro milhões, pouco, inseridos num universo eleitoral de mais de cem milhões de almas). No seu discurso pós-vitória, Dilma apelou ao diálogo, um diálogo necessário, vestindo-se o Congresso brasileiro de várias cores políticas. Aécio sabe do seu potencial político. Conquistou mais de cinquenta milhões de eleitores.

  Estas eleições presidenciais no Brasil, as mais renhidas de que há memória, revelaram a outra face da política, negra, suja, caluniosa. Usaram-se todos os trunfos, incluindo os mais e menos imorais. Nada que nunca tenha sucedido do lado de cá do Atlântico. Quem se esquecerá da campanha suja empreendida por Pedro Santana Lopes, em 2005, frente a José Sócrates?

    As eleições presidenciais brasileiras revestem-se de um carácter que as portuguesas não têm. O sistema brasileiro é presidencialista, inspirado no norte-americano, estadunidense, enquanto o sistema português é semipresidencialista, com influências francesas e alemãs, todavia com particularidades que o distinguem. No Brasil, o/a Presidente define a política interna e externa do país, sujeito, contudo, à vontade emanada do Congresso no processo legislativo. O Presidente da República português nada define; a sua política externa é a política do seu governo e quem governa é o Governo, passo a redundância. O Presidente da República Portuguesa não governa, mas é mais do que uma simples figura que ornamenta a hierarquia do Estado. O Presidente, além do seu poder informal, moderador, desempenha um papel na função legislativa do Estado ao sancionar, nomeadamente, os diplomas do Governo e da Assembleia da República. Também escolhe, com alguma discricionariedade, o Primeiro-Ministro, atendendo aos resultados eleitorais. Solicita ao Tribunal Constitucional a fiscalização preventiva da constitucionalidade de normas constantes de leis, decretos-leis e convenções internacionais, bem como a fiscalização sucessiva abstracta da constitucionalidade das normas jurídicas, como ainda pode requerer a verificação de inconstitucionalidade por omissão de medidas do legislador necessárias na implementação de normas que constem na Constituição e não sejam exequíveis por si só. No limite, pode ainda dissolver a Assembleia da República, e nem carece de o fundamentar com um cenário de crise governamental. Como se verifica, o legislador constituinte de 1975 não quis relegar o Presidente a um "corta fitas", como o eram, na prática, os Presidentes da República do Estado Novo.

    À medida em que o tempo passa, as movimentações nos partidos e na sociedade civil intensificam-se. Teremos as legislativas pelo meio, no ano que vem, que não diminuem, em caso algum, a importância das presidenciais. Fala-se em nomes. No Partido Socialista, avança-se com António Guterres, o candidato natural, a mais numa liderança claramente guterrista. Há quem fale em Jaime Gama, ofuscado por Guterres, pessoa sensivelmente consensual, tido como homem fiel às causas sociais, pese embora o seu percurso político, enquanto Primeiro-Ministro, acidentado. Talvez surja Sócrates no seu caminho.
   
    No Partido Social Democrata, a instabilidade é maior. Durão Barroso pisca o olho ao seu partido e vem galvanizado dos anos à frente da Comissão Europeia. Deixou uma impressão favorável na Europa porque remeteu-se àquilo que se esperava dele: que fosse pouco interventivo, dando ampla margem de controlo a Angela Merkel. Terá pela frente Marcelo Rebelo de Sousa e ainda Pedro Santana Lopes, que não morreu para a política. Marcelo não convenceu na política activa e a sobre-exposição poderá prejudicá-lo no escrutínio. Santana, com a vida mediática, cor de rosa por anos, ficou mais conhecido por figura do social do que por político credível. Passou ainda anos a lastimar-se da decisão de Jorge Sampaio em dissolver o Parlamento. Nos cargos que desempenhou, excluindo-se como Primeiro-Ministro, um golpe de sorte, qual presente dos céus, não demonstrou especiais atributos. A juntar a estes nomes, Marinho e Pinto surgirá, inevitavelmente, depois de passar pelas próximas legislativas. A ânsia de poder, ou muito me engano, não o deixará tranquilo. E, claro, os tradicionais candidatos da esquerda. Jerónimo de Sousa, o clássico, e ainda algum do Bloco. Outro clássico é Garcia Pereira.

    Muito nos entreterá nos dois anos que se seguem. Não tarda e o espectáculo começa. Com o povo a assistir, que se erga o pano.

21 de outubro de 2014

Aulas.


   Os últimos dias têm passado tranquilamente. A par dos relatórios, que implicam um esforço acrescido, a componente expositiva, oral, é interessante, tendo aprendido que há várias perspectivas sobre um mesmo assunto. Não deixa de ser curioso de que duas pessoas terão, no limite, visões subjectivas, construídas sobre os seus próprios preconceitos e vivências, quando a matéria-base de análise é a mesma. Daí que a ponderação dos magistrados varie. A máxima do juiz como «a boca da lei», de Montesquieu, exprime uma realidade mecânica que não é inteiramente verdade; nem sempre da leitura das normas, diria eu quase nunca, resulta uma interpretação consensual e verdadeiramente unitária.

  Tem sido muito enriquecedor. Aprendi mais nestas parcas semanas do que em semestres durante a licenciatura. O horário nocturno é cansativo, o único revés. Há um dia em que chego particularmente tarde a casa, ressentindo-se o corpo de tantas horas em actividade, mediante que passo as tardes a preparar as aulas e as exposições.
    Intervenho mais. Mudei significativamente comparando à licenciatura. O facto de as turmas serem mais pequenas ajuda. O nível dos alunos também. Acredito que mantivesse a mesma postura caso estivesse num mestrado profissionalizante, onde está a maioria dos meus ex-colegas de licenciatura, excluindo os que mudaram de faculdade e os que deram os seus estudos por terminados ou, na melhor das hipóteses, interrompidos, até porque longe vão os tempos em que a licenciatura era quanto baste. Hoje em dia, exige-se (exigem...) uma pós-graduação qualquer, um complemento.

    Investigar é bom. Passo muito tempo na biblioteca da faculdade rodeado de monografias de Direito Penal. Não chega. Tenho de requisitar livros na biblioteca da Procuradoria-Geral da República, bastante mais completa. Nessas incursões, já tenho cruzado com o dito colega chato, impertinente. Não raras vezes passamos por corredores. Incomoda-me o jeito com que me olha, sobretudo há dias, quando entre leituras num livro olhou-me de esguelha. Reparei que tem uns tiques esquisitos nos olhos. Dou por mim, em momentos mortos, a imaginar o que seria uma casa com nós dois. Embora não possa dizer que lhe ache piada, respeito-o como um semelhante. Não sei da sua história pessoal, das suas capacidades, temendo que reacções indelicadas o levem a construir uma imagem deturpada do que sou. As suas intervenções, circunscritas e pontuais, são, todavia, muito oportunas e evidenciadoras de alguém interessado e perspicaz. E tem um mini notebook igual ao meu!

     E agora, com licença, que há mais um relatório a elaborar.

14 de outubro de 2014

O Tratado de Tordesilhas.


   O século XV foi, para portugueses e castelhanos, um dos mais importantes da história peninsular. Portugal e a que seria a região predominante do Estado espanhol unificado, ainda a surgir, Castela, davam cartas pelo mundo, impunham-se perante as demais nações europeias com o respectivo poderio naval e mercantil, longe do eclipse que para sempre relegaria os dois povos ao ostracismo.

   Contrariamente ao que se possa pensar, o Tratado de Tordesilhas surge num contexto político conturbado em Portugal e Castela. É importante fazer um enquadramento histórico. O Tratado tinha como objectivo apaziguar as disputas territoriais entre portugueses e castelhanos pelos mares, agravadas por conflitos na península, sobretudo quando D. Afonso V, O Africano, decide invadir Castela para fazer aclamar D. Joana, A Beltraneja, filha de Henrique IV de Castela (ou presumida filha...), casando-se com esta e almejando governar Castela, unificando a duas coroas peninsulares, portuguesa e castelhana, na sua pessoa. Ora, a isto opunham-se os Reis Católicos, Fernando e Isabel. A guerra entre estes e D. Afonso V terminaria com a derrota do nosso monarca, após duras batalhas na fronteira portuguesa e em território castelhano, nos anos de 1475 a 1477. A par disso, Isabel, A Católica, prosseguiu nos seus intentos de neutralizar os adeptos castelhanos, que eram alguns, à causa de D. Joana e D. Afonso V, que somando à boa estratégia militar de Fernando levariam ao desaire de D. Afonso V, graças a sua incapacidade no plano militar e, decisivamente, à operacionalidade do exército dos Reis Católicos. A paz seria firmada com o Tratado de Alcáçovas, em 1479. As motivações que levaram D. Afonso V nesta contenda foram iguais às de vários reis castelhanos e, mais tarde, espanhóis: a união de Portugal aos demais reinos peninsulares. Isto também desejavam os Reis Católicos, daí terem casado a sua filha, D. Isabel, com o príncipe D. Afonso, filho de D. João II e neto de D. Afonso V, enlace esse que por pouco não uniu os dois reinos, visto que D. Afonso morreria em circunstâncias misteriosas.

    Voltemos ao Tratado de Tordesilhas. Já no Tratado de Alcáçovas, que selou a paz entre Portugal e Castela, ficaram acordados alguns pontos de discórdia no que dizia respeito às possessões ultramarinas dos dois reinos, nomeadamente em relação às Canárias, que passaram definitivamente para mãos castelhanas, cobiçadas que eram por Portugal. Castela, por sua vez, reconhecia os direitos de Portugal aos territórios que estavam para lá do Bojador, comprometendo-se a não realizar quaisquer actos de comércio no Atlântico sul. Delimitavam-se já alguns paralelos imaginários, pois Portugal ficava com os mares a sul das Canárias e Castela com a zona a norte do mesmo arquipélago. Era uma primeira divisão do mundo.

   Esta primeira divisão levou a que D. João II, sabendo do descobrimento da América por Cristóvão Colombo, em 1492, confrontasse os reis espanhóis e reivindicasse a respectiva pertença, julgando que aqueles territórios estavam no hemisfério que considerava seu. Tornava-se evidente de que as disposições que saíram de Alcáçovas teriam de ser revistas. A diplomacia castelhana queixava-se ao Papa Alexandre VI de que as cedências feitas em 1479 tinham ultrapassado os limites do razoável. D. João II, o nosso Príncipe Perfeito, um dos nossos melhores monarcas, excelente estratega político (permitam-me a parcialidade), relutou em aceitar qualquer proposta. Acabaria por ceder, todavia, justificando-se esta decisão pelo facto de já estar doente, fragilizado, e dada a manifesta força dos reis espanhóis. Ainda assim, D. João II assumiu a orientação subsequente das negociações e, ainda que doente, conseguiu modificar, à última hora!, o plano preconizado por Espanha, garantindo a Portugal um amplo espaço de manobra no Atlântico sul (que nos permitiria ir à Índia!....), mantendo o princípio da divisão do mundo acordado em Alcáçovas. Contudo, o eixo da partilha era alterado, desistindo-se da referência a um paralelo para estabelecer definitivamente um meridiano, marcado a trezentas e setenta léguas a oeste de Cabo Verde. Quedavam-se os Reis Católicos com as terras descobertas por Colombo, enquanto o nosso Príncipe Perfeito garantia o espaço marítimo que nos levaria ao Oriente. E, com consciência disso ou não, garantia-nos o Brasil...

    Apesar de doente, Fernando e Isabel reconheciam a determinação e pujança de D. João II, esperando poder beneficiar da debilidade do monarca português. Tendo recebido uma embaixada dos reis espanhóis nos últimos tempos da sua vida, consta-se que D. João II terá respondido, indagado hipocritamente pela sua saúde, que o seu braço ainda tinha forças para um par de batalhas "a mouros", segundo disse, com clara ironia.

    O Tratado de Tordesilhas foi assinado em Tordesilhas, no ano de 1494, pouco mais de um ano antes do falecimento de D. João II, um dos maiores vultos da epopeia marítima portuguesa.

10 de outubro de 2014

Desafio.


    O Francisco, do blogue Um Deus Caído do Olimpo, nomeou-me para participar em mais um dos desafios que andam pela blogosfera. Eu acedi de boa vontade. Consiste, tão-só, em responder a cinco perguntas.

     1. Como surgiu a ideia de criar o blogue?

     A ideia surgiu numa das noites monótonas que tinha quando frequentava o ensino secundário. O décimo ano. De forma despretensiosa, tanto assim é que durante dois anos escrevia apenas para mim, quase num exercício de monólogo, solitário. Abri os horizontes em dois mil e dez, no momento em que comecei a seguir outros espaços e a dar-me a conhecer, consequentemente.

    2. Como surgiu o nome dado ao blogue?

    Um dia perguntaram-me, através do email que disponibilizei, o motivo pelo qual escolhi As Aventuras, dado que tão pouco escrevo sobre quaisquer aventuras que viva. Em primeiro lugar, não tenho aventuras para contar (ou são mínimas); em segundo lugar, o nome não surgiu como prenúncio de relatos das minhas aventuras, mas sim inspirado numa tour da Mariah Carey, The Adventures of Mimi, de 2006. O nome não faz o conteúdo, e confesso que gosto da desconformidade entre o nome e o recheio.

    3. Qual a publicação que te é mais especial?

    Nenhuma. Gosto particularmente de um conto que escrevi nos inícios de dois mil e treze, de seu nome "Eva".

   4. Há algum segredo relacionado com o blogue que ainda não tenha sido revelado?

     Não.

   5. O que te entusiasma na blogosfera?

    Em boa verdade, nada. Já senti o dito entusiasmo há uns anos. Estou como o Herman, que em tempos disse que nada na televisão o fazia rir. Pois nada do que leio na blogo me deslumbra. Está tudo visto. Como sempre, e na sequência do que acontece na vida real, sou um fatal outsider, ambíguo, não parecido com ninguém, não me encaixando em qualquer categoria. Sendo sofrível, em certa medida, dá uma maleabilidade reconfortante, que não a tem quem está preso a rótulos e deles não consegue se desenvencilhar.

      Está feito.

5 de outubro de 2014

Delimitação do bem jurídico vida.


   No ordenamento jurídico português, o bem jurídico vida está enunciado nos artigos 131º e seguintes do Código Penal.
   A vida é o lado objectivo do direito à vida, do direito à existência biológica. Só pode ser titular do bem jurídico vida quem é titular do direito, sendo a vida o lado objectual do direito. Ter um direito implica a fruição de um objecto. Nesse sentido, o titular da existência biológica autónoma só pode ser o titular do direito, a pessoa constitucional, titular de direitos e destinatário de deveres. Só o ser humano preenche esses requisitos. O ser humano, não nascido, não usufrui de direitos e nem pode cumprir deveres. Ser pessoa implica o nascimento, embora a nossa Constituição não determine que fase do nascimento é necessária. Com o nascimento, o ser humano pode não ser titular actual de todos os direitos - de muitos é titular potencial (direito de votar) - mas já há direitos que pode impor a terceiros, como o direito à integridade física, bem jurídico fundamental, penalmente protegido.

   Todavia, saber quem é pessoa e se as fases da vida anteriores ao nascimento são merecedoras de tutela penal é diferente. Quanto a isto, há descontinuidade entre o direito à vida e a vida humana como bem jurídico. A vida humana possui um núcleo fundamental e um periférico, que é representado pelas fases anteriores ao nascimento. A extrema importância do núcleo valora as fases anteriores. Estas, por sua vez, são atingidas pela dignidade do núcleo porque são instrumentais para a existência da vida humana autónoma. As diversas partes da vida humana têm valor relevante; não obstante, não têm o mesmo valor da vida humana autónoma per se.

   A vida humana pré-nidatória é a vida do embrião humano. Através das técnicas de procriação artificial, pode ser criado em laboratório. O que está em causa é a identidade e a integridade do património genético humano. No caso da existência de vida intra-uterina, após a nidação, ou seja, a implantação do óvulo fecundado no útero.
  Estes bens jurídicos estão penalmente protegidos, mas é uma protecção relativizada comparando à protecção da vida humana formada. Vários valores e interesses colidem: o património genético humano com o direito à autonomia procriativa dos progenitores e com a liberdade científica. E a vida intra-uterina ainda colide com o direito à disposição do próprio corpo por parte da mulher. Estes conflitos são chamados pela doutrina como conflitos do rés-do-chão, dado o seu carácter estrutural.

    Nas sociedades actuais, tenta-se encontrar uma concordância com os valores em contradição, de que nos dá conta a lei da procriação medicamente assistida, que permite a destruição de embriões para fins científicos e a clonagem terapêutica. O que está em causa não é a integridade, mas sim a identidade. 
    Na vida intra-uterina, protege-se alguma liberdade da mulher (a interrupção voluntária da gravidez até às dez semanas). Quanto à vida humana autónoma, a protecção do direito é quase absoluta. Apenas a ressalva aos conflitos de topo (a vida humana nunca cede, excepto a vida do agressor em caso de legítima defesa ou a figura do conflito de deveres). O aborto assenta numa integridade física material do feto.

     Importa perguntar: quando é que a vida humana autónoma é instituída? A Constituição é omissa, não se reportando a qualquer fase do processo de nascimento. A lei civil, no artigo 66º do Código Civil, dá-nos a ideia de um nascimento completo e com vida. Para o direito penal, estas soluções não chegam. O artigo 136º do Código Penal prevê a figura do infanticídio: morte do recém-nascido durante o parto ou após. Trata-se de um homicídio, e a lei civil não abarca este tipo incriminador. O que justifica esta solução do legislador penal? No início do parto, há intervenção de terceiros (médicos, enfermeiros, auxiliares...). Mera razão de política criminal. Havendo essa intervenção, o ser humano tem de estar equipado de normas penais que o protejam. Uma protecção diferente da protecção do feto: este só é protegido contra agressões dolosas; as negligentes não têm cobertura penal. A protecção do feto é menor que a protecção penal da pessoa, e compreende-se. Através do artigo 136º do Código Penal, o legislador ordinário empurra a protecção para o início do nascimento. O início do nascimento coincide com o parto (o início do parto está relacionado com as dores da dilatação; há doutrina que defende que o parto começa com as dores de expulsão). As dores de dilatação, quanto a mim, são o início do parto. São irreversíveis. No parto induzido, o que marca o seu início é a intervenção médica, com anestesia. Nos partos prematuros, é imperioso saber-se se o ser humano tem capacidade biológica para sobreviver por si só, ainda que com a ajuda de meios artificiais.

    A pergunta é esta: estamos antes ou depois do início do parto? Suponhamos. Há uma tentativa de aborto aos três meses. O feto é expulso e é morto fora do útero através de segunda acção. Houve acção de aborto. E a segunda acção, é um homicídio? Não. O feto tinha três meses. A segunda acção é penalmente irrelevante. O resultado pode se dar dentro ou fora. Nunca há homicídio contra vida intra-uterina. Homicídio só sobre vida autónoma.
    E se for no sétimo mês? Há homicídio e tentativa de aborto. Há vida humana biologicamente autónoma. O fundamento tem de estar presente na segunda acção. Numa terceira hipótese, sendo aos oito meses de gestação e vinte e cinco dias, não tendo a mulher conseguido abortar, mas cujas consequências fariam com que o feto, fragilizado, morresse mais tarde, o risco também ele se materializa mais tarde. O critério não é para o resultado e sim para a acção. A acção dá-se no feto e o resultado materializa-se na pessoa.

  A delimitação do bem jurídico vida tem consequências a nível da responsabilidade político-criminal, recorrendo o direito à medicina, na busca de que a verdade jurídica e biológica se correspondam.

2 de outubro de 2014

Aulas.


     Tive a minha primeira aula de mestrado na segunda-feira. À noite. O entusiasmo não encontrou onde se instalar em mim. Entrei naquela faculdade há quatro anos e ainda por lá estou, embora numa nova fase. Os professores dizem que somos todos colegas, os emails da faculdade e as cartas que recebo já trazem o Drº atrás. Algo mudou. Não necessariamente para melhor.

   Divido o espaço com poucas pessoas conhecidas. Conheço um por outro. O número de mestrandos é limitadíssimo por turma. Como sempre, sento-me no meu lugar e presto atenção às aulas. A avaliação é substancialmente diferente. Assenta, sobretudo, em exposições orais e trabalhos escritos, vulgo relatórios. Ora, eu não me sinto à vontade para participar em debates. Não que seja tímido. Sou reservado.
     Estas são as regras do jogo. Para me sair bem, tenho de aderir e cumpri-las. Assim será.

     O horário não é tão agradável quanto pensava. Haverá dias em que sairei depois da hora de jantar. Pela noite, tenhamos ou não uma actividade diária, é natural que o corpo se ressinta, que o cansaço surja. Por volta das vinte, só quero estar em casa, encostar-me na poltrona a ler ou a escrever, ao meu ritmo. Daí que o costume de esfregar os olhos feito um bebé, que não perdi, se tenha acentuado. Estar no mestrado tem as suas vantagens. Só me permito escrever o que me apetece e, é raro, às vezes falto a algumas aulas. Sou um homem, não sou mais um menino que precisa da matéria para os testes.

   Entretanto, há quem utilize as aulas para olhar para os colegas do lado, como um indivíduo que está permanentemente de olhar fixo em mim. Consigo senti-lo. E mesmo que já o tenha enfrentado com a minha expressão número cinco de desconforto, o rapaz insiste. É tão patético, com uma pastinha que o meu pai não usaria (creio que nem o avô!) e um blazer azul céu (?), completando o quadro deprimente. Nem abordo a camisa azul-escuro com bolinhas (?). Não é feio, mas é atrevido, e eu eu não gosto de gente atrevida que não se sabe impor limites. E odeio que façam da faculdade um bar barato de promiscuidade (mal) dissimulada. Só me faltava isto!...

      O regresso a uma rotina (de um ano apenas...). O segundo diz respeito à dissertação. A seu tempo.

28 de setembro de 2014

The Normal Heart


   Há dias, acordei pela manhã, cedo, muito cedo, e resolvi ligar o televisor. Raramente o faço, como vou dando conta por aqui. A ponto de o ligar apenas para que funcione por alguns instantes. Mudámos de televisor para um LCD, por estética, apenas, daí que não seja agradável ter uma má surpresa...

   Passei pelos canais que me prendem a pouca atenção. Os noticiosos internacionais, nacionais, e, claro está, os canais premium de filmes. A mãe gosta de ver uns filmes, daí tê-los colocado. Dei, então, com um filme de enredo excepcional, numa realidade que está surpreendentemente perto. O Normal Heart, que vou explorar tentando não desvendar nada de substancial para quem, evidentemente, ainda não assistiu.

   O filme desenrola-se em Nova Iorque, nos meados dos anos oitenta do século passado, no momento exacto em que o cancro gay, a SIDA, como era conhecida inicialmente, começava a devastar a comunidade homossexual norte-americana, tornando-se um flagelo incontrolável e desconhecido. Todos os dias, o número de vítimas aumentava, provocando o caos e recrudescendo o preconceito.

    Entre a luta de um activista no sentido de obter apoios contra o que considerava ser uma epidemia, surge uma história de amor com um jornalista do The New York Times, aonde se dirigira para procurar ajuda esclarecida. Ned, encarnado por Mark Ruffalo, apaixona-se por um jovem jornalista, Felix Turner (Matt Bomer), décadas mais novo. Reencontram-se (na medida em que se conheciam de outras paragens...) e vivem uma bela e tórrida relação fugaz.

  Considero este filme muito bem conseguido. A crítica, aliás, foi unânime no rol de elogios. A visão tenebrosa de um doente de SIDA, passando o estágio da seropositividade, não foi esquecida. Entramos na realidade de alguém que sabe que os seus dias se findam em pouco, na degradação física, na terrível decadência provocada pelas doenças oportunistas que minam organismos tão fragilizados. Tudo esteve presente num ambiente eighties, com direito às músicas que perpetuaram uma das décadas emblemáticas do século XX.

   Não será um filme próprio para as sete da manhã. Marcou o resto do dia pelo impacto visual. É depressivo, demolidoramente triste. A junção da discriminação pré-existente com a que surgiu pela doença, a homofobia interna de homossexuais que negavam a sua orientação e, nesse sentido, qualquer probabilidade de contrair a dita enfermidade gay, e o silêncio dos políticos e da sociedade, no geral, isolaram uma comunidade que vinha se afirmando a custo. E os que continuaram a sua luta, quando já se desconfiava de que as relações sexuais desprotegidas eram a fonte de contágio epidémico, rejeitando reprimir uma sexualidade censurada desde a infância pela pressão familiar e social, aumentaram exponencialmente o número de vítimas mortais.

   Deixo-vos uma das cenas (há esta cena em melhor qualidade no Youtube, mas quem postou desactivou a possibilidade de incorporar, logo, encontrei este vídeo, que tem o mesmo conteúdo, em qualidade menor).


      

23 de setembro de 2014

O reinício.


    As aulas começam na próxima segunda-feira. A maioria dos meus colegas iniciou as suas no dia quinze. Optaram pelo mestrado profissionalizante, procurando aptidões para a aventura que é lançar-se no mercado laboral. Preferi seguir o caminho mais óbvio no meu caso, o mestrado científico, atendendo ao conselho de alguns professores e à minha intuição, que pende mais para a área da investigação, o que poderá proporcionar-me um futuro fora do mundo jurídico, contudo, aprofundando conhecimentos. Ainda me torno um penalista...

   Estive, na sexta e ontem, na faculdade. Fui surpreendido, à chegada, com um odor a churrasco. Ocuparam um dos jardins para uma festa de horror. Uma multidão. Música alta. Os porcos eram assados no espeto, inteiros, à medida em que uns homens, que presumo contratados para o efeito, cortavam a carne e a serviam em bifanas. Os recipientes com sangue dos animais, ao lado dos grelhadores, induziram-me o vómito e o pavor. Somos assustadoramente selvagens.

    Conversei com alguns colegas. Fiquei feliz por vê-los. Estarão quase todos juntos na saga que se inicia. Nunca tivemos uma relação próxima, de amizade. Por meados do segundo ano da licenciatura, afastei-me mais ou menos de todos. O contacto tornou-se circunstancial, casual. Não havia empatia. Desconheço quem estará no mestrado que escolhi. Não serão muitos. O número é reduzido. Desconfio de alguns/mas que tiveram um percurso em tudo semelhante ao meu. Estarei entre pares.

    À saída, deparei-me com a S., uma colega invisual. Não raras vezes ficava só nos anfiteatros, pois a coragem, ou a falta dela, impedia-na de pedir a alguém que a acompanhasse até ao átrio principal ou mesmo à entrada. Demorando uma eternidade a arrumar os meus pertences na mala, quase sempre a ajudava no percurso, segurando-a pelo braço. Até que ela reprovou e, de certo modo, afastámo-nos. Mas, nos corredores, volta e meia via-a e lá trocávamos uns dedos de prosa. Como ontem à noite. Está feliz por ter mudado para o turno nocturno. "As pessoas são mais humanas", diz. Não deixei de sorrir, com manifesto desapontamento, perante as suas expectativas. Em boa verdade, um sujeito disponibilizou-se em ajudá-la, até que os interpelei e a levei pelo que faltava no caminho. Estava à espera da mãe.

     Vi o casal de namorados cujo amor vi despontar. Dois rapazes. Percebi a cumplicidade quando não havia mais do que tímidos sinais, o ano passado, assistindo às aulas do quarto ano (noite).
    Desceram a escadaria com visível encantamento. Se os sorrisos denunciassem, seriam detidos. Sob as luzes alaranjadas de uma avenida surpreendentemente cheia de vida, seguiram em direcção ao metro, lado a lado, indiferentes à chuva miudinha que se precipitava na calçada brilhante e húmida.

- Vejo duas pessoas juntas, S., mas, tal como tu, nada vejo. Ou não vejo porque os meus olhos são incapazes de ver?

- Vejo mais do que pensas. Eu sinto.

     Fazia-se tarde. Ficaria em segurança no meio de tantas caras conhecidas. Beijei-a na cabeça e corri pela chuva, transformada em aguaceiro.

18 de setembro de 2014

Scotland.


   O princípio da autodeterminação dos povos é um dos corolários das Nações Unidas. Com o final da II Guerra Mundial e a consciencialização de que o colonialismo chegara ao fim, as potências europeias apressaram-se em reconhecer a independência dos seus domínios pelos continentes africano e asiático, sobretudo, com raras excepções, como Portugal. O colonialismo não terminou. Manteve-se, desta feita com a nefasta neocolonização americana e soviética dos territórios até então dependentes.

   A realidade escocesa é substancialmente diferente. A Escócia era um reino independente em relação à Inglaterra até o destino as cruzar. Com o desaparecimento de Isabel I, a célebre Rainha Virgem, rainha de Inglaterra e principal obreira da hegemonia britânica nos séculos que se seguiriam, após um processo algo turbulento, Jaime VI da Escócia é chamado ao trono inglês, sucedendo a Isabel, que não deixara descendentes. Jaime e Isabel eram primos direitos por via materna e paterna, respectivamente. Desengane-se quem pense que houve, então, uma união entre os dois reinos. Formalmente, a Escócia e a Inglaterra mantiveram o seu status. Dois reinos distintos compartilhando o mesmo monarca. Jaime VI passou a reinar em Inglaterra como Jaime I. Um regime de união pessoal, em tudo semelhante ao que tivemos na Península Ibérica no período que mediou o final do século XVI e meados do séculos XVII (1580 - 1640). Contudo, contrariamente ao que sucederia na península, em que a união pessoal se dissolveria após sessenta longos anos seguidos de vinte e oito de duras batalhas, a Escócia e a Inglaterra, já nos inícios do século XVIII e em pleno reinado da rainha Ana, decidir-se-iam pela união real, por fim, formando o Reino da Grã-Bretanha.

   Actualmente, a Escócia goza de amplos privilégios no Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, embora, na prática, esteja sujeita a fortes restrições à sua autonomia por parte do parlamento inglês e da coroa, aos quais se subordina em variadíssimas matérias.
  O que a História tem demonstrado é que o sentimento de pertença, de individualidade que distingue os sujeitos, não se esbate com o passar dos séculos. Há nações históricas que assim se reconhecem e que de forma alguma se revêem nos poderes centralistas, unionistas. Não só no Reino Unido como, também pela Europa, e referindo como exemplo, em Espanha. A saudável diferença é que o Reino Unido, honrando a sua longa tradição democrática, deu a voz ao povo escocês, que hoje decidirá o futuro da Escócia. Com mais ou menos pressão política e / ou económica, e ainda com promessas de reforço da autonomia seguindo no Reino, a última palavra será da população, dos eleitores. O governo espanhol, preso à letra da sua Constituição escrita, rígida, formal, que não será mais do que uma mera desculpa, reprime a voz nacionalista dos catalães, de tudo fazendo para perpetuar uma união forçada e forjada. É a tónica dos sucessivos governos espanhóis, pós-transição, apoiados pelo povo. Consideram Gibraltar um reduto colonial - o último da Europa! - em seu território, mantendo, porém, Ceuta e Melilla, geograficamente no continente africano, naturalmente cidades indissociáveis de Marrocos e da sua integridade enquanto Estado soberano, cujas pretensões desde sempre apoiei. E Olivença. Questões que abordei neste espaço e que estão disponíveis.

    Não deixarei de confessar um apego maior à causa catalã do que à escocesa. Há uma dívida à Catalunha que Portugal só poderá pagar com um apoio convicto e perene, enfrentando os temores económicos de uma afronta àquele que é o seu maior parceiro económico. A sublevação catalã, em 1640, e a opção de Filipe III em sufocá-la, em detrimento do quadro instável que se vivia em Portugal, permitiu que restaurássemos um português no trono, precisamente o futuro D. João IV. Indirectamente, e ainda que não o prevendo, tudo devemos aos amigos catalães, que resistiram, bem como os galegos, irmãos, os bascos, e demais povos de Espanha, ao genocídio cultural imposto por Madrid.

   A manutenção da hipotética Escócia independente, ou da Catalunha, no seio de uma União Europeia insegura, arbitrária, seria complicada, tendo em conta que contraria os ímpetos federalistas que estão presentes na União desde o seu aparecimento.

   Em processos limpos e totalmente democráticos, sem boicotes e fraudes, que se dê a voz ao povo, real detentor da soberania e do seu futuro.

15 de setembro de 2014

O Eu.


   Ando a revisitar doutrinas que conheci há anos, chegando-me por livros que li ainda sem a bagagem cultural e a idade necessárias para compreender as suas essências. Uma delas é o existencialismo, não o de Sartre, embora coincida. Kierkegaard é um autor que me fascina pelas suas ideias. Fui surpreendido com a inclusão de parte da sua obra na disciplina de Direito Constitucional, inserida nos planos de estudo de um dos melhores professores que já tive e com quem pude aprender muito do que sei na área do direito público.

    O contacto prévio com Kierkegaard, anos antes, ajudou a que estivesse familiarizado com as suas teorias, o que me permitiu certa ligeireza e à-vontade no modo com que o abordei nas provas escritas.

   Somos livres. A liberdade implica responsabilidade, eterno chavão, e angústia. Por podemos escolher, vem a ansiedade. O homem é uma síntese de alma e de corpo sustentada pelo espírito. A angústia é o resultado da relação da liberdade com a culpa. Recusando universalizar os indivíduos na espécie, Kierkegaard defende que cada um de nós existe perante Deus e que foi por cada pessoa que Ele se deixou encarnar, sofreu e morreu. Dotados de liberdade ilimitada, somos uma fusão do infinito, do finito, de temporal e de eterno, de liberdade e de necessidade. O Eu é a liberdade.

    De facto, e tomando-me como exemplo, a escolha envolve angústia. Estamos condenados a ser livres. E há um medo que advém dessa liberdade total.


     Sartre, Jean Paul, surge mais tarde. Houve uma evolução no meu pensamento. E se nunca pusera em causa a existência de Deus, o existencialismo de Sartre não mais é cristão como o de Kierkegaard. 

    Vi-me diante de uma areia desconhecida, movediça e cruelmente verdadeira. Sartre nega Deus, nega deuses, e coloca-nos num patamar de absoluta solidão, continuando a ser livres, talvez ainda mais livres do que na construção de Kierkegaard. Percebo que nascemos, vivemos e morremos sós. Somos livres num mundo desprovido de razão. Um gigante absurdo. Nem sempre o bem vence o mal, como nos ensinam nas fábulas. Retomo a angústia de se optar num mundo sem sentido. Não havendo deuses, não há a quem recorrer no limite. Seremos nós a dar um sentido sem sentido em corpos perecíveis, matéria que se degrada, sujeita às vicissitudes do tempo e das mazelas naturais às quais se somam as que voluntariamente, numa inconsciência consciente, causamos.

     Recusava-me a aceitar o nada, o irracional, o ilógico. Não reconhecendo ao nada o valor da inteligência, que buscava no divino, tudo teria uma origem que não poderia jamais passar pelo surgimento casual e espontâneo do universo. Haveria uma força motriz, precedente, intencional, criadora de todos os mundos e espécies viventes que os habitam. Daí a nossa existência terrestre ser um elo com algo que viria, e que antecederia, latente no inconsciente. Cada vez vejo com mais clarividência de que não é assim. Tudo é o acaso, incluindo o ser humano. Estamos sós perante a não existência de deuses, sós entre nós, cada um consigo.

    Caminharei a passos assustadoramente largos rumo ao ateísmo. Perder Deus será a derradeira etapa de uma descrença progressiva na humanidade e no sentido da vida. E talvez aí, sem o suporte de deuses, encontre o Eu no meio do vazio.

11 de setembro de 2014

A angústia dos dias que virão.


   De mansinho, anunciando a meia-estação. Nuvens de prenúncio, carregadas, no céu tingido de azul-escuro. O sol que espreita, timidamente. Num ápice, as gotas caem suavemente na terra seca, imprimindo pequenos círculos na matéria espessa. As ervas ganham vida. As cores das corolas acentuam-se.

   Pela janela, observo o movimento. Não se vêem andorinhas. O aguaceiro transforma-se em fumo ao embater na estrada. Extravasando os limites máximos de velocidade permitidos por lei, colunas de carros abrandam ao comando do semáforo.

    Cinco e meia. Abrigo-me numa estação de autocarros. Num assomo de anti-niilismo, procurei responder a todas as minhas dúvidas numa semiótica de respostas sem aparente significado lógico, mas reconfortante. Que me fizessem sentir num caminho, ainda que tumultuoso, revestido de mensagens orientadoras, etapas, fases, pretensos degraus rumo ao infinito de não mais do que a vida humana permite. Uma irrupção de pensamentos díspares, confrontado com a própria solidão de um final de tarde vazio. A eterna luta entre o bem e o mal. Concomitantemente, estava perdido em mim. E as respostas tardaram. Inquietações de um tempo difuso.

    Regresso a casa. Os vidros diáfanos deixam passar a luz e retêm o incómodo. Disperso as aquisições pelo sofá da sala.
    As relações são frágeis, como frágil é a amizade que aparenta vigor. As pessoas afastam-se indiferentes aos laços que cultivam de afecto e atenção, tornando-os momentâneos, o que aferimos num exame de retrospectiva.
   Chove. Sinto-o pelo traçado sinuoso das gotículas quando, tocando umas nas outras, desenham linhas disformes, de contornos indefinidos, até se anularem na calha metálica. Senti-lo-ia ainda que não o visse, pois uma antítese de sentimentos que não consigo afastar é condizente com o cinzentismo lá de fora. Sondei o meu coração e descobri a angústia dos dias que virão, diárias dores, crónicas, em fuga de uma realidade qualquer.
     Absorto dos sentidos, lutando por dar sentido.

5 de setembro de 2014

De perto.


     Por forma a encerrar as férias, se tanto oficialmente, combinei ir à praia com uma prima. Se pudesse desfrutar do mar sem passar pela praia, fá-lo-ia. Por Lisboa, então, evito. Ainda assim, escolhemos um bom dia, sabendo que o Setembro é, regra geral, menos congestionado.

      Estar de papo para o ar deitado numa toalha, torrando ao sol, além de pouco saudável não me satisfaz. Fui pela companhia e pela vontade incomensurável de sair. Optámos por um guarda-sol da área que está concessionada. Protegemos a pele e os pertences do calor.
     Foi divertido na água. Adoro nadar e nado com um à-vontade que não tenho em terra. Os anos de natação, interrompidos pelas crises de asma, aguçaram-me o gosto pelo mar, não necessariamente por piscinas, que evito. Só não tenho muito jeito em mergulhar ou fazer aquelas piruetas, o pino. Há sempre quem goste de mostrar as suas capacidades acrobáticas...

      Quase deserta, e num dia bom. Razoavelmente quente. Um rapaz estendeu a sua toalha ao nosso lado. Despiu a camisa, de cavas, e exibiu o seu corpo moreno. Reparei que colocava, de tempos a tempos, um líquido incolor, que suponho bronzeador, no corpo. Senti-me constrangido em falar com a prima. Às vezes olhava-nos com uma expressão atenta, compenetrada, como se analisasse o nosso tom de voz. Não serei uma pessoa desconfiada, mas não gosto que olhem para mim com frequência, sobretudo pessoas com quem divido o espaço. Uma vez que não dou atenção a quem me rodeia, por feitio, procuro passar subtilmente.

     O rapaz saía para mergulhar por instantes. Pouco se quedava na água. Notei que não se afastava da margem, quem sabe temendo perder o pé. Só me aventuro por zonas onde não tenho pé quando não há ondulação. Temo sempre que uma onda me apanhe, incauto. Herdei uma distracção da mãe, algo genético, incontrolável. Eu chamar-lhe-ia despistado. Tenho de ter cuidados redobrados para compensar.

      Deitou-se na toalha, puxou os calções de banho para cima e abriu as pernas. "Que lorde", pensei. Nas suas sete quintas apreciando as "babes" que passam (que não passou nenhuma; só senhoras flácidas de meia-idade, varizes nas pernas e efeito casca de laranja nos glúteos). Dava pequenos goles na Luso Limão, virava-se de costas e observava-nos de novo. Voltava à água. Agora mergulhou, destemido, deu braçadas, exibiu-se. Parecia que nos queria impressionar. A prima olhava, curiosíssima, a ponto de desconfiar se para os pinotes do rapaz ou para o corpo. A ele, é provável, aquece o ego. Será um qualquer jogo de sedução que desconheço, meandros do engate, when a man loves a woman or... a man.

- C., esquece, ele não deve ter mais dezanove anos.

    Indignada, ou apenas surpresa, encarou-me com um semblante nervoso. Sorri-lhe. Quis retirar o peso excessivo das minhas palavras, ditas com alguma revolta, incómodo.

     Saiu alguns minutos antes de nós. Almoçámos por ali mesmo e voltámos. Tenho a certeza de que houve um flirt na minha presença. Da parte dela. Lidei mal com isso. Admito que me causa estranheza e até certa repugnância. Como se aquele momento fosse estragado por sentimentos menores, torpes, carnais.

     Depois percebi que há lições que não vêm em livros de mil páginas. Chama-se vida. E temos de conhecê-la.