Entre notícias que povoam a imprensa escrita e os noticiários televisivos, dando-nos conta de adolescentes assassinados e de demais casos de violência juvenil, o fim do período de transição que marca o início da vigência, sem reservas, do Acordo Ortográfico, pouco passou despercebido. Uma vez mais, bem como aquando da ratificação e consequente promulgação do diploma, variadas vozes se insurgiram contra o que, em suas opiniões, é um atentado à língua portuguesa.
Se bem me lembro, abordei o Acordo Ortográfico há muitos anos, chegando ao limite de o aplicar. Voltei atrás, não por qualquer discordância relativa à pertinência do tratado, mas por dificuldades em adaptar-me às novas regras; dificuldades essas no sentido de, esteticamente, não ter conseguido ultrapassar algumas barreiras cimentadas pelo hábito. Digamos que ainda me é custoso escrever "ator". Porém, tenho sido um apoiante inequívoco do Acordo Ortográfico e não é difícil desabar o amontoado de críticas que lhe são dirigidas.
A língua portuguesa não é um idioma exclusivo de Portugal, e perante novidade alguma estamos. Desde o século XV que a língua de Camões deixou de nos pertencer, quando a soubemos impor, o mais das vezes pela força, a outros povos, que a assimilaram e adaptaram à sua realidade. Deu, inclusive, origem a novos idiomas desditosos, alvos fáceis de um preconceito linguístico que ainda hoje se faz sentir. Novas entidades surgiram do império colonial que construímos, incorporando e oficializando o idioma pelo tempo. A distância geográfica tratou de acentuar as diferenças, estimuladas pela influência dos vários povos em contacto com essa língua franca. Hoje, entretanto, podemos falar de uma língua portuguesa unitária que é falada de distintos modos, conferindo-lhe beleza e riqueza lexical e fonética.
No início do século passado, depois da revolução republicana e fruto dos assomos reformistas dos revoltosos, a língua portuguesa passou por uma reforma unilateral elaborada por Portugal, vigorando a partir de então no país europeu. À época, um país lusófono, independente, já existia - o Brasil, que não foi consultado acerca desse procedimento. Extirpou-se da língua portuguesa a maioria da sua raiz etimológica latina, perdendo farmácia o seu dígrafo ph, nomeadamente. Em resultado da atitude individualista do governo republicano, a língua portuguesa, já comum a dois países, ficou com duas ortografias opostas, originando o ciclo de acordos e reformas que pautou todo o século XX e o início do nosso século, tendo em vista a uniformização linguística possível.
Nos dias que correm, a língua portuguesa é idioma comum de mais de duzentos e cinquenta milhões de pessoas, seja como língua materna ou como língua de contacto diário, oficial, através dos estabelecimentos de ensino, dos meios de informação ou dos organismos estatais dos oito países que a adoptaram nas suas legislações e no quotidiano administrativo. Dividida em duas ortografias oficiais, a portuguesa, seguida também pelos PALOP e por Timor-Leste, e a brasileira, queda enfraquecida nos esforços para a sua afirmação como língua útil a ser ensinada e aprendida por estrangeiros não lusófonos e até no êxito das políticas portuguesa e brasileira procurando a sua oficialização junto de organizações internacionais, como a ONU, que a têm preterido por não saber por qual variante decidir-se.
A situação da língua portuguesa, mantendo-se o impasse, é precária, num mundo globalizado em que há outros idiomas, tanto ou ainda mais pujantes, que vão-se afirmando. A língua inglesa não está uniformizada, é certo. Contudo, compará-la no prestígio ou na importância ao português é insensato. O castelhano, conhecido internacionalmente por espanhol, está uniformizado na sua ortografia. O francês goza de igual força, não obstante algumas diferenças que separam a variante europeia da canadiana. Como referi acima, a uniformização é possível, com uma percentagem de harmonia ortográfica rondando os cem por cento.
Não seria de esperar que Portugal, com tiques revivalistas de gloriosa potência colonial, aceitasse ceder uma só letra procurando estabelecer e definir regras comuns para o idioma que propagou pelos continentes. O Acordo foi rejeitado embrionariamente. Inverdades surgiram e foram disseminadas sem conhecimento de causa. Recordo-me, por ora, do célebre facto, que muitos julgaram, e julgam, passar a fato, sem que se dêem ao trabalho de ler o Acordo e procurem inteirar-se do que é a dupla grafia (há palavras que, dada a pronunciação diferente, não podem ser uniformizadas). Juristas escreveram artigos na ânsia de adiar o inevitável, procurando protelar o fim do período de transição...
O Acordo Ortográfico não está imune a críticas. Pelo contrário, bombardeado que é! Carece de ser reformado, de uma revisão. Há incoerências, há pontos a debater e a modificar, mas não prescindo da sua aplicação. É imprescindível, para a unidade da nossa língua, que procuremos chegar a consensos com todos os países-irmãos, sem arrogância, sem pedantismo. O maior património de que dispomos é este idioma, a ponte que nos leva das Américas ao Oriente. Não jaz na Europa a possível salvação de Portugal, e sim no estímulo dos laços histórico-culturais com os territórios que outrora dominámos. E a língua é essa travessia. Caso contrário, arriscamo-nos a pagar um preço demasiado elevado.
Queremos uma língua portuguesa. Uma. Dispenso uma miríade delas, com outras designações e completamente desvirtuadas ortograficamente. Vale o esforço, assim creio.