30 de outubro de 2012

Ainda são cinco!


   Não me custou acompanhá-los até ao centro de cópias. Compreendo os seus motivos e vejo uma utilidade para quem comprar um manual original se torna inacessível.
   A mudança de hora perturba-me nos dias iniciais e, enquanto sinto o efeito, acredito que saio da faculdade às dez da noite. Como não me dou ao trabalho de ver as horas no visor do telemóvel, confio. Continuo a não querer nada com relógios de pulso.
   A sola das botas, novas, desliza como o faca no creme de barrar o pão. A pedra da calçada, húmida, favorece a minha propensão para perder o equilíbrio. Não acompanho o passo acelerado das pressas das 17 horas, síndrome de barcos que terão de apanhar e de comboios lotados. Tivesse juízo e teria ficado a pesquisar legislação para a pergunta da semana, na biblioteca das estantes de folha de pinho.


- Mais elementos jurisprudenciais!


   Sim, drª.

   Regressamos de noite e os braços reflectem a fragilidade física. A cabeça ressente-se do burburinho do caminho. Desejei, momentaneamente, ser forte e ágil. Houvesse curso que mo ensinasse e frequentá-lo-ia.
   Um sem-abrigo percorre o trilho acidentado que liga o jardim à avenida. Por entre os dedos, um cobertor que aquece a sua exclusão. Fala sozinho. Um dia chamaram-no de louco. Louco, como nós.

26 de outubro de 2012

O mundo numa sala.


   A minha turma deste ano é substancialmente diferente de qualquer uma que integrei. Para além de mais calma, tem uma componente multicultural que me agradou. Devido ao facto de ser reduzida no número de alunos, decidiram colocar os estudantes estrangeiros, do programa Erasmus, na frequência das aulas connosco.

   Há estudantes de várias partes da Europa: Holanda, Eslovénia, Grécia, Espanha, Polónia e Itália. A par destes, há um significativo número de estudantes brasileiros, o que se explica pela afinidade entre os dois países.
   A dinâmica das aulas também varia consideravelmente em relação aos anos anteriores. Alguns professores dividem-se em três línguas, nomeadamente o castelhano, o inglês e, claro está, o português. A uma disciplina preteriu-se mesmo a língua portuguesa ao inglês, uma vez que o núcleo da cadeira é essencialmente internacional, incluindo manuais a consultar e demais elementos.

   A cultura de cada um desses alunos evidencia as suas origens. Os dois rapazes espanhóis são extrovertidos, assim como o rapaz italiano, fazendo jus à sua herança genética latina. O aluno holandês e a aluna polaca são calmos e de parcas palavras. Todavia, ninguém bate o contingente brasileiro no que à alegria diz respeito. Cada elemento da turma, em si, abraçou este ou aquele estudante estrangeiro, o que reflecte a personalidade de cada um que se coaduna com a do outro. Eu costumo ficar ao lado do rapaz italiano.

   Está em Portugal há um ano e domina muito mal a língua portuguesa. Falamos em inglês, o que até é um auxílio para que desenferruje os alicerces. Não há nada como a nossa língua materna que, unanimemente comprovado, é aquela em que melhor exprimimos as nossas emoções. É como se perdesse um pouco do meu eu quando falo com ele. Falta uma peça na minha engrenagem e acabo sempre por me sentir um autómato. As línguas francas e secundárias só dão bom resultado no plano estritamente profissional / estudantil.
   O italiano é uma língua com pouca expressão, seja na Europa, seja no resto do globo. E ninguém fala italiano naquela sala. Disse-me que traduz os textos do português para o italiano, mas que a tarefa se torna demasiado difícil quando se apercebe de que, literalmente, não consegue encontrar uma lógica nas frases traduzidas. Resta-lhe deduzir o essencial.

   Sentamo-nos um ao lado do outro para que possa ler pelos meus códigos. Hoje, uma rapariga que jamais vira por lá sentou-se à sua esquerda e facultou-lhe as suas folhas para que ele tirasse pequenas notas. Ele deu-lhe alguma atenção e eu senti uma ponta qualquer de ciúme que não pude entender. A sua forma de se relacionar comigo, rindo-se e cumprimentando-me sempre, inclusive dirigindo-se em concreto a mim, fez-me criar um laço de afecto. Não sou o que se poderá designar como uma pessoa de fácil trato; não sou dado; não sou de falar a tudo e a todos, tampouco de me dar a conhecer. Ele cativou-me pela sua espontaneidade e simpatia, ao ponto de às vezes não me imaginar naquela sala sem a sua companhia. Será uma inevitabilidade.

  Talvez veja mais do que afinal existe. 
  Talvez dê importância ao que não deveria. 
  Talvez desconheça o meu lugar, resquícios de não estar habituado aos revés do querer.
   

24 de outubro de 2012




" You're a song written by the hands of God,
Don't get me wrong
'Cause this might sound to you a bit odd.
But you own the place
Where all my thoughts go hiding,
And right under your clothes
Is where I find them. "




Underneath Your Clothes

22 de outubro de 2012

Canetas de cor.


   Vejo a monotonia presente nos cadernos dos meus colegas e sinto-me infantil. Terei resquícios de uma adolescência que teima em não terminar? Os títulos a vermelho pálido não me seduzem, bem como a ausência de setas que compõem os esquemas que os professores ditam apressadamente. E, depois, quando tento arranjar justificações plausíveis para a ausência de brilho naquelas anotações, chego à conclusão de que todos são mais práticos do que eu. Que culpa me imputar?, se gosto de dividir os itens com algarismos, circundando-os com a cor roxa; o que poderei fazer?, se as setas são a amarelo-torrado e os subtítulos escritos a verde-claro.

   Os professores não se compadecem de algum brio da minha parte: comungam da mesma característica de falar sem que a inspiração seja perceptível. Desenvolveram - quem sabe - uma qualquer técnica em comum com vista à sabotagem dos meus apontamentos. Não, recusar-me-ei a usar a esferográfica preta até à última disciplina que faça. Tornar-se-ia impossível estudar sem as chavetas a azul-marinho.
 
   Uma colega zomba da minha eficácia em conseguir acompanhar o discurso dos regentes, não deixando nenhum pormenor ao acaso. Indaga-se sobre a necessidade de tanta arrumação visual.

   O que ela não sabe é que eu crio o meu próprio mundo quando os pensamentos não assentam nas cadeiras envernizadas da sala de cheiro a cortiça e cor âmbar. Os meus livros sou eu que os escrevo, claro, e não contêm milhentos artigos enfadonhos e poeirentos que, parafraseando Rousseau, nos acorrentam em toda a parte. A minha lei sou eu, assim como as cores me pertencem.

    Preciso de comprar outra caneta lilás.

19 de outubro de 2012

A rainy day.


   Sempre que digo a alguém que a chuva me incomoda, sobretudo quando estou carregado de livros, sou confrontado com os argumentos óbvios de que a chuva é necessária para a agricultura, para o equilíbrio do nosso ambiente, dos nossos ecossistemas... Acabo por anuir e por explicar, enfim, que até aprecio a chuva quando estou de férias, em casa, ou nos finais de semana, nos quais a posso observar sem sofrer os seus efeitos lógicos: molhar-me e, mal dos males, molhar os meus livros.

   Contudo, o que me aconteceu há uns dias irritou-me solenemente. A mãe não me pôde levar e estava suficientemente atrasado para não pegar nas chaves do carro. Resolvi sair de casa e assumir o perigo de transportar três códigos, a pasta com as folhas dos apontamentos, o estojo, e demais pertences pessoais. Cinco minutos a caminhar depois, um código resvala e a restante tralha resolve acompanhá-lo na súbita queda. O detalhe da sorte: caiu tudo a uns escassos centímetros de uma poça enlameada.

    Como detesto guarda-chuvas, e aproveitando o facto de não estar a chover no momento, saí de casa desprotegido. Começa a chover. Sou obrigado a andar em passo acelerado, ainda mal recomposto do incidente minutos antes, e sem ter verificado se algum objecto estava estragado. Cheguei ao metro ligeiramente molhado. Inexplicavelmente, não levei nenhum dos meus casacos com capuz. --'
   Pude ajeitar o cabelo e a roupa no meu reflexo exposto nos painéis de publicidade. Finalmente encontrei uma utilidade prática para aquelas enormidades inestéticas que nos bombardeiam com produtos, artigos e serviços a que ninguém presta atenção.


   Creio que nunca abordei uma das minhas manias: preservar ao máximo as coisas, sejam quais forem. Um livro, uma peça de roupa, um electrodoméstico. Não consigo ver riscos e até os sinais próprios da deterioração natural imposta pelo uso me perturbam. Facilmente se conclui de que estava bastante incomodado com a hipótese credível de ver a pasta inutilizada (pelo menos à luz dos meus critérios) e os livros molhados, com páginas rasgadas e manchadas de terra humedecida. Exceptuando umas marcas pontuais, o resultado final não foi dos piores cenários que conjecturei.

   Rezei para que à saída não caísse a menor gota do céu. Fizeram-me a vontade.

14 de outubro de 2012

A menina resiliente.


   Nunca antes havia tido um contacto próximo com uma pessoa diferente. E uso este adjectivo com um propósito: deficiente ou incapacitado mexe de uma forma brutal com a minha consciência. Limitações todos as temos e, por vezes, mais fustigantes.

   A S. é uma menina especial. Não rejeita uma manifestação de auxílio, nem se afasta das pessoas. O facto dos seus olhos apenas distinguirem a claridade da penumbra não a tornou uma pessoa amarga; pelo contrário, apurou-lhe os restantes sentidos e a sua perspicácia. Sendo mais velha do que eu três anos, já tendo reprovado algumas vezes, torna-a mais experiente. Durante o ano lectivo passado fui aproximando-me dela, embora tenhamos começado a falar sobretudo a partir do início deste ano. Disse-me que é discriminada, fenómeno que atribuí talvez a alguma piedade de terceiros que ela interpretasse mal. Não. Bem mais grave do que isso: sente a maldade e a piada infame frequentemente.


- Olha ali uma cega! (risos)


   Quando mo disse, senti-me num lugar desconhecido e inóspito. Afinal, onde estou eu? Que lugar é este? Reduzi o preconceito ao seu âmago e vi a ignorância a jorrar por entre o seio da palavra. Diminuí-a ao seu ínfimo e pude ver o quão horríveis podem ser as pessoas. Ela riu-se. Nada abala a sua determinação em concluir os estudos e ser alguém.

   Um colega interpelou-nos, na sexta-feira, afastando-se de seguida. É um rapaz simpático e afável. A S. pôde percebê-lo na sua voz. Como exemplo, ela reconhece-me, pela voz, a vários metros de distância. Peremptoriamente, disse-me: "Achaste-o querido". Sorriu, naquele sorriso em que caberia o mundo. Ao tentar explicar-lhe de que ele me fora indiferente nesse sentido que pude perceber no seu tom, ela alertou-me para que não ficasse preocupado. Com ela estaria sempre à vontade. 
   Senti-me castrado. Qual de nós será mais limitado? Eu, com uns olhos que não enxergarão os sentimentos que a sua sensibilidade consegue intuir?

   A mãe da S. teve uma reunião e avisou-a de que não a poderia ir buscar. Predispus-me em acompanhá-la à paragem dos autocarros e aguardei pela chegada do veículo que a levaria a casa. Ao despedir-me, num ímpeto que não pude controlar - e com a voz embargada - sussurrei-lhe:

"Os estudos não farão de ti alguém. És mais alguém do que qualquer um que já conheci."

11 de outubro de 2012

Os clássicos e a pena.


   A finalidade última de uma sanção penal é bastante antiga. A ideia de que a determinada conduta, errada, corresponderá uma medida punitiva, existe desde o início dos tempos. Arriscaria mesmo a dizer que em qualquer sociedade, mesmo na mais primitiva, existirão regras e as correspondentes consequências negativas para o incumprimento das normas pré-estabelecidas. De outra forma teríamos o caos.

   A ideia retributiva já estava presente em Platão (séc. V - IV a. C) e, mais tarde, em Kant (1724 - 1804). Dos tempos em que vigorava a Lei de Talião, «olho por olho, dente por dente», uma espécie de catarse, de vingança da vítima, já podemos encontrar este simbolismo. Para Platão, não existia um fim exterior à pena. A pena serviria para conciliar a pessoa consigo mesma. O próprio, assim, libertar-se-ia da injustiça cometida, da sua intemperança. Já Kant, na sua obra (fantástica, digo eu) Fundamentação da Metafísica dos Costumes, defendeu a tese de que a pena teria inevitavelmente de ser aplicada. O extremo do seu racionalismo é visível nesta obra. A pena serviria para que, cito, «o sangue derramado pelo assassino não recaia sobre os outros».

   Esta visão kantiana encontra também fundamento no Antigo Testamento: a responsabilidade colectiva, que é facilmente observável nas pragas infligidas aos egípcios por Deus, através de Moisés. Ou seja, se uma sociedade não pune uma conduta reprovável, assume-a. Existirá aqui, porventura, alguma leitura moral da pena.

   Hegel (1770 - 1831) não utilizava o sentido moral como ideia fulcral. Para este autor, o crime é a negação do direito; a pena é a negação do crime, logo, é a afirmação do direito. Hegel detestava as realidades substanciais: preteria-as às suas considerações lógico-formais. Pensava no crime como uma ideia; na pena como uma ideia. A pena, em si, é algo que se sofre.

   O crime é uma negatividade, sendo o nada e existindo como referência. Existe em relação ao direito, que se dirige como uma vontade da comunidade alicerçada em bens e valores. Ao negá-lo, o crime vê-se na sua força, o que implica um reconhecimento tácito do direito. É uma relação lógica de necessidade.

   Em Hegel e em Kant encontramos a racionalidade do agente. Para Hegel, punindo o criminoso, o direito reconhece-o como ser racional que conhece as regras a que está sujeito. Hegel vai mais longe: é como se o criminoso pedisse a pena. A pena honra-o, fazendo jus à sua racionalidade. Também em Kant, o criminoso sabe que vai ser punido: quer, decide, age.

   No plano das ideias, não haverá um vínculo lógico entre o crime e a pena. Todavia, como é evidente, não há pena sem crime.

7 de outubro de 2012

A fragilidade.


   O limiar, ténue, que separa a vida da morte perturba-me. Faço raciocínios à partida ridículos, pegando na hora da morte de alguém e imaginando que, escassas duas horas atrás, em grande parte dos casos, o que se passaria não poderia sequer ser conjecturado. Isto, evidentemente, nos casos de mortes trágicas ou inexpectáveis. Raramente temos a percepção de que somos matéria, disforme e perecível; um pedaço maior ou menor de carne, dependendo da vontade de um músculo que bombeia a vida através de vasos que percorrem o nosso corpo. E, na sua presença, derradeiramente caem sonhos, planos de futuro e esperanças. Tudo é vão.

   Tratando-se de pessoas novas, ponho em causa o trabalho e a dedicação, o esforço em atingir objectivos. Qual o propósito se é tudo demasiado efémero?
  A morte recente de Margarida Marante pairou sobre mim durante os últimos dias. As recordações de a ver no pequeno ecrã são escassas, embora existam. Sabendo da notícia, disse-a rapidamente à mãe, que não disfarçou a sua incredulidade. Conhecera-a há duas décadas, por aí, através de amigos comuns. Estiveram juntas em algumas ocasiões, mais ou menos formais, sendo suficientes para que guardasse algum tipo de ideia formulada sobre a senhora. A determinação, o seu carácter não consensual (não serão enfadonhas e previsíveis as pessoas consensuais?) e o rigor na sua área, dedicando-se afincadamente, contrariando a sua juventude e inexperiência, são memórias que ficam. Enquanto mulher, disse-me, era altiva, contudo cordial. Um valor de uso rápido, desgastado, que as intempéries fizeram questão de arruinar.

   Aconselhei-a a passar pelo local onde jazia em câmara ardente. A sua inclinação para o fazer ajudou ao mote. No meu caso, não faria sentido e talvez me perturbasse. Sou demasiado susceptível ao sofrimento alheio e a emoções fortes. Seria o suficiente para matutar dias e dias, num claro registo de máquina fotográfica, cujas imagens só a custo são apagadas. Fora-me melhor assim.

   Cinquenta anos de vida, actualmente, é deixar tanto por fazer. Não deixa de ser injusto. Complexo será viver em paz, se a inevitabilidade da morte estará sempre presente.

4 de outubro de 2012

Conceito Material de Aula.


  Pegando numa designação da minha excelentíssima regente (tira-se o chapéu inexistente), referente aos crimes e demais, apliquei-o - e bem - às minhas aulas ou, pelo menos, às primeiras impressões que retirei até ao momento.

   Sinto-me num tribunal a todo o instante. A coisa ganhou uma seriedade tal que não sei se já amadureci o suficiente. Criminosos, vejo-os por todo o lado. Acções a todos os títulos e por todos os motivos. Dignidade constitucional e falta de tutela. Só faltam mesmo as grades.

   
   A sala tem um tom amadeirado que me tranquiliza, no odor, envernizado, e nos cascos a cortiça a que a tinta da parede me remete. Ao entrar pela primeira vez, lastimei o facto de nunca ter dado com tal divisão universitária (o que jamais aconteceria caso tivesse cinco anos, na altura em que explorava o mundo... bom, o meu mundo...) para estudar ou, tão simples, para desfrutar de dez minutos de sossego.

   Alguns professores assustam-me. As suas expressões, tendo em vista provocar reacções de medo nos alunos, não me parecem um método pedagógico aconselhável; conquanto, penso se não será um estímulo para que criemos fortes barreiras psicológicas ao confrontar, no futuro, os impiedosos delinquentes deste país.

   Os colegas, repetentes, adoram sobrepor as suas vozes às nossas tímidas respostas de meros iniciantes no mundo judicial. Sim, iniciantes, que a minha licenciatura começa verdadeiramente no terceiro ano. Depois, regozijam-se das suas respostas assertivas, esquecendo-se, porém, de que a inspiração, eufemisticamente falando, faltou quando era mais solicitada... e útil.
   Amuo, abro o estojo, tiro a caneta roxa e desato a sublinhar as partes mais importantes dos apontamentos, quando o que queria fazer era pintar uma bola branca, a corrector, no nariz do engraçadinho da última fila.

   Deveriam criar um artigo que enunciasse uma norma respeitante ao bom senso.

2 de outubro de 2012

All I wanna do is love your body.








   


« Tudo o que eu quero fazer é amar o teu corpo; esta noite é a tua noite de sorte, eu sei que tu queres. »







Excelente lead single :)