27 de abril de 2023

1984.


  Mais uma falha, quiçá. O 1984 é um daqueles clássicos que devemos ler logo assim, à primeira, quando nos iniciamos nas leituras sérias do período pós-adolescência, no entanto, no meu caso, provavelmente pelas convulsões de dito período e pelo assédio das redes sociais mais tarde, acabou por não acontecer.

   Orwell cria uma sociedade distópica e totalitária que, julgamos, já não faz muito sentido com o fim da União Soviética. Mas faz. A Rússia continua um autoritarismo, temos a China, e temos tantas outras sociedades espalhadas pelo mundo onde se desrespeitam os direitos humanos mais elementares. Na Oceânia de Winston, o indivíduo não existe como tal. Ou é força de trabalho (prole), ou trabalha na máquina do estado. Ainda assim, o que me perturbou mais de todo aquele terror não foram, curiosamente, as torturas e assassinatos políticos, senão a eliminação da História e de todos os factos embaraçosos para o Partido. Eliminava-se e já está. Não se limitavam a, suponhamos, eliminar uma pessoa; eliminavam tudo o que lhe dissesse respeito, toda a memória histórica, e era como se nunca tivesse pisado a Terra. Manipulavam todos os factos históricos, destruíam os que não serviam os propósitos do Partido. Foram além disso, criando uma língua tão primitiva que, no limite (e aí sim vi a sátira de Orwell), os levaria, àquelas gentes do superestado, a emitir simples grunhidos. Eliminando-se palavras, eliminava-se o que elas significavam; reduzia-se o pensar ao máximo. A própria ideia de transgressão deixava de fazer sentido, ao se perderem os instrumentos que nos podem levar a maquinar, engendrar, a transgressão. Entrava-se, como nunca se fez, no último recôndito intransponível do indivíduo: a sua consciência do seu estado e entorno.

   Só não direi que ler esta obra-prima teria quase que ser obrigatório porque não - devemos ter a liberdade de escolher o que queremos e não queremos fazer.

16 de abril de 2023

Direito à Habitação vs. Direito à Propriedade.


   Não irei tornar esta experiência numa coisa chata de se ler, nem irei recorrer ao Direito (que já deixei há imenso tempo, e os livros só não ganham pó porque os limpo). 

  Tenho acompanhado toda a polémica que as novas medidas do governo português quanto à habitação têm suscitado. Aqui em Espanha, há muito tempo que o problema da falta de habitação digna, que se agrava ao (continuar a) ser o país da OCDE com a maior taxa de desemprego, se coloca, levando até ao fenómeno da ocupação de casas abandonadas e inclusive segundas casas de pessoas que podem ter uma segunda casa: chamam-se ocupas, e em Portugal começa a haver uma tendência nesse sentido (que a bem ver até me estranhava que não houvesse ainda). Tivemos, sim, nos tempos conturbados do PREC, ocupação de casas e apartamentos, porém, tudo se deu num momento histórico mui particular, ao passo que aqui, em Espanha, é um problema social e político grave com o qual toda a sociedade se debate: a princípio, ocupavam-se as casas abandonadas dos grandes grupos financeiros (o mesmo que se dizer bancos), e não raras vezes há pessoas que chegam às suas casas e as têm ocupadas, e não se pense que é fácil tirá-las de lá, como o bom senso crê. Não é. O imbróglio jurídico pode durar anos.

   Quiçá tenha sido tendo a situação do país vizinho em conta, e para não permitir que ganhe em Portugal a dimensão que tem aqui, que o governo português adoptou as medidas mais recentes quanto à política habitacional. Eu estou confortável para falar do assunto porque não sou um grande proprietário: mais do que “obrigar” a que os proprietários arrendem, o Estado deve cumprir aquilo que a Constituição determina, e para o qual o incumbe, e construir fogos para que os cidadãos mais carenciados possam aceder a uma habitação digna a rendas razoáveis: há programas desses, porém, continua a não haver casas suficientes. É um problema do Estado, e não do cidadão que, à custa do seu esforço, ou por herança, seja como for, tem o seu património imobiliário, que é seu, e cujo direito tem de ser respeitado.