27 de fevereiro de 2019

Oscars.


   Claro que um cinéfilo como eu não podia perder a edição dos Oscars. Domingo fiquei acordado madrugada fora para saber quais as escolhas da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas. Não houve grandes surpresas, devo dizer. Como sempre, há aquelas categorias intermédias, que servem mais para, e perdoar-me-ão a expressão, encher chouriços. O que queremos saber é quais foram os melhores actores e actrizes, secundários e principais, e qual foi o melhor filme e o melhor realizador, entre outras que, não obstante terem menos interesse, poderão até dar-nos certas luzes (darão?) sobre as escolhas da Academia nas tão almejadas categorias.

   Em Melhores Efeitos Visuais, First Man arrecadou a estatueta. Não fiquei admirado. É um filme excelente, que versa sobre a chegada do homem à lua. Pelos seus efeitos, mereceu. Em Melhor Edição de Som e Melhor Mistura de SomBohemian Rhapsody, e bem também, no meu entender. O som do filme, o que não é difícil com os Queen como pano de fundo, bem o justificava. Bohemian Rhapsody também ganhou em Melhor Edição e, como sabemos, a grande alavanca do filme, Rami Malek, recebeu a estatueta de Melhor Actor. Sempre disse que estávamos perante o melhor Freddie Mercury da sétima arte, e a Academia seguiu o meu entendimento.

    Em Melhor Filme EstrangeiroRoma ganhou. Era o grande favorito, também para Melhor Filme, o que não se confirmou: Green Book recolheu o troféu mais aguardado. Eram os meus dois favoritos. Qualquer um dos dois, quanto a mim, merecia o Oscar de Melhor Filme, em larga vantagem sobre os demais que concorriam. Relembro que vi todos os nomeados para Melhor Filme, excepto o Black Panther, porque não aprecio ficção.

   Em Melhor Realizador, Alfonso Cuarón, de Roma, levou o prémio para casa. Também se justificava. Roma é um grande filme, muitíssimo bem dirigido. Fez-se justiça. Depois, em Melhor Actriz, aí sim tivemos uma surpresa: Olivia Colman, por The Favourite. É o seguinte: eu não lho daria. Não deixou de ter um desempenho superior, mas havia outras actrizes que o mereciam mais, desde logo Gleen Close, que anda há anos à espera de um, por The Wife. Não considero que os desempenhos de Yalitza Aparício, por Roma, ou de Lady Gaga, por A Star is Born, lhe tivessem sido superiores. Gaga que não conseguiu fazer a dobradinha, levando, assim mesmo, o Oscar de Melhor Canção Original, por "Shallow".

    Em Melhor Actor Secundário, Mahershala Ali, por Green Book. Gostei imenso do desempenho do actor no filme. Mereceu-o. Em Melhor Actriz Secundária, Regina King por If Beale Street Could Talk, filme que vi hoje e sobre o qual ainda não escrevi. Aqui, discordo da Academia. Qualquer uma das demais nomeadas, a meu ver, merecia-o mais. Eu tê-lo-ia entregado a Marina de Tavira, por Roma.

   Nos argumentos, Green Book levou a estatueta de Melhor Argumento Original, nada a apontar, e BlacKkKlansman em Melhor Argumento Adaptado. Também não tenho nenhuma ressalva a fazer.

   O Vice foi um dos grandes derrotados, porventura o maior. Só conseguiu ganhar o Oscar de Melhor Maquilhagem e Penteados, uma das menores categorias. Não critico. Efectivamente, não é um dos grandes filmes dos que estavam nomeados. Seria o mais fraquinho de todos. Talvez Christian Bale pudesse ter esperança em ser o melhor actor, porque o seu Dick Chenney vai fazer história, lá isso vai. O Roma também conseguiu levar o de Melhor Fotografia. Merecidamente. A fotografia é um dos pontos altos do filme de Cuarón.

    Há mais categorias, mas pouco me interesse suscitaram, ou porque não são das principais, ou porque foram arrecadadas por filmes que não vi. Caso do, como disse anteriormente, Black Panther. Li, e já agora faço uma menção, que dois portugueses participaram na longa-metragem / documentário que ganhou o Oscar na respectiva categoria. É uma pequena vitória nacional. Chama-se Free Solo, e vai ser transmitido um destes dias, num dos canais do cabo.


   A Academia procurou dividir o mal pelas aldeias. Gostei do facto de a cerimónia ter sido rápida, de certo modo. Não ter tido nenhum apresentador residente terá ajudado. Houve dois momentos musicais bastante bons. Logo o primeiro, dos Queen + Adam Lambert, que interpretaram os clássicos We Will Rock You e o hino We Are the Champions, e Lady Gaga com Bradley Cooper, em Shallow, num momento de grande cumplicidade entre os dois artistas. Um dos pontos altos do certame. 

    Haverá mais para o ano!

24 de fevereiro de 2019

Venezuela (II).


   Em Agosto de 2017, abordei a situação da Venezuela aqui no blogue, que já na altura era dramática. Nestes últimos dois anos, nada acalmou. Pelo contrário. Maduro insiste em levar o país para o limite de uma intervenção externa, porque na bancarrota já está. Milhares de venezuelanos arriscam as suas vidas para alcançar a fronteira com o Brasil, escapando à fome crónica, à escassez de medicamentos, de serviços básicos de saúde. A Venezuela, hoje, é o espelho do fracasso do socialismo. É a prova viva de que os regimes de esquerda não trazem quaisquer benefícios para o povo. Visam, tão-só, enriquecer uma classe política corrupta e sedenta por poder, que se perpetua e que coloca os seus nos sectores-chaves da economia, da indústria, como um polvo cujos tentáculos se fazem sentir em todo o lugar.

   Há um princípio básico, no direito internacional, de não-ingerência nos assuntos internos de outro país. No caso do país da América do Sul, já ultrapassámos esse limite, a partir do momento em que não há um poder reconhecido internacionalmente. A comunidade internacional divide-se entre Guaidó e Maduro, o último que só consegue vislumbrar reconhecimento entre regimes iguais, ditatoriais e desrespeitadores da dignidade humana. O mundo civilizado reconhece Guaidó por ora, sabendo de antemão que a solução para a Venezuela, no imediato, passa pela convocação de eleições livres e democráticas, para que o povo venezuelano, legítimo detentor da soberania, se possa expressar nas urnas e decidir o seu futuro. O futuro dos venezuelanos não pode ser sequestrado por Maduro, o último dos tiranos na América Latina. Maduro não encontra problemas éticos, morais, em mandar abater cidadãos inocentes. Os confrontos dos últimos dias na fronteira com o Brasil atestam a sua falta de escrúpulos, a sua desumanidade.

   Há casos de militares que conseguiram cruzar a fronteira e desertar. Entendem, e com motivos, que a solução para a Venezuela não é militar, e sim política. Maduro continua a procurar instrumentalizar as forças armadas para que o apoiem, sabendo que deixou de ter reconhecimento. A sua situação é profundamente ambígua. O que temo é que haja, efectivamente, uma intervenção externa em território venezuelano, conduzindo a milhares de mortes civis. Ele não desistirá tão facilmente. Acredito que prefira ser quase um mártir a renunciar livremente e permitir que a Venezuela possa enterrar este passado recente de miséria e sofrimento.

   No caso de Portugal, e tendo em consideração a comunidade enormíssima de emigrantes na Venezuela, temos de adoptar uma postura contida. Guaidó tem-se desdobrado em agradecimentos ao governo português. Guaidó não é um impostor, não é um usurpador. Como presidente da Assembleia Nacional Venezuelana, encabeça um dos órgãos de soberania daquele país. Não reconhecendo, como nenhum organismo internacional fidedigno reconhece, a legitimidade de Maduro, que se fez eleger num processo eleitoral pouco claro e com vícios, Guaidó, para que o poder não caísse nas ruas, encontrou, na sua autoproclamação, uma decisão temporária, até que se realizem eleições livres e representativas. É isto que se espera. Guiadó é presidente interino. É uma solução que até em Portugal encontra consagração constitucional. O Presidente da Assembleia da República pode, interinamente, ocupar o cargo presidencial, até à realização de novas eleições.

   O mais lamentável é que não se deixe a ajuda humanitária chegar àquelas população. Não quero imaginar o que será não poder dispor do mais básico para se acudir a uma emergência médica, ou pior: não ter que comer. Temo que qualquer provocação, do lado brasileiro, possa ser entendida como uma declaração de guerra. Morrendo um civil brasileiro às mãos de um militar venezuelano, Bolsonaro não hesitará. Esperam-se dias mui conturbados naquela região do globo.

22 de fevereiro de 2019

Cultural Sunday (take 29).


   Este domingo, o último antes de recomeçarem as aulas, levou-me à Casa-Museu Amália Rodrigues, na Rua de São Bento, próxima ao Rato. Por curiosidade, nunca antes a casa da Amália me havia merecido atenção, talvez por não me recordar dela.

   Fiquei com sentimentos mistos em relação à visita, e digo-lhes o porquê. O bilhete é caro, a meu ver, para o que se vê. Tenho ido a outras casas-museus, e até com mais interesse, e não pago tanto. Lembro-me, por ora, do Palácio Azurara e da Casa-Museu Medeiros e Almeida. Depois, parece-me que são demasiado intransigentes com as regras. Nada de fotografias e nem sequer se pode atender uma chamada. O lado bom é que todas as visitas são guiadas. No meu caso, era o único. Uma senhora, a Dona Estrela Carvas, guiou-me então pela casa que albergou Amália de 1955 até à data da sua morte, em 1999. Temos, à entrada, de colocar uns plásticos nos sapatos, o que se compreende porque andamos literalmente a pisar os tapetes da Diva do Fado.

   A casa, segundo me disse, está intacta, tal qual Amália a deixou. Pode-se visitar quase todos os cómodos, incluindo a copa e a cozinha. Cozinha modestíssima, diga-se, para alguém como a Amália, o que vem atestar, de certo modo, a simplicidade da artista. Para terem uma ideia, alguns azulejos da cozinha têm daqueles autocolantes. Uma cozinha velha, nada remodelada.

   No andar de cima, encontramos a sala de poesia da artista, o quarto da dama de companhia, a sala de costura e a suite onde Amália passou os seus últimos momentos de vida. Segundo consta, ela ter-se-á sentido mal ainda na cama. Caminhou até à casa de banho privativa, e por lá ficou, caída no chão, até darem com ela.

  Encontramos arte-sacra por todas as divisões. Amália era mui religiosa. Autodidacta também, segundo me contou a Dona Estrela, porque, por todos os países aonde ia, tinha de trazer um livro. Amália dizia que representava Portugal, e que uma pessoa que representa Portugal não pode ser ignorante. Falava cinco idiomas perfeitamente, não tendo frequentado qualquer curso. Era uma mulher culta. Aliás, Amália escrevia poesia. E cantou muito do que escreveu.


  De novo cá em baixo, há uma salinha adjacente repleta de fotografias da diva com inúmeras personalidades internacionais. Amália conviveu com a fina-flor do showbiz. Anthony Quinn foi seu amigo pessoal, por exemplo. Convidou-a para adaptarem, para o cinema, as Bodas de Sangue de Lorca, que Amália declinou, pois sempre se sentiu mui tímida. A sua personalidade introvertida não lhe permitiu construir uma carreira lá fora. Em todo o caso, encheu palcos pelo mundo, esgotando salas. Vendeu trinta milhões de discos.

   Foi uma visita agradável, mas esperava um pouco mais, sou sincero. A menos que a consideremos como uma passagem pela intimidade da artista, pela casa que estará perto da que deixou, em Outubro de 1999, gerando forte comoção nacional.

A foto, única permitida, foi captada por mim antes de proceder à visita.

17 de fevereiro de 2019

Vice & Cold Pursuit.


   Na sexta, voltei ao cinema comercial, para acompanhar o último filme que me faltava ver - com excepção do Black Panther, de que não gosto - de todos os que estão nomeados ao Oscar de Melhor Filme. No sábado, e não obstante ter lido uma crítica não muito abonatória na blogosfera sobre o filme, vi o Cold Pursuit.

   O Vice mostra-nos os bastidores do centro do poder da "nação mais poderosa da Terra", pegando nas palavras de Dick Cheney, um homem sedento de poder, mas habituado a viver na sombra, excelentíssimo pai de família. Há ali um momento em que Cheney não cede nos seus princípios, quando o confrontam, sendo republicano, com a homossexualidade da filha; no final, e já não sendo ele o visado, parece compactuar com a dita cedência de uma das filhas, que dá o dito por não dito em horário nobre da TV. Parece que Cheney, maquiavélico como só ele, não se importa em ultrapassar todos os deveres éticos e morais quando se trata de atingir determinado objectivo político.

  Alçando-se na teoria do poder executivo unitário, Cheney, braço forte de Bush filho, no filme retratado como um cowboy bêbado e inconsequente, totalmente estupidificado, justificou que o poder executivo, à margem do congresso, tudo pode, principalmente em tempos críticos, de guerra. Foi o que aconteceu no pós-2001, com a invasão do Afeganistão, do Iraque, com o uso da tortura e a manutenção de prisioneiros de guerra em prisões onde a Convenção de Genebra relativamente aos prisioneiros de guerra não era respeitada. Lembremo-nos de Guantánamo, por exemplo.

   Maquiavel. Nunca é citado, nem implicitamente, mas estou em crer que deve ser autor de mesa para Dick Cheney. Vale mais ser temido do que amado e, se tens de fazer mal, fá-lo de uma assentada. Cumpriu todos os conselhos do autor florentino de modo escrupuloso. Evidentemente que há mérito de um homem vindo do nada, apertado contra a parede pela mulher para que mude de vida e cresça. Ouviu o conselho com atenção e chegou à Casa Branca. Ser presidente não lhe interessava. Podia controlar tudo, e controlou, manobrando Bush filho e estando à sua retaguarda.



   Como referi acima, Cheney não se importou com a ética, e também nem sempre lhe importou o bem da nação. Sabemos, ali pelo meio, que havia uns esquemas, uns negócios, com petrolíferas e grandes empresas. Enfim, o Médio Oriente é rico em energias caras aos americanos. O resto, como sabemos, é história: não havia armas nenhumas de destruição em massa, no Iraque, e o 11 de Setembro deu até jeito àqueles senhores de guerra que crêem que os EUA devem desempenhar o papel de polícias do mundo.

    É um filme interessante, bem conjecturado, em forma de sátira, a um período da história recente do qual tão más recordações tempos. Quer o actor principal, que faz de Cheney (Christian Bale), quer a actriz que faz de Lynne Cheney (Amy Adams) e inclusive Sam Rockwell, no papel de Bush, estão, a meu ver, bem nomeados para os Oscars de Melhor Actor Principal, Melhor Actriz Secundária e Melhor Actor Secundário, respectivamente. Têm desempenhos que o justificam. A montagem, ou edição, também é um ponto positivo de Vice, como verão. É um filme dinâmico. Eu destacaria a cena em que Cheney está para entrar no seu gabinete da Casa Branca e, como que em retrospectiva, a sua vida, desde os tempos conturbados do início do casamento, se desenrola ante os seus olhos. A cena é impactante, porque vemos um vulto, estático, à entrada da porta. Um homem impenetrável, pragmático e poderoso. É essa a imagem com que ficamos de Dick Cheney. No final, quando se tenta justificar e nos encara, percebemos que nem ele se sentirá bem com o que fez, afinal, o mundo mudou muito por responsabilidade sua.


    O Cold Pursuit, e ainda bem que não me deixei levar pela crítica pouco abonatória, não sendo um filme maravilhoso, longe disso, vê-se bastante bem. Nunca vi tanta morte retratada de um modo tão leve, e mortes violentas, diga-se. O filme, e é um pormenor curioso, conjuga cenas de uma violência acentuada com um travo a subtileza que até nos arranca sorrisos, quando o que está em causa não é para brincadeiras: um pai, sedento por vingar o filho, traficantes de droga sem escrúpulos nem sentimentos, polícias, etc. O facto de ser ambientado numa cidade de gelo, extremamente fria, provoca-nos essa sensação de certo desconforto.



  As interpretações também não são brilhantes. Quando sabem da morte do filho, as expressões parecem as de alguém que está a, e perdoem-me a expressão, segurar o cocó. Faltou entrega. O filme até pedia mais, se formos a analisar racionalmente. O argumento, em si, pede mais entrega, mais garra.
   Cai facilmente no esquecimento.

16 de fevereiro de 2019

Le dix-septième parallèle.


   O paralelo 17, em português, foi o documentário que me levou, na quinta-feira à noite, de novo à Cinemateca. O paralelo 17 era uma linha imaginária que dividia o Vietname do Norte, socialista, apoiado pela URSS, do Vietname do Sul, suportado pelos EUA e pró-ocidental. Este documentário, gravado em 1968, a preto e branco, acompanha o dia a dia daquelas populações vivendo no palco de guerra.

   É muito interessante, sobretudo se quisermos ter uma melhor percepção do que foi aquele conflito e do impacto que teve nos vietnamitas, obrigados a construir abrigos subterrâneos, a interromper todas as actividades sempre que um avião americano passava. Aquelas pessoas estavam permanentemente em estado de alerta. As partes mais sensíveis são as que nos mostram crianças a ser doutrinadas (Ho Chi Min está sempre presente) ou a brincar com armas, já completamente ensinadas a resistir e a enfrentar o terrível inimigo norte-americano. E vemos crianças pequenas, uma com oito anos, destemida, a dizer que não teme a morte e nem qualquer americano. Que, sendo capturada, jamais revelaria onde estavam os adultos. Que a única coisa que temia eram os tigres. Na escola, não aprendiam a ler e a escrever, mas palavras em inglês para quando se deparassem com um soldado norte-americano capturado.



  Um tenebroso cenário de guerra. A história, essa, conhecemo-la bem. Os americanos retiraram-se, desgastados, e retiraram o apoio ao Vietname do Sul. O norte ocuparia o sul e reunificaria o país sob a égide de um regime socialista. A Guerra do Vietname, como assim ficou conhecida, deixou profundas marcas nos norte-americanos, que tiveram uma saída pela porta dos fundos, humilhante, e em todo o mundo ocidental, levando a que muitos jovens, nos loucos anos 60, juntassem a causa vietnamita à da democracia, nomeadamente nos países que ainda sediavam ditaduras, como Portugal e Espanha.

  Joris Ivens, sendo comunista, pretendeu ter uma visão algo equidistante, porque, efectivamente, não vemos nenhuma exaltação do comunismo. Ainda assim, e embora se tenha limitado a narrar a vida daquelas gentes, não deixava de acreditar na vitória do comunismo sob o imperialismo. Ivens sempre foi um militante antifascista.

  Aquando da realização do documentário, estávamos longe de saber qual iria ser o desfecho. O saldo da guerra foi bastante pesado, para os vietnamitas e para os americanos. Cometeram-se atrocidades, como massacres de populações civis e uso de armas químicas - o napalm -, que levaremos tempo a esquecer.

15 de fevereiro de 2019

Gata em Telhado de Zinco Quente.


   Mais uma noite na Cinemateca, mais um grande clássico. Gata em Telhado de Zinco Quente traz-nos grandes actores, em anos onde se produziam grandes filmes, com grandes interpretações. Tudo é grande neste filme, desde logo a presença de Paul Newman e Elizabeth Taylor, uma verdadeira gata de sensualidade e fogosidade.

   A acção desenrola-se numa casa de família, palco de disputas pela herança de um homem prestes a morrer. Disputa entre os seus dois herdeiros, sendo que a um, precisamente aquele que Paul Newman encarna, pouco lhe importam os bens materiais. Fala-se de desavenças, uma principal: entre Maggie e Brick, um casal, e entre Brick e Big Daddy, o seu pai.

   Ao contrário da peça que lhe serviu de inspiração, de Tennessee Williams, onde se explorava a homossexualidade de Brick, a Hollywood de finais dos anos 50 ainda não estava preparada para a abordar. As referências ficam mais ou menos implícitas, sob a forma de uma grande amizade. Claro que não vemos em como uma grande amizade entre dois homens poderá estar na origem da deterioração do relacionamento de um deles com a mulher, se entre eles não houver mais do que mera amizade.



    De um lado, vemos a falta de carinho, no caso de Brick, que cresceu rodeado de tudo, mas sem a atenção devida do pai; do outro, de Maggie, cujo marido não lhe nutre especial carinho até ao final do filme. Maggie que é profundamente altruísta e engenhosa. Engendra uma gravidez para que o sogro, que não durará muito mais, morra confortado, de certo modo. Casar-se, para ele, implicava ter filhos para se perpetuar, para que algo sobrevivesse com a sua morte. A ira de Brick, que o leva à destruição da cave, repleta de porcarias caras que pouco valem sentimentalmente, é o exteriorizar de uma raiva contida pelo casamento infeliz, pela infância e adolescência sem afecto de um pai presente fisicamente e ausente no carinho e pela morte daquele grande amigo, omnipresente na narrativa, Skipper.

    As interpretações, como referi acima, são inenarráveis. Muito ao estilo Broadway, na entoação das palavras, na teatralidade. Fazia-se cinema com uma paixão que não encontramos presentemente, quando poucos filmes, por melhores que sejam, e temos tido óptimos nos últimos anos, nos ficam na memória. Aquela Maggie de Elizabeth Taylor, mais do que o filme em si, é inesquecível. Não só pela sua beleza, e a beleza daquelas mulheres, a candura, era outra, mas também pela postura.

14 de fevereiro de 2019

Lebanon.


   Lebanon levou-me, pela sinopse, à Cinemateca. Meio indie, pretendeu, e conseguiu, ser um retrato cru dos horrores da guerra, no caso da Guerra do Líbano de 1982. O caricato neste filme é que a acção tem lugar, toda ela, no interior de um carro-tanque. Através da mira da arma, e peço desculpa por não entender nada da terminologia militar, vamos acompanhando o mundo cá fora. Há duas realidades, no fim: a do tanque, onde quatro homens e um prisioneiro de guerra, a partir de determinado momento, vivem literalmente, e a lá de fora, cheia de corpos e edifícios destruídos.

   Tudo é iminentemente sujo naquela guerra. A urina dos militares é quase que o simbolismo da podridão que grassa quando um homem empunha uma arma contra outro.

   É profundamente claustrofóbico, com poucos diálogos, bruscamente interrompidos pelo barulho da maquinaria, no tanque, que é como que a segunda pele daqueles homens. Há a destacar a cena inicial e a final, o prólogo e o epílogo, nos quais o realizador nos dá planos sobre um campo de girassóis, quiçá pretendendo restaurar a tranquilidade antes da guerra e aquela que se seguirá, direi eu, à reconstrução, demorada, após um grande conflito. Talvez também seja uma reprodução do imaginário daqueles homens, que querem voltar para casa, para junto dos seus.


    Dos poucos diálogos, os que há são dirigidos à família - o militar que quer que um superior informe os seus pais, velhinhos, de que está bem - ou a memórias de adolescência. É o escape possível no meio de uma incerteza. O minuto seguinte poderá trazer a morte.

    Os grandes planos do filme prendem-se em três momentos que acho oportuno relatar: o da mulher nua, despida na sua vulnerabilidade, sendo um testemunho do horror da guerra nos civis, e o do olhar de impotência / incapacidade de reacção no jovem militar, que vê tudo aquilo sem poder agir, com o pavor estampado nos olhos. Não conseguiu afastar-se emocionalmente, como seria pretendido num homem que vai para uma frente de batalha. Há um terceiro, quando o realizador leva a que o militar foque a mira nuns panfletos de uma agência de viagens destruída. Neles, podemos ver a Torre Eiffel, o Big Ben e as duas torres principais do World Trade Center, que existiam em 1982. O filme é de 2009 reportando-se a 1982. Quase um prenúncio da tragédia que viria. O realizador foi, ele mesmo, um combatente na guerra de 1982. Chama-se Samuel Maoz. A segunda guerra do Líbano, em 2006, ter-lhe-á servido de inspiração final.
 
   Neste Lebanon, estamos perto e simultaneamente longe da acção. Assim se movimentam as personagens. Estão perigosamente no centro onde tudo se passa, todavia, a uma distância aparentemente segura de um interminável conflito entre árabes e judeus.

13 de fevereiro de 2019

O Último Tango em Paris.


   Já tinha aqui referido que sou um apreciador dos clássicos e uma presença assídua na Cinemateca, que passa filmes fora do circuito ou já com algum manto de poeira. Foi o caso do filme desta segunda-feira, um clássico, que conhecia apenas de nome: O Último Tango em Paris, de 1972, com o inesquecível Marlon Brando e também com Maria Schneider, ambos já falecidos. Este filme, convém relembrar, só foi exibido nos cinemas portugueses no Verão de 1974, após a revolução, tal a celeuma que causou por esse mundo fora.

   É um clássico, irrepreensivelmente bem interpretado. Marlon Brando é, aqui, Paul, um viúvo destroçado pela perda, que nunca chegamos a entender bem o porquê: se pela perda em si ou se pelo facto de, talvez, nunca ter conseguido realizar as suas fantasias com a falecida (e suicida) esposa. Maria Schneider é Jeanne, uma moça jovem, sonhadora, enérgica, que se deixa encantar por um homem mais velho e experiente.

   A acção passa-se quase integramente num velho apartamento de Paris, onde os dois amantes se prestam a cenas sexuais ousadas, nomeadamente uma que levou a uma enorme polémica por envolver o sexo anal e uma aparente violação. Maria Schneider criticaria duramente Bertolucci e Brando. Com o primeiro, nunca mais reatou qualquer relação. Schneider faleceu em 2011, de neoplasia maligna da mama, vulgo cancro, e Bertolucci, mais tarde, reconheceu que se havia comportado mal com a actriz ao não lhe ter contado previamente dos contornos da cena.


   A escolha de Brando não foi casual. Brando passara por anos em que Hollywood o via como sex-symbol. No início dos anos 70, a idade já lhe trazia alguma decadência. O Brando que vemos em O Último Tango em Paris é um homem decadente, roçando os cinquenta anos, que se entrega ao prazer com uma jovem de quase vinte. Jovem essa que volta sempre ao apartamento, para ser usada como objecto de prazer. O filme é misógino. Jeanne é violada, lavada. O seu corpo é exibido. Nunca vemos Brando nu. Bertolucci explicaria que desnudar Brando seria como desnudar-se.

   A dor que encontramos no filme é dupla. Paul sofre intensamente. O sofrimento está-lhe no rosto, e Jeanne sofre por não se libertar daquele vínculo - o desespero por se libertar de si terá levado à atitude da cena final -, que Bertolucci, sabiamente, soube transpor, em sentido figurado, para a dor daquele membro a possui-la por trás.

   Bertolucci manipulou os actores, e manipulou aquela actriz, sobretudo. O apartamento velho é local onde as fantasias afloram à pele, palco de prazer e dor. De entrega. Um prazer pútrido até (a cena da ratazana). Ao mesmo tempo que quis criar um encantamento naquela descoberta, o realizador italiano quis-lhe dar um carácter sujo, imoral, reprovável, condizente, se virmos bem, com a malfadada cena de penetração anal com manteiga como lubrificante.

   É um grandioso filme, repleto de metáforas, sobre a impossibilidade de fugirmos ao que queremos, ao que nos controla, quando a carne carrega em si o fardo da morte. O Último Tango, foi, efectivamente, a última dança para Paul, mas a segunda, talvez, no acto de vida de Brando, que no ano seguinte entraria no The Godfather, de Coppola, com toda a projecção e reconhecimento internacional que conhecemos.

12 de fevereiro de 2019

Cultural Sunday (take 28).


   Este domingo cultural foi especial. Fui ao Museu Nacional de Arte Antiga, MNAA, ver a exposição, patente até ao final do mês de Março, de Joaquín Sorolla, o célebre pintor espanhol, Terra Adentro. Uma visita precedida, na quarta-feira, porque é o único dia em que está aberto, ao Museu da Saúde, ali perto do Campo dos Mártires da Pátria, mais quem vai em direcção ao Hospital dos Capuchos. O Museu da Saúde era o último museu lisboeta que me faltava conhecer, a par de um que não me suscita interesse algum, o Museu Cosme Damião, que todavia não rejeito conhecer, um dia.

  Talvez seja melhor começar pelo Museu da Saúde, sediado nas traseiras do hospital, no antigo edifício reservado ao serviço de neurocirurgia. Tem uma exposição permanente, sobre os "800 Anos de Saúde em Portugal".

Um dos corredores do Museu da Saúde

   É um museu pequenino. Estava quase vazio, não fossem umas ruidosas senhoras de alguma idade que se passeavam por ali, afinal, pouco viam. Desde que tenho ido mais ao cinema e aos museus, passei a valorizar o SILÊNCIO, em maiúsculas, assim mesmo, pois é uma virtude. É uma pena que as pessoas não saibam apreciar uma peça, um filme, em silêncio. Acredito que o facto de estarmos acompanhados nos impulsione a conversar, mas, ainda assim, no silêncio também há partilha.

Um esfigmomanómetro antigo

   O museu tem interesse por alguns objectos antigos, como um estetoscópio ou um esfigmomanómetro, material hospitalar, entre muitos outros. Também os livros médicos, a maioria do tempo de Dom João V. Tenham em atenção os anúncios afixados nas paredes, de prevenção em matéria de saúde, impecavelmente escritos na segunda pessoa do plural. Outros tempos... Não sendo deslumbrante, é bom para se passar parte de uma tarde. Por ali, também, temos o simpático jardim de Arroios, com patos e galinhas.

A Natureza tem destas. Trio Odemira?


   Ontem, finalmente, fui ver o Sorolla. Temendo que estivesse cheio, por ser domingo, não estava. Acredito que o preço, que nem é nada por aí além, desmotive as pessoas.

   Posso-lhes dizer que foi, de todas as exposições de pintura que vi, entre temporárias e permanentes, aquela de mais gostei. Primeiro, lá está, pelo silêncio, que ainda julgo impossível ter conseguido. Em segundo, pela qualidade do artista. Sorolla era incrível. O jogo de luzes, os reflexos, os temas escolhidos. Deslumbrante.

Terraço com Neve, 1885

   Sorolla, nas artes, ajudou a construir o conceito de Espanha-Nação, que, como sabemos, é de difícil aceitação e está longe de ser entendido e pacífico. Se o Mediterrâneo foi a sua paixão, Castela, bem assim como outras regiões do país, tais como a Andaluzia, desempenhou um papel predominante. Sorolla pintou-a, de Toledo a Burgos, passando por Segóvia e Ávila. Castela, uma região histórica tida como desértica e árida, adquiriu outro encanto nas suas telas. O tempo e a atenção dedicados pelo artista à Natureza, à arquitectura, à sua Espanha, no fundo, que tanto o apaixonou, permitiram-nos este acervo belíssimo, que os aconselho a visitar.

Campos de Trigos, Castela, 1913

   O mar e as representação de nus junto a ele também mereceram o olhar artístico de Sorolla. E é curioso quando verificamos que as figuras humanas são quase inexistentes quando pinta os vales castelhanos. Junto ao mar, na rebentação, retrata pessoas e animais, nas praias. Um mar que sentimos ondular sobre os nossos pés. Efectivamente, o jogo de luzes é o grande truque do mestre, que nos ilude e inebria.

Bois no Mar, 1903

   Sorolla viveu numa época em que Espanha perdia o seu vastíssimo império. Em 1898, com a perda de Guam, Porto Rico, Filipinas e Cuba, Espanha vai sendo expropriada de quase tudo. Urgia recuperar uma consciência nacional. Sorolla foi peça-chave nesse processo, pois predispôs-se a pintar o país e os seus habitantes. Espanha deixa de se procurar nas gestas do passado, reencontrando-se em si.

A Vindima, Jerez (de la Frontera), 1914

   Foi um dia muitíssimo bem passado. Aproveitei e dei uma vista de olhos pelo museu, que conheço de uma ponta à outra, detendo-me, aí sim, na Maria Madalena de Ticiano, que recebemos directamente da Rússia, do Hermitage de São Petersburgo.

Maria Madalena Penitente, c. 1560

   Não é a única Maria Madalena de Ticiano, mas, pela expressão da santa e pela paisagem que a envolve, é a mais emotiva e bem retratada

    Até para a semana, com a última visita cultural antes do regresso às aulas.

Todas as fotos foram captadas com o meu iPhone. Uso sob permissão.

9 de fevereiro de 2019

Capharnaüm e The Favourite.


   Dois filmes bastante bons, com destaque para o primeiro, Capharnaüm, que é um drama pungente. Ambientado no Líbano, acompanhamos o dia a dia de uma criança profundamente infeliz e maltratada, que não vai à escola e que é abusada física e emocionalmente por dois pais da pior índole. Nem tudo encontra justificação na cultura e na extrema pobreza. Há gente pobre que, ainda assim, têm muito amor para dar aos filhos.

   Este filme tem uma componente curiosa, tristemente curiosa: o actor principal, que faz de Zain, e cujo nome na vida real é também Zain, foi um refugiado sírio. Só aos 12 anos, idade da sua personagem, é que aprendeu a ler e a escrever, ou seja, há um acréscimo de veracidade naquela estória. E é lamentável que Hollywood não o tenha considerado assim e não tenha nomeado Capharnaüm também para Melhor Filme, e não apenas para Melhor Filme Estrangeiro.

   Não acreditamos ser possível ver tanta miséria, tanto desapego, tamanha indiferença pelo sofrimento de uma criança que se arrasta, sem ninguém, nas ruas. Que tem uma vida que a maior parte, e felizmente, dos adultos não tem, a quem a infância é roubada. Bem a propósito, e agora afastando-me um pouco da crónica, é curioso ter visto este filme num dia em que se fala da libertação de uma mulher, em Portugal, que há quinze anos matou a filha, e de um pai, há dias, ter matado a sua bebé de dois anos. Como escrevi numa rede social, os lares continuam a ser os locais mais perigosos para as nossas crianças. Quem as deveria proteger é, geralmente, quando há indícios de abusos, quem mais mal lhes inflige.

  Tornando a Capharnaüm, há um plano, que o realizador nos dá, que gostaria de destacar: a determinado momento, vemos aquele bairro de lata gigante, que envergonharia os do Brasil, desde cima, do alto. Os tectos improvisados, de chapa, estão seguros por pneus velhos. À medida em que a câmara sobe, os pneus parecem azeitonas salpicando uma imensa pizza de miséria e exclusão social.

   Zain é um adulto num corpo malnutrido. Um menino de extraordinário carácter e destreza mental. Infelizmente, nunca chegamos a saber o que aconteceu àqueles pais e à petição do pequeno, mas nem tudo corre mal, felizmente, para Yonas e Rahil. É um aviso, de facto, para que saibamos o que ocorre com milhões de crianças pelo mundo, no ano em que assinalamos o 60º aniversário sobre a Declaração Universal dos Direitos da Criança, aprovada pela Assembleia-Geral das Nações Unidas no já longínquo ano de 1959.

   Capharnaum, na Bíblia, é uma cidade com uma dinâmica mercantil acentuada, onde Jesus operou diversos milagres. Não sei até que ponto o realizador quis fazer o paralelismo. De facto, a vida não pára na cidade de Zain, e nós mesmos, no final, somos quase que convidados a assistir a um milagre, a um milagre de profunda alegria no meio de toda aquela desgraça.

   É um grande filme, bem narrado, bem enquadrado, que todos precisamos ver, por mais que nos custe.




   The Favourite deixou-me com sentimentos mistos. Não que não seja um bom filme, que o é, o que justifica todas as nomeações, e são dez, competindo com o Roma, mas porque eu o dividiria em duas partes: uma primeira sobejamente interessante. Vamo-nos deixando seduzir por aquela corte inglesa do século XVIII, pelo guarda-roupa, pela fotografia, pelos cenários, pelo toque sempre presente de humor polvilhado com alguma obscenidade, para, numa segunda parte, parecer-nos que o realizador se vê às voltas para dar um fim digno a um bom filme. É tudo bom, sejamos sinceros, mas há ali dinâmicas que seriam, a meu ver, desnecessárias.

   Abigail, de boa, quase que passa a má. Somos levados a apoiá-la, a torcer para que consiga cair nas boas graças da Rainha Ana; no fim, passamos quase a odiá-la. Afinal, não passa de uma mulher má e completamente inescrupulosa, capaz de tudo. Acreditamos, assim, nas palavras de Sarah à Rainha, antes do exílio forçado, que, embora a manipulasse, parecia mais sincera quando lhe dizia que parecia um texugo.



  O filme também não é inovador na fórmula: filmes de época puxam sempre para as intrigas palacianas, cenas de sexo, alguma fantasia. Uma vez mais, os pecados mortais estão lá: o luxo, a ganância, a cobiça, a luxúria, a lascívia. Não falta nada, nem, claro está, três inenarráveis interpretações, sim, logo três, completando o festim: Emma Stone, no papel de ambiciosa criada; Rachel Weisz, como favorita implacável, e Olivia Colman, como Ana de Inglaterra, uma mulher profundamente infeliz e influenciável, que se deixa manobrar sem muita dificuldade.

  The Favourite é igualmente bom porque não nos confunde. Não é pretensioso. Diverte com contenção. Não se cai na palhaçada fácil. De forma mais ou menos cómica e fantasiosa, mostra-nos aquilo de que somos capazes para subir na vida, nem que para tal tenhamos de amedrontar - com tiros, empurrões, venenos - ou dissimular sentimentos, sujeitando-nos a tudo. É uma análise social, em contexto oitocentista, que se manteria totalmente válida nos nossos dias.

7 de fevereiro de 2019

At Eternity's Gate e Destroyer.


   Um dia, dois filmes. E que filmes. At Eternity's Gate é uma intromissão despudorada na vida e na mente de um dos maiores génios criativos do século XIX. Neste filme, os planos é que o tornam verdadeiramente especial. Seguimos, quase como se fôssemos parasitas presos ao corpo, as caminhadas de Van Gogh. Vemos o mundo pelos seus olhos, e os seus olhos eram especiais. Dotado de uma sensibilidade extrema, Van Gogh, como o próprio bem o sabia, nascera fora do seu tempo. Não teve, em vida, o reconhecimento que só teria após a morte, décadas após a morte. Dedicando tempo e atenção sobretudo à Natureza, Van Gogh esculpia quadros, a bem dizer, porque em algumas das suas obras não hesitou em criar relevos. Adepto da pintura rápida, defendia que o pintor tinha de passar para a tela o que via e sentia, sem se demorar. Um génio.

  Teve uma paixão, que não sabemos nunca muito bem se homoerótica ou não, com Paul Gauguin, que, aliás, estaria na origem do acidente com a orelha. Van Gogh tinha visões. Hoje, provavelmente, diagnosticar-lhe-iam esquizofrenia.



  Willem Dafoe foi sublime na recriação daquele homem de vista esfumada, enevoada, que se compara a Deus perante Pilatos, afinal, também ele sabia que se comprometeria com tudo o que dissesse, e que o seu destino não estava nas suas mãos. Chegamos ao fim com a sensação de que o mundo é terrivelmente injusto com os grandes. É difícil ser-se especial no meio da trivialidade. 

   A fotografia é excelente também. Somos convidados a conhecer as paisagens que o inspiraram. A mergulhar na sua existência miserável, internado sucessivamente e tratado como louco, só podendo contar com as visitas ocasionais de um irmão cujo único talento era o de revender obras por outros pintadas. Vítima de ataques sucessivos dos que coabitavam de perto consigo. Um incompreendido.


   Destroyer é um estória de amor, no fundo, em torno de um argumento policial de vingança e de caça ao bandido. Percebemos que o que subjaz ao interesse daquela mulher polícia, durona, impenetrável, é vingar a morte do pai da sua filha, que perdeu após um golpe mal planeado. Nicole Kidman, e daí a nomeação para a estatueta de melhor actriz nos Globos de Ouro, tem aqui um grande papel. A caracterização ajuda, de facto, porque, em retrospectiva, vamos vendo cenas que contextualizam a acção; temos, assim, todos aqueles actores numa versão de há dezassete anos e numa que seria a actual, bem mais velhos. Kidman é Erin Bell, uma mulher cansada, que quase se arrasta, movida pela vingança e pelas tentativas mal-sucedidas de ajudar uma filha que foi, também ela, vítima dos seus pecados: um passado de ausências, de droga e de álcool, que se repercutem também no presente. Há cenas, nomeadamente uma de pancadaria, em que torcemos para que Bell se recomponha e retalie, porque, de facto, acreditamos na sua missão. Aquela mulher, pela sua fragilidade, ao mesmo tempo que cheia de fúria, dá-nos pena.



    O pormenor talvez mais interessante deste filme é que há papéis que geralmente atribuímos apenas a homens. A Bell, só vemos chorar pela filha, quando lhe dizem, para a magoar, que jamais será amada por ela. A cena final é de extrema emotividade. Talvez aquela adolescente venha, um dia, a reconhecer que, pese embora todos os erros, foi amada por uma mulher sofrida.

   Como referi acima, os dois pontos altos do filme são a interpretação de Kidman, que injustamente não foi nomeada para o Oscar de Melhor Actriz, e a caracterização. A maquilhagem, ou maquiagem, no Brasil, faz verdadeiros milagres. O resto é talento puro.

5 de fevereiro de 2019

Cultural Sunday (take 27).


   Este domingo, e por alguns contratempos pessoais - mãe doente -, não pude fazer o que estava planeado, ou planejado, como dizem os amigos brasileiros. Fui, ainda assim, ao Museu da Gulbenkian, da parte da tarde, ao seu núcleo de arte do fundador, o mesmo que se dizer arte antiga, que, desavergonhadamente, confesso que não conhecia, ou, se conheci, foi há anos. Apenas conhecia, com segurança, o núcleo de arte moderna. Aproveitei e apanhei o penúltimo dia de uma exposição interessantíssima, de seu nome Pose e Variações - Escultura em Paris no tempo de Rodin.

Máscara Funerária, Época Baixa, XXX Dinastia, 664 - 525 a. C

   Sobre a Gulbenkian, que é uma fundação, não há muito a falar que já não se saiba. O senhor Calouste Gulbenkian veio passar uma temporada a Portugal, lá nos idos anos quarenta do século passado, gostando tanto que ficou por cá até morrer. Legou, ao país, a sua colecção particular, para que se constituísse uma fundação. Como grande mecenas, e graças as seus negócios ligados ao petróleo, adquiriu, em vida, uma profusa colecção, que agora podemos apreciar.

Grécia, Ática, Agrigento, 440 a. C

   O senhor Gulbenkian era favorável à livre coabitação entre as diferentes religiões. Do Antigo Egipto ao século XX, reuniu um conjunto de obras espantoso, desde esculturas, a telas, tapeçarias, mobiliário, cerâmicas, jóias. Temos um pouco de tudo no seu espólio. O museu dividiu as peças em diferentes salas, subordinadas a diferentes épocas, que somos convidados a revisitar, começando, lá está, no Antigo Egipto e terminando já no século XX.

Par de potes, China, Dinastia Qing

   No ano em que assinalamos o 150º aniversário sobre o seu nascimento, devemos evocar este homem. Enriqueceu-nos, lisboetas e portugueses, com um espólio que qualquer país aceitaria. Tendo nacionalidade britânica e seguramente dispondo de contactos por todo o mundo, Calouste Gulbenkian confiou-nos o que tinha, talvez já intuindo que viveríamos em paz permanente e conhecendo a personalidade pacata e discreta dos portugueses. Sabemos que a arte se ressente logo em tempo de guerra, pelos saques.

Tapete árabe para oração. Ao centro, a indicação da direcção de Meca

   Vista a colecção permanente, passei, com pouco tempo, pela exposição temporária. Dependendo dos artistas escolhidos, a sensação de movimento pode ou não ser o elemento principal. Gostei particularmente de Rodin. A paixão foi-lhe um tema recorrente, e o nu, como se a nudez representasse a liberdade e a beleza infinitas. Os corpos atléticos, em poses viris ou sedutoras, quantas vezes arrebatadoras.

A Eterna Primavera, Rodin - inserida na exposição temporária 

O Rapaz das Cerejas, Manet, 1858

   Pelo museu, pelos seus concertos ou até mesmo somente pelos jardins, a Gulbenkian é um espaço incontornável da cidade, local de cultura e lazer. Foi um gosto.

Todas as fotos foram captadas com o meu iPhone. Uso sob permissão.

1 de fevereiro de 2019

Cold War, BlacKkKlansman e The Mule.

   Ando mui cinéfilo, sim. Hoje, trago-lhes três críticas a três filmes, sendo que os dois primeiros, Cold War e BlacKkKlansman, estão nomeados para o Oscar de Melhor Filme nesta edição de 2019, com emissão agendada para dia 24 do presente mês. Entre outras nomeações.

   Cold War, ambientado na gélida Polónia, tão deprimente quanto a longa, prometia muito, de facto, sobretudo pela atmosfera noir, proporcionada pelo preto-e-branco, que o realizador, Pawlikowski, lhe quis imprimir. Enquanto estória de amor, falhou, e falhou, quanto a mim, pela insuficiência das interpretações, e não pela narrativa em si que se criou em torno daqueles dois infelizes ligados à música. O filme funciona num retrato duro da realidade na Europa do Leste, com todo o culto de personalidade à mistura, que volta e meia surge-nos um painel de Lenine e Estaline. De certa forma, a cortina que os separou, a determinado momento, tinha um duplo sentido: o político e o sentimental. Também o artístico, se quisermos ver assim, porque a arte se sujeitava a directrizes do regime. Não havia liberdade artística alguma. A vocação era direccionada para a propaganda e o culto. De resto, creio que a Academia sonhou com um bom filme, porque, na verdade, não se justificam tantas nomeações. Gostei dos momentos musicais, nos quais, aí sim, a actriz principal se liberta. É o típico caso de um filme que tinha tudo para ser perfeito se os actores tivessem sido mais arrebatadores e convincentes.



   BlackKkKlansman é um filme em versão satírica ao KKK, Ku Klux Klan, uma organização americana supremacista e racista. Esse tom de gozação está presente desde o início, com um dos membros retratado como perfeito idiota, bem assim como a mulher de um outro, a gorda e anafada racista que serve bolinhos entre reuniões de gente que tudo quanto sabe é defender os seus ideais através da força bruta, o mesmo que se dizer das armas - sempre associadas aos membros do KKK e aos norte-americanos, em geral -, e de actos de puro terrorismo. O próprio dirigente, Mrs. Duke, foi enganado por um polícia esperto e atrevido, de farta cabeleira afro, que trocou as voltas àquela instituição e desvendou um plano terrível que visava eliminar membros de uma organização de luta pela afirmação das minorias raciais. As interpretações foram muitíssimo bem conseguidas. A fórmula de Spike Lee resultou. Sem se ser demasiado contundente, a crítica está lá, em forma de sátira, o que é manifestamente visível no final, quando nos brindam com uma claríssima associação entre Donald Trump e o KKK. Poderá haver manipulação apenas num sentido, é certo.



   The Mule é o novíssimo filme de Clint Eastwood. Desde logo, fala-se de um homem bom, de bom carácter realmente, que se deixa emaranhar numa teia de difícil saída. Mais do que ambição, que ali creio que não houve, Earl quis ajudar a família. Quis quase que reparar algum mal que lhes tivesse feito pela sua ausência, ausência justificada pelo trabalho, que sempre colocou à frente de tudo. Fala-se, ainda, de rectidão. Earl, veterano de guerra, durão,  não se deixa amedrontar, e particularmente no final, como verão, reafirma a sua honra. Já não se fazem pessoas assim. Gostei da antítese, do contraste entre o pacato horticultor que, num ápice, passa a principal mula de um narcotraficante mexicano. O modus operandi de Earl, mantendo-se um homem comum, jamais atrairia as suspeitas da polícia. Truque perfeito.
   Quem tudo quer, tudo perde. Earl não soube parar a tempo, e o novo chefe da máfia também se quis impor em demasia, levando a que ambos tivessem posto tudo a perder. Earl, se repararmos, nunca deixou de ser o mesmo homem - termina como começou. O que conseguiu, não guardou para si. Distribuiu.



   Hollywood gosta de abordar as questões raciais. Só num pequeno intervalo de tempo temos três filmes que, de uma ou de outra forma, os abordam. Earl, sendo um homem bom com um erro grave, refere-se aos negros como "pretos". Eastwood, aqui, quase num auto-retrato, porque é público que apoiou Trump e os republicanos, satiriza o americano médio, meio que bronco em alguns assuntos, e Earl, no alto dos seus noventa anos, pode dar-se a alguns deslizes.

   Magníficas interpretações, quer de Eastwood, realizador, director e actor principal, quer de Dianne Wiest, que faz de sua ex-mulher, verdadeiramente sublime, de uma classe e esmero únicos. É um excelente filme, num regresso em grande do mestre Eastwood.