O dia de ontem foi decisivo para Portugal. Acompanhei, como milhões, o escrutínio, as projecções. Cumpri com o meu dever cívico depois do almoço. Desde logo fiquei surpreso com a afluência às urnas, a maior de sempre desde que voto, transmitindo essa percepção a quem me acompanhava. A noite revelaria, contudo, que a diminuição da abstenção não foi tão expressiva.
As sondagens, nomeadamente a da Universidade Católica para a RTP, confirmaram as expectativas geradas: a coligação PàF obteve o maior número de votos; o PS foi o grande derrotado da noite. A extrema-esquerda, mormente o Bloco de Esquerda, aumentou a sua representatividade no Parlamento. A CDU foi ultrapassada pelo Bloco no número de mandatos, atingindo, ainda assim, um resultado digno. O PAN (Pessoas- Animais-Natureza) elegeu um deputado.
Em democracia, ganha quem obtém o maior número de mandatos. Nesse sentido, a coligação PàF ganhou e nada mais resulta do escrutínio de ontem. Goste-se ou não, eu não gosto, é a realidade que há e é com esta que temos de contar. Uma vitória pouco expressiva, consubstanciando uma maioria relativa, e não absoluta, pela qual clamava, e o PS. Os mandatos que conseguiu são insuficientes para um governo estável. Não mais se bastarão. A anterior maioria, agora minoria de direita, precisará de consensos. Consensos com o PS, uma vez que o BE e a CDU (desmembrando-se em PCP e PEV) não aceitarão quaisquer acordos, e bem, fiéis ao seu eleitorado, com a coligação. Convém que nos elucidemos de momentos próximos que poderão comportar instabilidade política. O que se segue a este acto eleitoral é um processo notório: o Presidente da República ouvirá os partidos com assento parlamentar, respeitando os resultados eleitorais (187.º, número 1 da Constituição, doravante CRP), e dada a sua ideologia política é natural que convide a coligação a formar Governo. Ainda que goze de relativa discricionariedade e que nada o obrigue a nomear Primeiro-Ministro alguém que careça da sua confiança, acreditamos que o faça e que indigite, num primeiro momento, e depois nomeie (133.º, alínea f) da CRP) Pedro Passos Coelho. Há uma coligação que se propõe a formar Governo, portanto tudo o indica. António Costa referiu que respeitará a decisão do povo, que manifestamente aponta no sentido de um governo da PàF, excluindo-se qualquer coligação pós-eleitoral com alguma das forças mais à esquerda do PS, o que poderia, embora altamente improvável tratando-se de Cavaco Silva, originar um cenário nunca antes visto de governo coligado à esquerda.
Após a nomeação do Primeiro-Ministro e restantes membros, o Governo entra em funções, todavia circunscritas à prática de actos necessários para assegurar a gestão do país (186.º, número 5 da CRP): estamos perante um Governo de gestão. A Constituição obriga à apresentação do programa de Governo na Assembleia da República no prazo máximo de dez dias, o que extraímos do artigo 192.º, número 1 da CRP. É neste momento que recaem todas as atenções, porque pode ocorrer algum destes cenários. Vejamos: pode ocorrer que um dos grupos parlamentares proponha a rejeição do programa do Governo, apresentando uma moção nesse sentido; assim acontecendo, se por maioria absoluta dos deputados em efectividade de funções for aprovada a rejeição do programa do Governo, o Governo fica automaticamente demitido (artigo 195.º, número 1, alínea d)), seguindo como Governo de gestão até ser substituído; se a moção de rejeição do programa do Governo não obtiver o número de votos suficientes para ser aprovada, o Governo entra em funções plenas. Numa segunda hipótese, pode o Governo solicitar a aprovação de um voto de confiança à Assembleia da República, podendo também ocorrer uma de duas situações: por maioria simples, o Parlamento pode aprovar a moção de confiança, entrando o Governo em funções irrestritas; o Parlamento rejeita a moção de confiança, o Governo fica demitido, uma vez mais (desta feita a alínea e) do artigo 195.º, número 1), permanecendo como Governo de gestão até à sua substituição. Pode ainda, numa terceira hipótese, não existir nenhuma proposta de uma moção de rejeição do programa, nem o Governo solicitar um voto de confiança; não havendo qualquer votação, o debate do programa do Governo prossegue e o silêncio do Parlamento vale como um voto de silêncio positivo tácito (expressão doutrinária minha), entendendo-se que a Assembleia permite que o Governo entre em plenitude de funções.
Sem maioria absoluta e sem qualquer acordo à vista com o segundo partido mais votado, a vida de um governo minoritário é difícil. Escapar às moções de censura da Assembleia da República, de maioria contrária, já não é possível com a sua expressão eleitoral. Um governo com maior número de deputados facilmente contornaria este mecanismo de controlo político do Parlamento. Também a aprovação de uma moção de confiança pode ser inviável, implicando a demissão do Governo. Num momento posterior, a apreciação do Orçamento de Estado por um Parlamento cujas cores políticas superam a cor política do Governo também poderá acarretar consequências graves para a sobrevivência de um governo minoritário. A apreciação dos decretos-lei do Governo pela AR é uma forma de controlo político que ganha contornos distintos, e gravosos, estando perante um governo de minoria parlamentar. E fazer submeter decretos-lei sob propostas de lei, no Parlamento, não garante a sua aprovação, que careceria de maioria absoluta (que assim escaparia ao veto absoluto dos decretos-lei pelo Presidente da República, absolutíssimo tratando-se de matéria reservada à competência legislativa do Governo).
O PS, não tendo ganho estas eleições legislativas, e verificando-se o cenário que tracei de constituição de governo PàF, minoritário, desempenhará uma função essencial, quer na aprovação (abstenção ou desaprovação) do programa do Governo, quer mais tarde, quando o Orçamento de Estado for apresentado na Assembleia da República. A coligação de direita não se basta, precisando de entendimentos com outras forças emanadas da eleição de ontem. A coligação PàF, por seu lado, terá de perceber o ligeiro cartão amarelo do povo, que se expressou na inexistência de uma maioria que lhe permita governar tranquilamente. O que infiro desta composição do Parlamento é o seguinte: o povo quer que a coligação continue a governar, acreditando num crescimento económico e no aumento do emprego expectáveis depois de tantas medidas de contenção e de austeridade, mas quer que o PS contrabalance, dê o seu aval em medidas sensíveis e cruciais. O BE e a CDU são a expressão desse descontentamento e da derrota do PS em assumir-se como alternativa credível e confiável. Não entrarei na análise à continuidade de António Costa no PS, decisão que compete aos militantes do partido. Gostei do seu discurso ao final da noite, ponderado, tão distinto dos discursos da coligação PàF, agressivos, pedantes, o que me leva a duvidar que tenham apreendido com clareza a vontade dos cidadãos.
A tarefa do Presidente da República reveste-se de especial relevo e cuidado. Também a Assembleia da República, quer a coligação, quer os demais partidos nela representados, deverá atender às necessidades do país. A instabilidade política, que de certo modo antevejo, traria um agravamento dos nossos problemas estruturais.
Conjunturas que se confirmarão, ou não, nas próximas semanas. Algo é certo: constituindo Governo, a coligação passará por momentos penosos no panorama parlamentar português desde a primeira reunião da Assembleia da República.