31 de outubro de 2015

O Pão por Deus.


   Quando os garotos subiam as ruas íngremes de paralelepípedo cinzento, húmido do orvalho de Outono, arredavam os seus medos. Por aquelas horas, sabiam-se os donos da aldeia, fazendo seu cada beco, o antigo pelourinho do sítio, o pátio da banca do Senhor João, que por tantas vezes os presenteava com figos sempre que, vindos da escola, por lá passavam.

    Martinho avisara atempadamente a avó, lavadeira, mulher a quem as moças instavam por conselhos, tornando a velha senhora no oráculo de Figueira da Luz, do seu fito para a noite de Todos-os-Santos. A pele das suas mãos mantinha notável brilho e maciez. Encontravam-lhe a alma, todavia, no olhar quebrantado, que denunciava uma vida que não conhecera sonhos de menina. Não havia quem a enganasse nos dinheiros. A sua argúcia impunha deferência e admiração.

     Corriam desalmadamente sob o signo da lua cheia, batendo de porta em porta, misturando a crendice com a pândega própria de miúdos que tudo quanto conheciam estava nos limites do lugarejo onde nasceram. Não percebiam a fome, os castigos, tareias, não enquanto houvesse casa a salvo do peditório.
     As trouxas, delicadamente cosidas pelas mães e avós, guardavam os doces e os frutos das oferendas. Martinho sustinha a sua, farto de orgulho, costurada pela avó, com o bordado de fio de linho azul. Ostentava-a com cuidado, como uma representação material do carinho daquela mulher a que nem o cansaço inibia de o sentar no seu colo, de lhe afagar o cabelo, de beijar a sua bochecha sarapintada.
        Que na sua casa havia carência de bens, mas fartura de afectos.

28 de outubro de 2015

Tertúlias.


     O Francisco fez-me o simpático convite uns dias antes. Estar com ele e com o Limite numa situação informalíssima: um lanche, que ficou acordado ter lugar na Av. António Augusto de Aguiar, ali pelos lados do El Corte, que adoro, não necessariamente pelo centro comercial (já gostava ainda antes da presença da catedral espanhola do consumo). É uma zona acolhedora, ao menos para mim. Av. de Berna, da Liberdade, Marquês, Parque Eduardo VII, Jardim Amália, ruas circundantes, são os meus locais predilectos na cidade, vá-se lá saber o porquê. Não têm nada de especial.

       O lanche teria outra surpresa, digamos assim: o Sad (desculpa lá, não consigo habituar-me a tratar-te pelo nome), que não via há para lá de dois anos.
       Cheguei primeiro e esperei-os. Pouco demoraram. O Francisco munido do seu guarda-chuva preto, que mal conseguia endireitar devido à força desmesurada do vento. O Limite acompanhava-o, de mochila às costas (como gosto de andar sem pesos, provavelmente terão reparado que deixei a minha Eastpak em casa). Enquanto o Francisco fazia os pedidos, guardei uma mesa, não fosse ocuparem todas. O Limite não tardou em sentar-se.

      Ficámos à conversa por umas duas horas (ou perto disso). Colocar os temas em dia. Um dedinho de prosa é sempre agradável, anima e não faz mal a ninguém. Creio que nos conseguimos abstrair na interacção com os demais. Eu fico melhor humorado. 
         O Sad surgiu passado algum tempo.

      Não saímos dali. As condições meteorológicas não eram favoráveis e o Limite tinha o seu bus para apanhar às dezoito e picos.
         Fica o registo. Com pouco aparato, mais intimista. Gostei.

24 de outubro de 2015

Caminhos.


    Na noite de quinta-feira, o país conheceu a decisão do Presidente da República cessante, Cavaco Silva. O Presidente decidira-se, e isso anunciava ao país, pela indigitação de Pedro Passos Coelho como Primeiro-Ministro de Portugal. Não pormenorizarei o processo que nos levou aqui, tendo abordado essa matéria, na perspectiva do direito, neste artigo. A indigitação distingue-se da nomeação. O Presidente da República tão-só convidou Pedro Passos Coelho a formar Governo. Este apresentará a sua equipa governamental perante o Presidente, que de seguida, concordando com esta, nomeará, em princípio, o Primeiro-Ministro indigitado e os membros que ele propôs. No supracitado artigo, encontrarão as fases subsequentes à indigitação e à nomeação.

     Muitos aplaudiram esta deliberação presidencial, argumentando que a coligação PàF venceu as eleições e que, nesse sentido, nada mais se esperaria do que a indigitação de Pedro Passos Coelho, ainda que vindo a liderar um governo de maioria relativa. Outros, pelo contrário, arguiram que a atitude de Cavaco Silva foi claramente tendenciosa e parcial, ignorando a maioria de esquerda que resultou do acto eleitoral legislativo e que poderia dar corpo a um governo de maioria parlamentar. Com efeito, nenhum mecanismo constitucional obrigaria o Presidente da República à indigitação do líder do partido ou da coligação mais votados. Por maioria de razão, o mesmo se aplica à nomeação. Isso mesmo tive o cuidado de esclarecer num outro artigo. A figura do Primeiro-Ministro indigitado não encontra previsão constitucional; decorre de um mero costume constitucional. É uma situação jurídica informal. Ao que Pedro Passos Coelho está obrigado, a partir de então, é a encontrar uma solução governativa estável e duradoura (o que manifestamente é demasiado complicado, para não dizer impossível). Não tendo uma coligação maioritária no Parlamento e não estando previsto qualquer acordo de incidência parlamentar com alguma das forças políticas que ainda sobram da composição da Assembleia da República, este presumível futuro Governo terá pela frente dias difíceis. Encontrarão, no primeiro link, as consequências deste cenário de instabilidade. Devo, contudo, alertar para uma hipótese que se poderá colocar: sabendo que não dispõe de condições para governar, pode Pedro Passos Coelho recusar formar Governo e devolver ao Presidente da República a decisão sobre uma nova indigitação.


     Considerando menos o direito e mais a política, Cavaco Silva, de modo a evitar uma crise de impasse governativo, tinha ao seu dispor outras soluções. Vim defendendo, e manter-me-ei coerente, que o ideal seria a coligação PàF governar. O povo foi contundente ao dar a vitória ao PSD e ao CDS. Quis que eles governassem, mas quis que o PS, ou outra força à sua esquerda, contrabalançasse os devaneios de um Governo emanado destes partidos, evitando repetir-se o que se passou nos últimos quatro anos. Direi mais: o povo quis chamar à responsabilidade, sobretudo, o PSD, o CDS e o PS - o designado arco governativo. Não tendo sido possível um entendimento entre os dois primeiros, coligados, e o terceiro, tão-pouco num acordo de incidência parlamentar que viabilizaria um governo, Cavaco Silva, que é Presidente e tem funções específicas e concretas, tinha o dever de encontrar outra solução que não esta, que de antemão sabemos inexequível. Acrescente-se que não obstante o Presidente da República não confiar politicamente nas forças à esquerda do PS, elas existem, são legais e devem ser chamadas ao poder. Os partidos não têm como finalidade ser a voz do descontentamento. Os partidos assumem compromissos. O eleitorado destes partidos deve saber que eles existem para governar. Os seus líderes sabem-no, daí que discorde das vozes que se erguem, à direita e até à esquerda, alegando que o eleitorado do BE e do PCP sairia defraudado num possível acordo com o PS. Não vejo o motivo. Se são minoritários e por si próprios não governam, poderão fazer parte de uma solução de consensos. Em defesa do Presidente da República, não de Cavaco Silva, devo dizer, porém, que nada obriga o Presidente a indigitar ou a nomear alguém que careça da sua confiança política, em qualquer dos sentidos que se queira (não obrigaria o Presidente a indigitar e posteriormente nomear Pedro Passos Coelho, como também não está obrigado o Presidente a possibilitar um governo do PS com o PCP, Os Verdes e o BE se nestas forças não confia). Concordemos ou não, é o que temos. Foi o que quis o legislador de 1975.

     Cavaco Silva seguiu a tradição constitucional, herdada de 1976, de indigitar o líder do partido ou da coligação mais votados. Nunca saberemos se o faria se o PS estivesse no lugar em que está, actualmente, a PàF. Em 2009, o PS ganhou as eleições com maioria relativa, e o Presidente indigitou e nomeou José Sócrates. Os tempos eram outros, é certo, mas fê-lo, e conhecemos a orientação política de Aníbal Cavaco Silva. Sejamos coerentes. Podia, é evidente, ter encontrado uma solução à direita. O que se aplica agora, aplicar-se-ia ao passado. Bem sabemos a instabilidade dos anos seguintes, que culminou nas legislativas de 2011.
       Com esta indigitação, Passos Coelho está vinculado a encontrar uma solução governativa. Se com o PS não poderá contar, nem com o PCP, Os Verdes e o BE, confesso que não sei o que acontecerá. Pode devolver a sua indigitação, pode ser nomeado, juntamente aos membros que propor, num governo de vida curta, caindo na votação a uma qualquer moção de rejeição ao seu programa. Por enquanto, a esquerda já demonstrou que está consciente da sua maioria, elegendo Ferro Rodrigues como Presidente da Assembleia da República - é a primeira vez que se elege um Presidente da AR que não pertence ao partido mais votado nas legislativas.
        Tempos complicados se avizinham.

20 de outubro de 2015

Sentimentos.


      Na esteira do que venho sentindo, os últimos dias mergulharam-me em certa apatia que dificilmente supero. Sinto-me a mais. Precisamos, diz a Psicologia, de nos identificar com determinados modelos, assimilando-os. Estou crente de que esse processo não foi tão evidente assim no meu caso.

    Como se caminhasse só tendo-me por companhia exclusiva, não precisando de conversar, ouvir, partilhar. Que me descubro, até na interacção com os outros, que nasci para estar sozinho, mediante que não nos é possível moldar os demais ao nosso gosto, vontade. E aí reside uma das minhas barreiras: convencer-me de que o mundo não é como eu quero, mas como se me apresenta. Aprendi a fazê-lo, a conformar os sentimentos, os anseios, terceiros, ao sabor do que me convinha. Furtaram-me o devido equilíbrio entre a veleidade de um ser meio déspota, como o são todos os pequenos, e a autoridade perene de uma figura da qual se esperaria mais do que carinho e cuidado.

        Hoje, sem embargo, sei que educar é talvez a tarefa mais laboriosa de alguém que a isso se propõe. É um caminho intrincado. Ser progenitor deveria fazer-se acompanhar de um atestado qualquer, uma certidão de aptidões. Quem sabe um dia a ciência evolui a ponto de se poder detectar, pela genética, as predisposições à parentalidade. Evitar-se-iam muitos dos problemas com que nos confrontamos. Eu, particularmente.

        Viver de remendos, um aqui, outro ali, procurando escapar ao mal original, é solução que não se basta.  E lastimar, tão-pouco. Os erros são o que são: erros, e tarde ou cedo terão de ser corrigidos.

14 de outubro de 2015

As Presidenciais.


   Após as legislativas, e ainda em período de indefinição quanto à composição da nova equipa governamental, as atenções pairam em torno das eleições presidenciais, não deixando por isso de se dar o devido destaque às negociações entre os partidos representados no Parlamento tendo em vista a formação de um futuro governo.

     Teremos as eleições presidenciais em Janeiro, em princípio. Partindo da esquerda, Edgar Silva é o candidato do PCP. Um nome desconhecido para a maioria dos cidadãos. Temos ainda outro candidato certo: Sampaio da Nóvoa, que reúne o apoio do LIVRE (e de uma ala do PS). Pelo PS, já é seguro avançar que Maria de Belém, ao que tudo indica a horas de acontecer, anunciará a sua candidatura, com ou sem o apoio categórico do partido. Pelo PSD/CDS, embora não seja ainda o candidato dos partidos, é provável que Marcelo Rebelo de Sousa congregue em si o apoio da coligação, considerando que não será, à partida, o candidato mais tranquilizador para Pedro Passos Coelho. Admito que me falte algum nome e não rejeito a possibilidade de Rui Rio ou Santana Lopes poderem trazer algo de novo nestes dias que se seguem.

         No sistema português, semipresidencialista, o Presidente da República é mais do que a figura de topo da hierarquia do Estado, representando-o. O Presidente goza de prerrogativas constitucionais que o munem de importantes e decisivos poderes. A Constituição enuncia as suas competências. Eleito por sufrágio universal, a sua legitimidade é directa, não emana de nenhum outro órgão de soberania, mas do povo. Nem sempre foi assim. Nos anos da I República (1910-1926), o Presidente era eleito pelo Congresso, que o podia destituir. Em 1959, na sequência dos acontecimentos que abalaram o regime, com epicentro nas eleições presidenciais do ano anterior, em que Humberto Delgado não foi eleito por fraude ardilosamente arquitectada pelo Estado Novo, a eleição do Presidente da República deixou de ser directa, passando para a responsabilidade de um colégio eleitoral, que evidentemente viria da Assembleia Nacional, controlada pela União Nacional, melhor dizendo, pelo regime.

          A imprensa o diz e a popularidade do candidato não a desmente: o Professor Marcelo Rebelo de Sousa é o candidato presidencial melhor posicionado para suceder a Cavaco Silva. Uma vez mais, a Comunicação Social interfere decisivamente num acto eleitoral, manipulando o eleitorado, levando em braços um candidato até Belém. Eu arriscaria a dizer que de forma nunca antes vista no nosso país, recordando-me, de momento, do candidato Collor de Mello, no Brasil, que foi apoiado expressamente pela Globo, chegando, assim, ao Planalto. Emídio Rangel, já falecido, comentava com certa ironia: «Dêem-me uma estação de televisão que eu dou-vos um Presidente.», sabendo, de antemão, do poder dos órgãos de Comunicação Social junto das pessoas.

          Ninguém duvida da simpatia do Professor, do seu espírito leve, descontraído, e talvez por isso agregue em si tanta empatia, carinho, esperança. Intenções de voto... Eu seria a pessoa menos insuspeita para falar do Professor. Não fui seu aluno, embora o conheça, o respeite e o admire. É um homem encantador. Humilde. Não há aluno que lhe aponte um defeito, uma injustiça cometida, um impropério dito ou um tique arrogante e sobranceiro. Politicamente, todavia, não poderíamos estar em pólos mais opostos. Não sou religioso, não sou da sua área política tendencial e não acredito, como não poderia deixar de ser, em «Presidentes de todos os portugueses». Essa fórmula, inventada por Mário Soares para apaziguar a sociedade portuguesa depois das duras (e renhidas) eleições presidenciais de 1986, não fará mais sentido algum, sabendo nós que os Presidentes são homens com naturais inclinações políticas, cedendo à tentação de favorecer os governos e os partidos das suas famílias políticas. Tem sido assim desde 1976, conquanto venham a  suspender a  filiação partidária. Não passa de um malabarismo, mera manobra de distracção, quase um imperativo ético.

       A esquerda, por seu turno, encontra-se dividida, apresentando vários candidatos. Poderão até, havendo uma segunda volta, apoiar determinado candidato contra a direita, não obstante a dificuldade quase doentia em conseguir um entendimento alargado. Maria de Belém não é consensual. A sua maior vantagem está, e com noção do ridículo o digo, no facto de ser uma senhora. Há quem queira ver, onde me incluo, um pouco da sensibilidade feminina em Belém, que os géneros são iguais em direitos e em deveres, mas são manifestamente distintos em tantas vertentes. É biológico. Não é opinião. Os candidatos mais à esquerda do PS e todos quantos se apresentem por partidos politicamente insignificantes, tomando como bitola a representatividade, ou não, na Assembleia da República, nomeadamente, são mero efeito desestabilizador, atraindo o voto dos descontentes. Com toda a legitimidade na corrida, a vitória de um candidato do LIVRE não é sequer ponderável.

            Assume-se a eleição legislativa como o paradigma dos actos eleitorais. Por certo, eleger os deputados que nos representarão na AR é da maior importância. Dela resultará um Governo, que por uma legislatura, quatro anos, liderará os destinos do país. Mas eleger um Presidente comporta responsabilidades que não podem ser subestimadas. Termino como comecei: o Presidente não governa, preside, com amplos e significativos poderes. Um Presidente, querendo, poderá ser um aliado do povo, em sentido amplo, moderando os devaneios próprios de governos. E isso teremos de ter em conta na hora de delinear a cruz no boletim de voto.

10 de outubro de 2015

Rainy.


      Gosto dos dias cinzentos. Proporcionam-me bons momentos de introspecção. Quando as manhãs nascem escuras e frias, invernosas, é como se o dia tivesse sido concebido à minha medida.

      Levantei-me bem cedo, enquanto todos dormiam. Fui para a rua. Caminhei, chapinhei nas poças, senti os pingos escorrendo-me pelo braço esquerdo, que ergui, molhando um pouco da manga da camisa branca. Sob o guarda-chuva negro, avancei pelos semáforos, de luzes reflectindo-se no piso húmido, dando algum alento à avenida. Vi o meu rosto no vidro de uma loja de antiguidades. Já sou um homem feito. Sentir-me adulto, responsável, não implicou - não que o tenha percebido - um caminho de certezas e de significados. Continuo perdido, ainda à espera de um rumo. Há quem se demore por um grande amor ou por uma oportunidade profissional irrenunciável. A nada disso me refiro. Aguardo, isso sim, por uma justificação, uma razão que explique a minha existência. Acredito que a maioria aceita a sua sem esperar, em contrapartida, por qualquer resposta. Eu preciso-as.


       Fico extenuado. Se invoco a Deus, não as obtenho. Se me socorro dos homens, tudo o que recebo é um chorrilho de palavras aparentemente contraditórias. Sou tomado pela trágica lassidão que me impede de argumentar, trazer factos, confrontar com o que não faz sentido. Resigno-me no momento.
     A vida cansa-me. Por vezes quero fazer tanto que faço tão pouco. O meu corpo não acompanha os comandos do cérebro. Fervilham em mim mil ideias.

      Entrei numa pastelaria. Observei os candeeiros lustrosos, iluminando o salão principal, a montra de iguarias irresistíveis. Pedi uma meia de leite e uma torrada simples, com pouca manteiga. Nas mesas circundantes, casais tomando o pequeno-almoço em alegre cavaqueira. Ao longe, uma mesa composta de senhoras já de certa idade, sorrindo, entre cada trago no chá. Podia ver-se as chávenas fumegando. Senti-me rodeado de amizade, confiança, entrega, ainda que estivesse só. Acalentou-me.

         Regressei sem as respostas. Não será calcorreando as ruelas da cidade que as encontrarei. É provável que nem as haja. E que o mistério da vida (e o seu encanto, se é que o tem) resida na incerteza sobre o eu, o outro e o futuro.

5 de outubro de 2015

Rescaldo Eleitoral.


    O dia de ontem foi decisivo para Portugal. Acompanhei, como milhões, o escrutínio, as projecções. Cumpri com o meu dever cívico depois do almoço. Desde logo fiquei surpreso com a afluência às urnas, a maior de sempre desde que voto, transmitindo essa percepção a quem me acompanhava. A noite revelaria, contudo, que a diminuição da abstenção não foi tão expressiva.
     As sondagens, nomeadamente a da Universidade Católica para a RTP, confirmaram as expectativas geradas: a coligação PàF obteve o maior número de votos; o PS foi o grande derrotado da noite. A extrema-esquerda, mormente o Bloco de Esquerda, aumentou a sua representatividade no Parlamento. A CDU foi ultrapassada pelo Bloco no número de mandatos, atingindo, ainda assim, um resultado digno. O PAN (Pessoas- Animais-Natureza) elegeu um deputado.

     Em democracia, ganha quem obtém o maior número de mandatos. Nesse sentido, a coligação PàF ganhou e nada mais resulta do escrutínio de ontem. Goste-se ou não, eu não gosto, é a realidade que há e é com esta que temos de contar. Uma vitória pouco expressiva, consubstanciando uma maioria relativa, e não absoluta, pela qual clamava, e o PS. Os mandatos que conseguiu são insuficientes para um governo estável. Não mais se bastarão. A anterior maioria, agora minoria de direita, precisará de consensos. Consensos com o PS, uma vez que o BE e a CDU (desmembrando-se em PCP e PEV) não aceitarão quaisquer acordos, e bem, fiéis ao seu eleitorado, com a coligação. Convém que nos elucidemos de momentos próximos que poderão comportar instabilidade política. O que se segue a este acto eleitoral é um processo notório: o Presidente da República ouvirá os partidos com assento parlamentar, respeitando os resultados eleitorais (187.º, número 1 da Constituição, doravante CRP), e dada a sua ideologia política é natural que convide a coligação a formar Governo. Ainda que goze de relativa discricionariedade e que nada o obrigue a nomear Primeiro-Ministro alguém que careça da sua confiança, acreditamos que o faça e que indigite, num primeiro momento, e depois nomeie (133.º, alínea f) da CRP) Pedro Passos Coelho. Há uma coligação que se propõe a formar Governo, portanto tudo o indica. António Costa referiu que respeitará a decisão do povo, que manifestamente aponta no sentido de um governo da PàF, excluindo-se qualquer coligação pós-eleitoral com alguma das forças mais à esquerda do PS, o que poderia, embora altamente improvável tratando-se de Cavaco Silva, originar um cenário nunca antes visto de governo coligado à esquerda.

      Após a nomeação do Primeiro-Ministro e restantes membros, o Governo entra em funções, todavia circunscritas à prática de actos necessários para assegurar a gestão do país (186.º, número 5 da CRP): estamos perante um Governo de gestão. A Constituição obriga à apresentação do programa de Governo na Assembleia da República no prazo máximo de dez dias, o que extraímos do artigo 192.º, número 1 da CRP. É neste momento que recaem todas as atenções, porque pode ocorrer algum destes cenários. Vejamos: pode ocorrer que um dos grupos parlamentares proponha a rejeição do programa do Governo, apresentando uma moção nesse sentido; assim acontecendo, se por maioria absoluta dos deputados em efectividade de funções for aprovada a rejeição do programa do Governo, o Governo fica automaticamente demitido (artigo 195.º, número 1, alínea d)), seguindo como Governo de gestão até ser substituído; se a moção de rejeição do programa do Governo não obtiver o número de votos suficientes para ser aprovada, o Governo entra em funções plenas. Numa segunda hipótese, pode o Governo solicitar a aprovação de um voto de confiança à Assembleia da República, podendo também ocorrer uma de duas situações: por maioria simples, o Parlamento pode aprovar a moção de confiança, entrando o Governo em funções irrestritas; o Parlamento rejeita a moção de confiança, o Governo fica demitido, uma vez mais (desta feita a alínea e) do artigo 195.º, número 1), permanecendo como Governo de gestão até à sua substituição. Pode ainda, numa terceira hipótese, não existir nenhuma proposta de uma moção de rejeição do programa, nem o Governo solicitar um voto de confiança; não havendo qualquer votação, o debate do programa do Governo prossegue e o silêncio do Parlamento vale como um voto de silêncio positivo tácito (expressão doutrinária minha), entendendo-se que a Assembleia permite que o Governo entre em plenitude de funções.

       Sem maioria absoluta e sem qualquer acordo à vista com o segundo partido mais votado, a vida de um governo minoritário é difícil. Escapar às moções de censura da Assembleia da República, de maioria contrária, já não é possível com a sua expressão eleitoral. Um governo com maior número de deputados facilmente contornaria este mecanismo de controlo político do Parlamento. Também a aprovação de uma moção de confiança pode ser inviável, implicando a demissão do Governo. Num momento posterior, a apreciação do Orçamento de Estado por um Parlamento cujas cores políticas superam a cor política do Governo também poderá acarretar consequências graves para a sobrevivência de um governo minoritário. A apreciação dos decretos-lei do Governo pela AR é uma forma de controlo político que ganha contornos distintos, e gravosos, estando perante um governo de minoria parlamentar. E fazer submeter decretos-lei sob propostas de lei, no Parlamento, não garante a sua aprovação, que careceria de maioria absoluta (que assim escaparia ao veto absoluto dos decretos-lei pelo Presidente da República, absolutíssimo tratando-se de matéria reservada à competência legislativa do Governo).

         O PS, não tendo ganho estas eleições legislativas, e verificando-se o cenário que tracei de constituição de governo PàF, minoritário, desempenhará uma função essencial, quer na aprovação (abstenção ou desaprovação) do programa do Governo, quer mais tarde, quando o Orçamento de Estado for apresentado na Assembleia da República. A coligação de direita não se basta, precisando de entendimentos com outras forças emanadas da eleição de ontem. A coligação PàF, por seu lado, terá de perceber o ligeiro cartão amarelo do povo, que se expressou na inexistência de uma maioria que lhe permita governar tranquilamente. O que infiro desta composição do Parlamento é o seguinte: o povo quer que a coligação continue a governar, acreditando num crescimento económico e no aumento do emprego expectáveis depois de tantas medidas de contenção e de austeridade, mas quer que o PS contrabalance, dê o seu aval em medidas sensíveis e cruciais. O BE e a CDU são a expressão desse descontentamento e da derrota do PS em assumir-se como alternativa credível e confiável. Não entrarei na análise à continuidade de António Costa no PS, decisão que compete aos militantes do partido. Gostei do seu discurso ao final da noite, ponderado, tão distinto dos discursos da coligação PàF, agressivos, pedantes, o que me leva a duvidar que tenham apreendido com clareza a vontade dos cidadãos.

          A tarefa do Presidente da República reveste-se de especial relevo e cuidado. Também a Assembleia da República, quer a coligação, quer os demais partidos nela representados, deverá atender às necessidades do país. A instabilidade política, que de certo modo antevejo, traria um agravamento dos nossos problemas estruturais.

           Conjunturas que se confirmarão, ou não, nas próximas semanas. Algo é certo: constituindo Governo, a coligação passará por momentos penosos no panorama parlamentar português desde a primeira reunião da Assembleia da República.

2 de outubro de 2015

A descoberta do ouro brasileiro e as implicações sociais e de regime.


   Mil seiscentos e quarenta. Um ano simbólico em Portugal, representando a tomada de soberania por parte de uma casa real nacional, depois de sessenta anos incorporado na Monarquia Hispânica. Lá fora, concretamente em Inglaterra, iniciava-se a longa luta entre o Parlamento, desejando afirmar-se, e o poder régio. No nosso país, a Revolução que pôs cobro ao domínio dos Habsburgos haveria de conduzir, lentamente, à afirmação e consolidação do poder do monarca. Desengane-se quem encara este golpe revolucionário como o garante da nossa independência, porquanto esperava-nos vinte e oito anos de duras batalhas (sendo as mais importantes a Batalha do Montijo, em 1644; a Batalha das Linhas de Elvas, em 1659; a Batalha do Ameixial, em 1663; a Batalha de Castelo Rodrigo, em 1664 e, por último, a Batalha de Vila Viçosa, em 1665), que em todas nos singrámos vencedores, até que Carlos II de Espanha reconheceu, por fim, a nossa independência. Enquanto decorriam os conflitos armados, reorganizou-se o governo, sendo coroado Rei D. João IV, nas Cortes de Lisboa de 1641, adoptando uma forma de governo absolutista, que o tornava no árbitro final das decisões do Estado, ainda que ouvisse o Conselho de Estado ou as Cortes (que seriam convocadas cada vez menos a partir, sobretudo, do reinado do seu filho, D. Pedro II).

    As guerras contra a Monarquia Hispânica, ou Espanha, consumiram dinheiro e energias durante mais de um quarto de século. No final do século XVII, a situação económica era precária, os cofres do tesouro estavam quase vazios, mas, apesar de todas as dificuldades, Portugal conseguiu desenvolver e incrementar a cultura da vinha e preparar algum fomento industrial com o Conde da Ericeira. Entretanto, certa ocorrência mudaria por completo a situação do país no comércio internacional; em 1697, foram encontradas minas de ouro no Brasil, na região que ficaria conhecida por Minas Gerais. Depois de um ano de buscas realizadas pelos bandeirantes, o minério seria, por fim, achado. Esta descoberta, por assim dizer, trouxe para a metrópole o mais importante meio de pagamento de então: o ouro, propiciando uma vida sumptuosa que a riqueza agrícola e industrial do país não poderia suportar. A vida e o esplendor da Corte vinham dessa riqueza encontrada no Brasil, que o comércio do vinho, do sal, da fruta, do tabaco e da madeira apenas permitia sustentar o nosso povo operoso. O absolutismo paternalista e opulento de D. João V, que em tudo procurou imitar a corte parisiense, só teve lugar pelo volume colossal de remessas de ouro brasileiro, construindo-se, assim, palácios, igrejas (tão ao gosto do devoto monarca), comprando-se obras de arte dos mais variados escultores e pintores. Todavia, o ouro diminuiria...

     Em 1750, com a ascensão ao trono de D. José, o país teria de conhecer políticas diferentes. Os últimos anos do governo de seu pai já haviam sido difíceis. Sebastião José, o futuro Marquês de Pombal, empreenderia uma evolução do absolutismo régio: o despotismo esclarecido, consolidando o poder régio, ao responsabilizar e expulsar os Jesuítas, também ao amedrontar a velha nobreza, não obstante realizando reformas importantes, administrativas, militares, económicas e sociais, imbuído no espírito das Luzes. Contrabalançando o decréscimo no comércio do ouro, fomentou a indústria do ferro, em Angola, e a indústria do algodão e do cacau, no Brasil. 
       Não mais o Reino conheceria tanta magnificência e fausto como até então.