14 de outubro de 2012

A menina resiliente.


   Nunca antes havia tido um contacto próximo com uma pessoa diferente. E uso este adjectivo com um propósito: deficiente ou incapacitado mexe de uma forma brutal com a minha consciência. Limitações todos as temos e, por vezes, mais fustigantes.

   A S. é uma menina especial. Não rejeita uma manifestação de auxílio, nem se afasta das pessoas. O facto dos seus olhos apenas distinguirem a claridade da penumbra não a tornou uma pessoa amarga; pelo contrário, apurou-lhe os restantes sentidos e a sua perspicácia. Sendo mais velha do que eu três anos, já tendo reprovado algumas vezes, torna-a mais experiente. Durante o ano lectivo passado fui aproximando-me dela, embora tenhamos começado a falar sobretudo a partir do início deste ano. Disse-me que é discriminada, fenómeno que atribuí talvez a alguma piedade de terceiros que ela interpretasse mal. Não. Bem mais grave do que isso: sente a maldade e a piada infame frequentemente.


- Olha ali uma cega! (risos)


   Quando mo disse, senti-me num lugar desconhecido e inóspito. Afinal, onde estou eu? Que lugar é este? Reduzi o preconceito ao seu âmago e vi a ignorância a jorrar por entre o seio da palavra. Diminuí-a ao seu ínfimo e pude ver o quão horríveis podem ser as pessoas. Ela riu-se. Nada abala a sua determinação em concluir os estudos e ser alguém.

   Um colega interpelou-nos, na sexta-feira, afastando-se de seguida. É um rapaz simpático e afável. A S. pôde percebê-lo na sua voz. Como exemplo, ela reconhece-me, pela voz, a vários metros de distância. Peremptoriamente, disse-me: "Achaste-o querido". Sorriu, naquele sorriso em que caberia o mundo. Ao tentar explicar-lhe de que ele me fora indiferente nesse sentido que pude perceber no seu tom, ela alertou-me para que não ficasse preocupado. Com ela estaria sempre à vontade. 
   Senti-me castrado. Qual de nós será mais limitado? Eu, com uns olhos que não enxergarão os sentimentos que a sua sensibilidade consegue intuir?

   A mãe da S. teve uma reunião e avisou-a de que não a poderia ir buscar. Predispus-me em acompanhá-la à paragem dos autocarros e aguardei pela chegada do veículo que a levaria a casa. Ao despedir-me, num ímpeto que não pude controlar - e com a voz embargada - sussurrei-lhe:

"Os estudos não farão de ti alguém. És mais alguém do que qualquer um que já conheci."

17 comentários:

  1. Um belo texto, Mark cheio de imagens fotográficas e de cenários que você compartilhou com todos nós. Ela deve ser uma pessoa maravilhosa! Apesar de ter uma limitação física, não deixa que isto a afaste de ser feliz e de fazer atividades que todos nós estamos habituados a fazer, como estudar, trabalhar etc. Uma grande lição para nós que, volta e meia, reclamamos da vida.

    Sim, os cegos não podem ver,mas em compensação, ouvem que só uma beleza e percebem as coisas que nós deixamos passar. Hahaha!

    Abraços brasileiros pra você!

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  2. Citizen: Ela é incrível. Tem uma garra e uma força imensuráveis. Tomaria eu ter um quarto da sua coragem. E ainda sofre o preconceito abominável de pessoas inqualificáveis. É uma vencedora.


    abraços :3

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  3. Não sei porquê este teu texto levou o meu pensamento àquela curta brasileira muito premiada o ano passado, "Eu não quero voltar sózinho", não sei se viste...

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  4. a perda de um sentido aguça os restantes, por outro lado, torna-a mais forte e capaz de enfrentar o mundo cruel, essa é a resiliência que falas.
    depois, ela vê com os olhos do coração. e ela viu que és uma pessoa especial.
    bjs.

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  5. João: Vi sim. :) Aliás, é uma das minhas "curtas" favoritas. Cheguei a publicá-la aqui. Realmente, a S. e o menino protagonista são iguais em sensibilidade.

    abraço :3


    Margarida: Entristece-me tanto. Enfim, já não bastam os terríveis obstáculos físicos que estão presentes no seu dia-a-dia a todo o instante, ainda aturar com um preconceito do mais hediondo é angustiante. :|

    Oh, especial é ela e tu. :)


    bjo.

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  6. O preconceito é uma coisa terrível. Pessoas como a S. são, para mim, autênticas lições de vida, de coragem e de perseverança. São pessoas que me fazem acreditar que um mundo melhor é possível não fossem mentalidades mesquinhas e redutoras por aí, com déficits de autoestima e cujo QI permite pouco mais do que emitir juizos de valor injustos sobre pessoas muito melhores que eles. Não se deseja a 'diferença', como lhe chamas, a ninguém. Mas eu tenho a sorte de lidar diariamente com algumas pessoas assim, e tenho aprendido imenso (e ainda muito mais a aprender).

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  7. Coelhinho: Exacto. E, havendo "deficiências", a maior delas será o preconceito. Que grande deficiência! Para ela, a ciência não encontra solução; desaparecerá, um dia, quando o espírito dos homens se tornar mais depurado. Sim, é utópico. :)


    Francisco: Ainda bem. :)



    abraços x2 :3

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  8. Em 30 de Maio passado referiste-te à S. a propósito de um exame. Comentei assim: "...muito bonita a descrição que fazes. A S. é uma vencedora, sim... mas tu, Mark, também és um vencedor...".
    Hoje acrescento que és mais que vencedor. As atitudes que tens perante os outros só te engrandecem.
    Cada vez gosto mais de te conhecer, nem que seja apenas pelos teus relatos.
    Também tu és "mais alguém do que muitos que eu conheço".
    Abraço-te com todo o carinho :3

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  9. De facto a estupidez humana e a maldade não têm limites. Choca-me ainda mais pela forma gratuita como as usam, esses sim os verdadeiros deficientes de espírito...

    Pessoas com a S. são verdadeiros exemplos de coragem e determinação com que temos tanto a aprender.
    Abraço.

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  10. Pedro: Muito obrigado! Enfim, fico sem palavras perante a tua generosidade.

    abraço carinhoso :3


    Arrakis: Completamente! Devo dizer que desconhecia este grau absurdo e covarde de preconceito. Como têm a coragem de tentar menosprezar uma pessoa que não pode ver? Será que não temem o futuro? :|

    abraço :3

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  11. É diferente como todos nós. Em certas circunstâncias vive limitada ou condicionada, mas isso não faz dela inferior. Será superior noutras coisas.
    No fundo ela já criou as suas defesas e sabe disso.
    abc

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  12. sad: Criou, efectivamente, defesas. Eu gosto imenso dela.


    abraço :3

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  13. como já disseram também me lembrou a curta "eu não quero voltar sozinho".
    A tua atitude é de louvar e ela é com certeza uma pessoa de força, sigo-te*

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  14. Rapaz das marés: Ela é muito determinada. Tem os phones ligados ao portátil, que lhe envia informações por um programa especial, e, ao mesmo tempo, ouve a matéria dita pelos professores. :)

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  15. Adorei este post.

    A sensibilidade com que o apresentas - gostei muito do uso do termo "pessoa diferente". Já trabalhei com muitas pessoas diferentes, quando ainda era um jovem adolescente de 15 anos, numa Escola para pessoas "diferentes".

    Graças a essas vivências, muito do meu caracter e sensiblidiade vieram ao de cima e fizeram de mim o ser que sou nos dias de hoje.

    Tu apontaste vários aspectos importantes, se não cruciais e que nós também já abordamos nas aulas do curso de NEE. Estas pessoas detestam que sintam pena delas.

    Infelizmente, essa maldade que referiste no texto é muito marcante e penso que está a piorar. Não se mal apenas as pessoas "diferentes", mas no geral, existe uma cada vez maior falta de respeito.

    Achei muito fofinho da parte dela a forma como te interpelou a respeito do vosso colega. Ela compreendeu a tua atrapalhação [e talvez vergonha] em dizeres todaa verdade e colocou-te logo à vontade. ^^

    a dadaaltura disseste: "Senti-me castrado. Qual de nós será mais limitado? Eu, com uns olhos que não enxergarão os sentimentos que a sua sensibilidade consegue intuir?"

    Pois bem, a resposta à tua pergunta é mais do que óbvia.

    Tu tornaste-te vítima do Mundo e da sociedade em geral, pois estás a oprimir-te, a viver escondido com medo de abrir o teu enorme e lindo coração, por culpa desse "bicho feio" chamado Preconceito. [não é só por causa disso, mas como diria a Teresa Guilherme, "isso agora não interessa nada!"]

    Por momentos, fizeste-me lembrar o jovem Mark que eras quando comecei a ler-te... :P

    Já avançaste tanto nesta jornada chamada Vida... não deixes que os medos e coisas feias te estraguem a Alegria e a Felicidade de viveres momentos lindos e únicos.

    Eu próprio venci alguns medos comuns há muito imbutídos em mim apenas há 2 ou 3 meses atrás.

    E valeu a pena.

    Pelo menos enquanto durou, valeu a pena.

    Ficam as doces recordações e mais algumas vivências que serão muito úteis e importantes para a minha evolução.

    Beijinhos para ti e para a S.!

    :3

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  16. Hórus: Obrigado pelas tuas palavras. A S. é uma menina muito especial até porque é bastante simpática. Nós sabemos que os invisuais tendem a isolar-se um pouco, rejeitando ajuda. Enfim, são defesas próprias numa sociedade que olha para estas pessoas, simplesmente diferentes, como incapazes. Ora, eles querem por todos os meios provar que conseguem fazer o mesmo que alguém sem qualquer problema. A S., não. Ela é muito solícita e aceita de bom grado que a ajudemos. :) Além disso, é muito intuitiva e esperta.


    beijinho para ti e agradeço o da S., em seu nome :3

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