15 de novembro de 2012

Eles como nós.


   Na época das matrículas, nada combinei. Fi-la sozinho, em casa, através da internet, e não programei horas, minutos e segundos com ninguém. De resultado, fiquei numa turma sem nenhum rosto conhecido. Necessitava de mudar algo. Era urgente para o meu equilíbrio.

   Em consequência disso, aproximei-me de uma colega. Sentámo-nos juntos algumas vezes e isso tornou-se uma rotina. Também o facto de ser cabo-verdiana de ascendência e eu filho de um moçambicano ajudou a que tivéssemos algo mais do que a licenciatura em comum. 
   Um terceiro elemento, um colega, rapaz, que já conhecia desde o primeiro ano, efectivamente, e de vista há bastante tempo porque mora perto de mim, começou, também ele, a sentar-se ao nosso lado nas aulas teóricas. Desde cedo, apercebi-me do seu interesse pela minha nova amiga. Aos poucos, houve uma receptividade da parte dela, e não tardou em corresponder às claras evidências do seu afecto. Em breve começariam a namorar.

  Parecia-me algo sólido. Ele, sossegado e estudioso, inteligente. Ela, compartilhando das mesmas características, embora seja mais solícita e extrovertida. Combinavam, a meu ver.

   Na sexta-feira passada, no final das aulas, ele saiu e deixou-a para trás. Estranhei e comentei subtilmente o ocorrido, deixando, como é evidente, uma margem natural à necessária privacidade deles. Não obtive nada de esclarecedor. Há dois dias, encontrei-a perturbada quando cheguei à faculdade. Deduzi o motivo. Pediu-me que não comentasse com ninguém por vergonha. Sentia-se humilhada, rebaixada na sua humanidade, inferiorizada. Contou-me, então, que o rapaz dissera aos pais que a namorava. A mãe, sabendo que era mulata, deixou de falar com o filho, chantageando-o. Argumentou que jamais admitiria ter netos mulatos e que ela o desviaria do caminho (nem sequer a conheceu). Tudo o que quisesse dizer ao filho fazia-o através do pai, que em casa, e enquanto o namoro durou, servia de mensageiro.
   A pressão foi demasiado forte - para mais sendo dependente emocionalmente da mãe. Atreveu-se em contar-lhe os verdadeiros motivos do fim da relação, não a poupando ao vexame.


   Quando mo disse, de início não quis acreditar. Parecia-me uma história romanceada de algures dos anos sessenta do século passado. Mais tarde, vendo a veracidade nos seus olhos sinceros, fui tomado de uma aversão súbita. Um misto de cólera e asco.
   Ela, talvez por estar demasiadamente ligada a ele, tendeu em desculpá-lo. Como fazê-lo, tratando-se de um estudante universitário, esclarecido - na nossa licenciatura - onde tanto lidamos com direitos, deveres, liberdades e garantias? Não fora seu dever ensinar à mãe o certo e o justo? Não falarei em sentimentos porque esses, claramente, não existiam da sua parte.

   Acreditei nas suas dificuldades em erguer-se de tão abrupta queda. Quando nos retiram a condição humana, perdemos os valores nos quais fomos educados e julgáramos ter como adquiridos. Começou a reconstruir-se de novo. Em construir a mulher que é. Agora, despida de medos maiores.

10 comentários:

  1. Infelizmente, é o espelho de uma triste realidade que ainda perdura. Mudam-se os tempos, mas certas ideias, levam muito mais tempo a mudar.

    Infelizmente, muita gente ainda não compreende somos todos Humanos e é isso que realmente importa.

    Merecemos Respeito e ser tratados com Dignidade.

    Quanto à tua amiga, relembra-lhe que aquilo que não nos mata, torna-nos mais fortes!

    ...E que há males que vêm por bem...

    Beijinhos para vocês os dois! :3

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  2. Uma dura e triste realidade que é muito real neste nosso país... :(

    Enfim, mentalidades por assim dizer

    Abraço amigo

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  3. Antes de mais dizer-te que o texto está muito bem escrito, parabéns.
    Realmente é uma vergonha. Se o rapaz gostasse mesmo dela tinha lutado por esse amor.
    Acho que é uma estupidez o que fez a mãe, portar-se como uma criança com birra. E acho ainda mais estúpido o que ele fez. Afinal de contas não é um adulto? Não pode tomar decisões pela sua própria cabeça e escolher o que quer?
    Mas, como já dizia a minha mãe, "quem sai aos seus não degenera" e é bem verdade.
    E é assim que vou aprendendo que as verdadeiras histórias de amor são tão comuns como os aumentos de salário da função pública.
    Abraço*

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  4. Há tanto por fazer na mudança de mentalidades.
    O que é natural para uns é uma coisa inaceitável para outros.
    A sociedade, diria as sociedades, vão evoluindo mas devagar.
    Ainda não passaram muitos anos sobre o fim do 'apharteid' na África do Sul. E não passa pela cabeça que os 'brancos' e os 'pretos'(esta é a designação correta) eram separados em tudo; até nos WC's.
    Podia dizer muito mais, mas quero realçar que gostei muito do modo como relataste a situação. Não gostei da situação - obviamente.
    Creio que para a tua colega talvez tenha sido melhor assim... e certamente encontrará alguém capaz de a fazer feliz sem medos nem preconceitos.
    Meu querido Mark. Adorei ler-te.
    Um abraço carinhoso :3

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  5. arrepiei-me ao ler. ela é já vítima de preconceitos por ser mulher e cabo-verdiana. agora, a sofrer mais essa humilhação, doendo mais por gostar desse rapaz.
    que dizer dessa mãe, que vergonha de mãe, nem merece ser chamada assim, mãe.
    não compreendo a reacção dele, fraco, emocionalmente instável, imaturo, submisso.
    ainda há muito que fazer neste país ao nível das mentalidades e se esse rapaz não se impor, terá uma triste vida, ao sabor dos caprichos preconceituosos da mãe.
    bjs.

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  6. O rapazinho é um tanto covarde. Se ele gostasse realmente dela, teria lutado contra o racismo na mãe.

    Tudo tem um lado bom, pelo menos a sua amiga não vai namorar um tremendo babacão que tem medo da mamãezinha ahaahahaha. Bom pra ela. Ufa!

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  7. Deve ser uma sensação horrível. Para ambos. O rapaz deve ter sido educado como super-dependente. A mãe uma tirana que não admite que o filho lhe faça frente, e sabe como ele está emocionalmente dependente dela (foi ela que o moldou assim), sabe como o levar a fazer aquilo que ela quer.

    A rapariga coitada, é outra vítima da mãe do ex-namorado. Coitada, deve estar na fossa...

    Como uma vez ouvi a uma amiga, sobre uma situação totalmente diferente, "Isso são mentalidades do séc. XX, e as pessoas esquecem-se que já estamos no séc. XXI". Mas neste caso, creio que podemos substituir o séc. XX por séc. XIX, quando, saídos da escravatura, os pretos eram vistos como o "lixo da sociedade".

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  8. Entretanto, ela ainda gosta muito dele. Já da sua parte, nada sei ao certo. Ela disse-me que ele treme quando a vê, que baixa o olhar, envergonhado, que no fundo gostará dela...

    Palavra de honra, não imaginava que ainda existisse este racismo tão visível; sabia que existia, todavia não com estas nuances inacreditáveis.


    O que mais me custa é partilhar o oxigénio com pessoas assim.


    :3

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  9. É sempre horrível ser discriminado, seja porque razão for. Tenho pena dele por estar obrigado a um comportamento tão desprezível (e pela cobardia que isso implica) e dela por sofrer na pele um comportamento desses. Espero que ambos consigam superar este incidente.

    Abraço Mark. :)

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  10. É uma história muito triste e que infelizmente fará parte de um rol que não será pequeno...
    Diz-se que o amor tudo vence; se assim é, então o rapaz não amava de todo essa tua colega...

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