1 de setembro de 2019

Mário.


   Mário é um monólogo escrito e encenado por Fernando Heitor e interpretado, magnificamente interpretado, por Flávio Gil. Está em exibição desde o dia 8 de Agosto. Eu fui vê-lo ontem, no São Jorge, às 19h. Já tinha saudades de ir ao teatro.

   Fernando Heitor, através de Flávio Gil, conta-nos a história ficcionada de Mário, um bailarino que viveu durante o Estado Novo. Em rigor, Mário é Valentim de Barros, este sim que existiu realmente e que sofreu na pele, e no espírito, as agruras de se ser diferente num tempo de moral rígida, em que tudo o que se afastava dos parâmetros ditos normais era malvisto e perseguido. Valentim de Barros nasceu em 1916 e morreu em 1986. Esteve internado quarenta anos no Hospital Miguel Bombarda. O diagnóstico? Ser homossexual, vestir-se de mulher e ter a voz afeminada. Passou por electrochoques e por uma leucotomia. Quando se deu o 25 de Abril, talvez tenha sido demasiado tarde para resgatar Valentim de Barros da loucura que não a homossexualidade, mas sim o confinamento, lhe provocou.


Valentim de Barros fotografado pela PVDE, primeiro nome da PIDE, em 1939


    Durante quase duas horas, Flávio Gil, com o palco só para si, - e um palco pequeno, que o São Jorge é um cinema -, vai desfiando os anos e as vestes de Mário, um bailarino desprezado pelos pais em criança, que se viu obrigado a fugir de casa e dos maus-tratos. Um rapazote que cresce entre mulheres de má fama, marinheiros e comerciantes, pelas vielas de Lisboa. Que é acolhido por um padre - confessor espiritual - que o vende a um homem de posses, proprietário de um prédio na Avenida da Liberdade. A linguagem é muito crua. Flávio Gil faz-nos ouvir o que Mário sofreu: foi abusado sexualmente por aqueles homens, pelo padre, por gente endinheirada, pelo tal proprietário. Sujeito a sevícias e explorado. Adulto, passa por companhias de bailado em Paris, Buenos Aires e no Rio de Janeiro. Consta-se que terá sido verdadeiramente feliz na Cidade Maravilhosa, convivendo com a classe artística. Homens, passaram muitos pela sua cama. Mário, se pudesse, "comia-os a todos". De volta a Portugal, após anos fora, é agredido pela polícia, detido e, por fim, internado compulsivamente.


Valentim de Barros no seu quarto do Miguel Bombarda, algures na década de 70


   Flávio Gil vai trocando de roupa à pressa. Dispondo só de uma cadeira de ferro, pintada de branco frio, confundimos a vida de Mário com aquela que só existe na sua cabeça. A determinado momento, Mário já não é o bailarino jovem, "de cabelos bonitos". O corpo já não se movimenta como dantes. É um velho louco entre quatro paredes. Ou loucos foram os que o enjeitaram desde o começo, os pais. A raiva acompanha-o entre os momentos de lucidez e os de paranóia. 




   Valentim de Barros morreu discretamente, em 1986, no Hospital de São José. Pouco tempo antes, recebera alta do Miguel Bombarda. Transviado para os cânones do salazarismo, a democracia também não soube lidar com o incómodo de tamanha crueldade infligida naquele homem. Só em 2009 é que a sua vida ganhou interesse, após uma reportagem sobre a homossexualidade durante o antigo regime. Mário vem reabilitar definitivamente Valentim de Barros, o bailarino do Estado Novo.

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