28 de setembro de 2019

El silencio es un cuerpo que cae.


   «Cuando vos naciste, una parte de Jaime murió para siempre.»



    O dia de ontem, quanto ao Queer, encerrou com um documentário muito intimista e pessoal. Agustina Comedi é uma jovem que desvenda mais de cem horas de filmes caseiros gravados pelo seu pai, de si, da sua mãe e amigos, em viagens, confraternizações e reuniões familiares. Jaime aparece em raras ocasiões.

    Assim como muitos naquele e neste tempo, Jaime levava uma vida dupla. Antes de conhecer a sua mulher, Monona, aos 40 anos, teve vários relacionamentos, entre os quais um com Néstor, seu amigo de longa data, falecido de HIV/SIDA em 1991, apenas um dia antes de Freddie Mercury. Agustina, ao longo do documentário, vai fazendo de voz off. Sabemos que foi uma das duas únicas vezes que viu o pai a chorar. A outra foi quando a sua avó morreu.

    Néstor era o elo de ligação entre o Jaime dos anos 70 e 80, que viajava com os amigos gays pela Europa e pelos EUA e se hospedava em hóteis que constavam de roteiros gay, e o Jaime de finais de 80 e dos 90, casado, pai e chefe de família. Néstor era omnipresente. Na fotografia de casamento de Jaime e Monona, surge lá, a um canto.

   Não se pense que este documentário contém apenas uma visão familiar de Jaime, Monona e Agustina, ou que se detém apenas na vida dupla de Jaime. Pelo contrário. Há todo um contexto político que não deve ser menosprezado. Em El silencio es un cuerpo que cae, Agustina faz múltiplas entrevistas a pessoas que conviveram com o seu pai nas décadas de 70 e 80 e que com ele conheceram os meandros da repressão à comunidade LGBT, sobretudo na décadas de 80, quando a atenção dada aos presos políticos se virou sobre «los putos» (pejorativo de gay), sob a forma de internamentos compulsivos, tortura e tratamento degradantes. Jaime militara em grupos de extrema-esquerda que se opunham à ditadura argentina.




    Jaime ocultava tanto o seu verdadeiro eu quando se ocultava nas filmagens. Nunca supôs que, um dia, o seu olhar pelo mundo, protegido, viraria um documentário. Logo nas primeiras gravações, que coincidem com as cenas iniciais, Jaime focou David de Michelangelo nos contornos da escultura, aproximando a objectiva das nádegas, dos traços viris. Explorar a obra-prima do mestre italiano era como um modo secreto, subtil, de se permitir apreciar o homoerotismo. Tempos houve em que um psicólogo lhe dissera, a Jaime, que ele não era totalmente homossexual, apenas parcialmente, e que a heterossexualidade que existia em si haveria de aniquilar o dito lado gay.

   Agustina faz-nos um périplo pela Argentina da perseguição e do preconceito, inclusivamente na área da saúde mental. Chamando ao pai de Jaime, de vez em quando lá o trata por mi papá. É que Jaime na verdade era o pai e outro homem que Agustina só mais tarde veio a conhecer. Um homem que se relacionou com homens, que amara a outras pessoas que não a sua mãe, e do mesmo sexo. Foi, no entanto, a menina dos seus olhos. Basta vermos como Jaime a filmava, como lhe dedicava grande parte do seu filme. A sua vinda ao mundo, como bem evidencia a frase que escolhi para figurar no início desta crítica, ditou o fim de um Jaime e fez nascer outro. Porém, como o passado nos persegue, a dupla vida de Jaime acabaria por se tornar pública. Trágica coincidência, Jaime acabou por ser filmado no dia em que morreu, poucas horas antes, após uma queda violenta de cavalo. O seu segredo não morreria consigo. 

    Diz-se que não devemos voltar aos lugares em que fomos felizes. Jaime, desta vez na companhia da mulher e da filha, voltou aos mesmos lugares onde anos antes estivera com os amigos. E soube ser feliz de novo, porque também o era com a família que escolhera para si. 

   El silencio es un cuerpo que cae é um fantástico documentário e uma excelente surpresa neste Queer 23. 

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