24 de setembro de 2019

Greta.


   «Pode pensar em outra, mas tem que me chamar de Greta Garbo.»



    Armando Praça traz-nos mais do que um filme sobre uma transexual moribunda e um gay idoso. Traz-nos um retrato da solidão, da recta final da vida que não se quer encarar, da discriminação em contexto de internamento hospitalar, de uma relação que nasce inesperadamente, da necessidade, da carência, sem qualquer base de sustentação que a torne possível, somente o amor que vem a brotar da parte de um velho homem. Não digo que Jean (Démick Lopes) não tivesse começado a sentir algum afecto por Pedro (Marco Nanini), mas pesaria ali, sobretudo, a oportunidade de ter algum amparo e cuidados. E dúvidas houvesse, o último olhar de Pedro, sobre Jean e sobre nós, no fundo, é o de alguém abatido pela perda de um amor de uma vida, Daniela (Denise Weinberg), pela sua condição e pelo desgosto da separação do homem que imprevisivelmente começara a amar.

   Uma das críticas que se podem apontar reside na escolha de Praça por uma actriz dita cisgénero, ou que raio isso é, para encarnar Daniela, que no hospital não aceitaram admitir senão com o seu verdadeiro nome, masculino. Denise foi muitíssimo bem escolhida para o papel, conjugando o que de melhor têm os géneros feminino e masculino. Outra opção seria por uma transexual. Provavelmente Praça não viu em que é que uma transexual daria realismo à personagem. A meu ver, não mudou muito. E já que falei naquele hospital, local bastante insalubre, diga-se, Praça juntou, num espaço tão pouco estilizado, o preconceito e a libertinagem: Daniela não conseguiu uma vaga na enfermaria feminina, não foi admitida com o nome que se adequa à sua identidade de género, feminina; ao mesmo tempo, médicos, auxiliares e doentes dedicavam-se a práticas sexuais ali mesmo, em gabinetes médicos, salas de arrumação ou inclusive sob os lençóis encardidos dos leitos.

   A decadência é um aspecto central na narrativa, quer em Pedro, quer em Daniela, e até, de certo modo, em Jean. A decadência moral e a física. Para Jean, ser descoberto como criminoso, e não o digo pelas autoridades - por Pedro -, era como fazer resvalar aquele deus que sabia representar para o velho amante em algo desprezível.
   Pedro e Daniela estão a definhar, profundamente descrentes de tudo. A respiração é ofegante, os passos arrastam-se, os olhares perdem-se, e ambos parecem estar a aceitar muitíssimo bem, embora com profunda dor física e psicológica, o facto. Pedro é a apatia em pessoa. Parece que nunca sai daquele registo contido, indiferente à sua sorte. Quando fala de Greta Garbo, é a pulsão sexual que fala através do seu alter-ego. Garbo simbolizará a juventude que se foi e o glamour que também há muito abandonou Daniele.




  Praça optou por planos fechados, incisivos. Estáticos. Condizentes com os espaços e com os sentimentos das personagens. A acção é sempre passada, salvo algumas excepções, na claustrofobia dos cómodos de um apartamento minúsculo ou entre as paredes carcomidas do hospital. Apenas no final vislumbramos um horizonte, quando novas perspectivas se avizinham para Pedro e Jean. Pedro oscilava, afinal, sabia tão bem como nós, espectadores, que aquele relacionamento tinha tudo para não dar certo. Nascera disfuncional, e provavelmente terá morrido disfuncional. Nunca lhe chegamos a conhecer um fim.

  Marco Nanini, que tem uma prestação bastante boa (procuro ser mais comedido nos elogios), apostou num papel que lhe traria finalmente a consagração numa constelação de tantas estrelas da representação que o Brasil tem. Por lá, os bons actores estão porta sim, porta sim. Não temeu expor-se e ao seu corpo em nu integral, quiçá porque esteja no zénite de maturidade enquanto homem e artista, o que não o impediu de avançar nesse sentido. Competirá aos espectadores ajuizar. A meu ver, e compreendendo a intenção de se retratar um corpo flácido, velho, com as suas vergonhas, não teria sido mal pensado ter-se poupado um pouco. Se o corpo é exibido despudoradamente, o prazer não o é tanto. Pedro é tão contido a sofrer como a vir-se.

  Greta, sob pena de ficar guardado numa gaveta como "cinema para gays", é um bom filme, que narra a vida na terceira idade, a sexualidade na terceira idade, o amor na terceira idade, o ser-se minoria na terceira idade, com menos maquilhagem do que aquela Daniela punha em si quando actuava. E ainda bem.

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