22 de setembro de 2019

Self-Portrait in 23 Rounds: a Chapter in David Wojnarowicz's Life, 1989-91.


   «Quando contraí este vírus, percebi que contraíra uma sociedade doente também».



   Ao longo de cinco horas de gravação em 1989, David Wojnarowicz (1954-1992), pintor, escritor e activista norte-americano, vai relatando a François Pain e Marion Scemama, que esteve presente na Cinemateca, as angústias e a sua realidade enquanto homossexual, seropositivo e artista, numa América que condenava os doentes de SIDA à morte, pelo desconhecimento, pela intolerância, pelo preconceito.

  David fazia parte da geração que transitou da infância para a adolescência quando se deu a revolução cultural do ocidente, iniciando-se sexualmente no momento em que séculos e séculos de repressão tombavam. Jovem adulto no apogeu da epidemia de SIDA, com todo aquele cortejo de horrores, acabaria por ser atingido, bem como o seu companheiro. Entretanto, não quis ser o típico portador de HIV que morre no silêncio, e por isso tido por corajoso, não; quis barafustar, gritar, proclamar ao mundo que via amigos a morrer por falta de apoios estatais no acesso a medicação que poderia prolongar as suas vidas. Embora tenha escrito dez livros na sua curta vida, tendo desenvolvido projectos em diversas outras áreas, foi este activismo político que o impulsionou na fase final da vida. Tal tomada de posição, e tão-só clamava por uma política de saúde pública justa, levou-o a ser perseguido pelas autoridades religiosas e políticas. Uma obra sua, um crucifixo coberto de formigas da Smithsonian Institution, teve de ser retirada, sob pena de corte nas verbas. No Texas, um político afirmava que a solução para se terminar com a SIDA era "atirar sobre os gays". Nas manifestações LGBT, riam-se e zombavam, dizendo nenhum deles estaria lá no ano seguinte, morrer que iam da enfermidade. Vendo-se doente e num contexto de perseguição e intolerância, David escrevia manifestos lidos cheio de cólera. Foi a luta de uma curta vida.


David Wojnarowicz, fotografado por Peter Hujar, também ele falecido em decorrência do HIV


   Pela primeira vez, David, que tinha tanta dificuldade em falar sobre a sua sexualidade, a relatou, e de uma forma crua e dolorosa, não obstante, pareceu-me, espontânea. Os engates em que esteve, as primeiras experiência sexuais com homens mais velhos, as viagens pela costa sul-sudoeste dos EUA, entregando-se a sexo louco em meio daquela paisagem árida e quase desértica, no fundo, toda aquela espiral de promiscuidade em que entrou, sem protecção, claro, como era apanágio naquele tempo e como se veio a reflectir na sua arte, quer na pintura, quer nos escritos e na intervenção pública, que já foi mencionada. 

   A possibilidade de este documentário poder ser visto após a sua morte deixava-o flipado. Ele sabia que ia morrer, ainda que em alguns diálogos quisesse transparecer a esperança num medicamento novo, em tratamentos que lhe prolongassem a vida.


Cartaz do documentário no Festival de Berlim

   A morte do companheiro foi um duro golpe, uma experiência traumática. Que as pessoas se tornassem "transportadoras profissionais de caixões" era algo que o incomodava. Era exactamente isso o que ocorria naqueles anos de grande mortandade entre a comunidade gay da cena nova-iorquina. Quando Peter morreu, o companheiro, quis que este fosse fotografado assim que morreu - e nós vemos as fotos no documentário -, cadavérico, corroído por um vírus isolado apenas pouco anos antes. Um retrato post-mortem chocante, perturbador, real. A morte era aquilo, e não a sucessão de cerimónias fúnebres e de actos piadosos.

  "Self-Portrait in 23 Rounds" é um legado à sua maneira. Um labour of love, onde David Wojnarowicz contracena consigo mesmo, visto que não há qualquer intervenção de terceiros ao longo dos 78 minutos, desfiando lembranças à medida em que nós vamos conhecendo a seu vastíssimo arquivo. As estórias de um homem que sabe estar a viver um momento único e impactante na luta contra poderes instituídos que viam no HIV não só uma punição, um castigo, como também uma arma contra os homossexuais. Aqui, não há apelos à protecção, e ainda menos moralizações.  Não há arrependimentos, remorso. Há reconciliação com o presente, uma dose de coragem e aceitação dos factos.

    É um excelente documentário, simples, quase todo gravado em torno de uma desarrumada mesa de cozinha. Um itinerário pessoal, emotivo, pungente, sobre uma época que felizmente deixámos lá para trás, num dos períodos mais negros da história da ciência, da medicina e da sociologia. Há todo um contexto político-social-cultural que impulsiona o documentário e lhe dá razão de existir. Resta acrescentar que foi exibido também no Festival de Berlim e no Whitney Museum, na exposição David Wojnarowicz - History Keeps me Awoke at Night.

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