«Não vês que eles estão a dormir, filho da p***?»
Pier Paolo Pasolini inaugurou uma nova forma de fazer cinema, em que a narrativa perdia importância diante da liberdade da câmara. Importava mais o que as paisagens e os corpos tinham a dar ao espectador, em toda uma estética distinta. Essa terá sido a fórmula de Wieland Speck - que esteve ontem presente na exibição da sua curta, pela primeira vez em Portugal, e de Hussein Erkenov, realizador de Cem Dias Antes do Comando.
Como Speck referiu, a curta resulta do medo que o atormentava e do clima de suspeição da sociedade alemã de então diante do fenómeno da homossexualidade. Não tem diálogos. O protagonista, residente em Berlim, conhece um jovem num bar. À noite, os seus sonhos são povoados pelo crime e pela perseguição. Era, no fundo, a projecção de todo o medo, do de Speck, abertamente gay, nos sonhos.
Cena de Das Geräusch Rascher Erlösung (1982) |
Cem Dias Antes do Comando causa-nos alguma interrogação quando nos damos conta da estranheza de um realizador soviético ter conseguido produzir um filme de cunho homoerótico. Quando vemos a longa, percebemos o porquê. Erkenov recorreu à iconografia gay para abordar a violência no exército de uma já decadente União Soviética. Como se espera, foi extraordinariamente difícil conseguir que o filme entrasse no circuito de distribuição. A exibição no Festival de Berlim ajudou.
Cena de Sto Dnei do Prizaka (1990) |
Percebe-se um claro diálogo metafísico com a Natureza, que funciona como alegoria aqui, visto que não há uma narrativa lógica. Os treinos duros, sob uma neblina gélida, a que aqueles cadetes estão sujeitos - numa alusão a Tarkovski - contrastam com os sonhos molhados e as visões deíficas, antevendo-se uma qualquer redenção numa dimensão paralela àquela. Erkenov, ao focar os rostos dos jovens, pretendeu extrair dos seus olhares a ira e a submissão controlada à disciplina.
Os tons esbatidos dos campos funcionam como antítese dos corpos rosáceos, que transpiram sexualidade e desejo. A percepção de fatalismo sobressai da fixidez da objectiva sobre os corpos e do comportamento errático dos jovens, como se o tempo parasse e aquelas personagens pertencessem a um mundo etéreo. A sinfonia de Bach é um requiem da tragédia, da morte, do abandono, da solidão e do desejo reprimido. Na cena em que todos adormecem numa casa em ruínas, aquela é a ruína dos cadetes, destroçados mentalmente, e da própria URSS.
Adoro.
ResponderEliminarAbraço
P.
Ainda bem. :)
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