Começou, ontem, o MOTELX, o festival internacional de cinema de terror de Lisboa, que vai na sua 13ª edição e que decorrerá entre os dias 10 e 15 de Setembro. Eu já reservei o lugar em seis das inúmeras sessões, da manhã à tarde, que o Cinema São Jorge guardou para 2019. No final, farei, à semelhança do que fiz no ano passado com outro festival, um pequeno balanço do certame.
O primeiro filme com que inaugurei o MOTELX foi Bacurau, uma longa-metragem que estreou em Agosto deste ano no Brasil e que obrigou a organização do festival a incluir uma segunda sessão, que a primeira ficou esgotadíssima em horas, acabando a segunda também por esgotar. Eu fui à sessão das 18h, a segunda.
A sala estava apinhada. Houve alguém que gritou, lá do alto das bancadas: "Lula livre!" A maioria repetiu, em uníssono, e aplaudiu. Aquela sala é um espelho da conjuntura actual no Brasil. Estava aberto o mote para uma sessão politicamente encalorada, pejada de mensagens subliminares, num país que vive na dicotomia esquerda - direita há anos, desde meados de 2013. Há, efectivamente, uma guerra no Brasil. Uma guerra civil que se trava no campo ideológico, com perseguições políticas de parte a parte, instrumentalização de poderes públicos e purgas e manifestações ferozes nas ruas das principais cidades.
O filme é ambientado na cidade fictícia de Bacurau - provavelmente um topónimo de origem tupi. Quis-se retratar esse Brasil profundo. Eis a primeira mensagem étnica. Em Bacurau, a água potável chega através de um camião cisterna, mas todos os habitantes, dos mais novos aos mais velhos, têm telemóveis e tablets. Na escola pública, as paredes descascam, mas é dotada de tecnologia de ponta. Mal conseguimos descortinar como é que a ligação à internet chega àquele misterioso lugarejo do sertão brasileiro. Eis a segunda mensagem: uma crítica ao capitalismo. Aquelas pessoas são compradas por um prefeito corrupto e amoral. A determinado momento, a pacatez de Bacurau começa a ser perturbada pela ocorrência de mortes misteriosas, e é aqui que a realidade e a ficção cientifica se misturam. Bacurau é quase um mundo paralelo, uma realidade alternativa. Tudo é profundamente desconcertante naquele povoado.
Os moradores de Bacurau representam a resistência do povo brasileiro ante uma ameaça premente e predadora - o governo de Bolsonaro suportado pelos EUA. Numa das cenas, e o filme retrata um futuro próximo, um noticiário anuncia execuções públicas. No Brasil, discute-se o restabelecimento da pena capital. Há ainda referências ao eleitorado de Bolsonaro no sul do país. Dois desses sulistas são os carrascos do seu povo, ridicularizados por se julgarem racicamente superiores aos demais brasileiros. As artes não são imunes à turbulência político-social, e temos aqui mais um indesmentível exemplo dessa promiscuidade.
Os vícios dos brasileiros estão lá também, plasmados, não em tom de crítica, mas quase de auto-aceitação. O Brasil da corrupção, do sexo que aflora a qualquer momento, dos gangues, que não devia obliterar o do carinho, do sentimento de comunidade, da entreajuda na hora de agir contra o inimigo. Mais do que tudo, o Brasil da violência. Bacurau é uma ode à violência com lampejos de sátira social e mordaz. Ela surge-nos de todos os lados, naturalmente. E a violência gera violência. Em Bacurau, parece não haver polícia, ordem pública. Em Bacurau, não há Estado. Em Bacurau, vive gente. Bacurau é um pequeno Brasil, um micro-cosmos da sociedade brasileira. Em Bacurau, é o povo quem mais ordena.
Terror não é minha praia ... rs
ResponderEliminarO filme brasileiro não é de terror. É de crime.
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